É sabido que John Ford gostava de dizer que era um realizador de westerns, sobre Raoul Walsh diz-se que é um cineasta de filmes de acção. Mas, se ouvirmos as palavras do próprio, descobrimos depressa que várias vezes disse que os seus filmes giravam sempre em torno da cena de amor – quando a Cahiers lhe dedicou um número e visitou a rodagem do seu último filme [A Distant Trumpet (A Carga da Brigada Azul, 1964)], Walsh confessou a Jean-Louis Noames que “A cena de amor entre o capitão e a rapariga é a cena mais importante do filme. Como em todos os meus filmes, a história inteira revolve em torno dessa cena”. Portanto, mais do que olhar para Walsh como realizador de filmes de acção (que os fez também, belíssimos e belissimamente) onde a acção vale por si e se perpetua, há que compreender os seus filmes como o resultado do amor como motor da acção. Amor a uma mulher – presente ou distante, concreta ou por conhecer, amante ou mãe, à pátria ou à liberdade -; mas sempre o amor entre uma mulher e um homem. Este é o centro sobre o qual podemos dizer que giram todos os filmes de Walsh – tendo em conta que a obra do realizador se faz em extensão e, portanto, qualquer generalização destas terá à espreita um contra-exemplo.
O cinema é imagem em movimento, e eu faço-o mover-se.
Walsh’s idea of a tender love scene is to burn down a whorehouse!
Jack Warner (por vezes atribuída a Jack Pickford)
I wouldn’t give you two cents for a dame without a temper
Mad Dog Earle in High Sierra (O Último Refúgio, 1941)
Avocados, male and female. /How can you tell? /Oh, that’s easy. The bashful one is the girl
Alan Hale como Ed Carlsen in They Drive by Night (Vidas Nocturnas, 1940)
Mas quando falamos de homens e de mulheres, falamos de que homens e de que mulheres? Sobre o homem walshiano tem-se discorrido bastante: aquele que foge de um passado tumultuoso ou de um presente em desvario através do deserto ou da selva ou do oceano, traçando linhas imaginárias no decorrer do seu percurso e assinalando num mapa só visto por deus (e pelos espectadores) as cruzes do tesouro – como tão bem resumiu Dave Kehr na expressão map movies. Homens desejosos de se mostrarem grandes e, ora falhando, ora sucedendo (para seu infortúnio). Andrew Sarris – “only the most virile director can effectively project a feminine vulnerability in its characters” – também reparou que alguns dos homens de Walsh são invulgarmente sensíveis e femininos. Numa palavra: vulneráveis. Para isso recordou White Heat (Fúria Sanguinária, 1949) e Cagney a chorar no colo da mãe [note-se que essa característica é comum às várias colaborações Cagney/Walsh: o menino que só bebe leite em The Roaring Twenties (Heróis Esquecidos, 1939), o palhaço que é enganado por todos em The Strawberry Blonde (Uma Loira com Açúcar, 1941), mas também poderíamos referir alguns trabalhos entre Flynn e Walsh como exemplos dessa feminilidade dos heróis [1]. A verdade é que tudo isso é resultado de um olhar de demasiado pormenor sobre vastíssima obra de Walsh (Rock Hudson, que é o mais feminino dos actores com Sirk, é para Walsh um poço de dureza e vingança – penso em Gun Fury (A Fúria das Armas, 1953) ou em Sea Devils (Gigantes em Fúria, 1953) – e Clark Gable é tão áspero como a sua pele rugosa em The King and Four Queens (Um Rei e Quatro Rainhas, 1956). No fundo, cada homem é apenas ‘um’ homem nos filmes de Walsh e, apesar de viverem entre formatos limitados e estereótipos, os personagens conseguem sempre evadir-se de tais grilhões. Nem de propósito, Kehr resume isto simplesmente ao dizer que “o foco de Walsh é, unicamente, o indivíduo – a sua experiência, o seu progresso, a sua evolução”. E depois acrescenta, como quem não quer a coisa: “O pronome masculino não se aplica sempre: um dos protagonista mais admiráveis de Walsh, Jane Russell em The Revolt of Mamie Stover (Mulher Rebelde, 1956), é inequivocamente uma mulher“.
Pois bem, era exactamente a The Revolt of the Mamie Stover que queria chegar. Para compreender o papel que as mulheres ocupam nos filmes de Walsh é boa ideia olhar primeiro para esta segunda colaboração entre Walsh e Jane Russell [filme que se seguiu a The Tall Men (Duelo de Ambições, 1955)] e traçar sobre ela tangentes que se propagam a quase todas a obras que vieram antes e que surgiram depois – isto talvez porque Mamie Stover seja a personagem que consegue fundir num só aquilo que na maioria dos filmes de Walsh aparece desmultiplicado em várias personagens femininas.
Walsh tinha o hábito de dizer que ao longo da sua carreira havia feito muitos perus – “made a lotta turkeys and a coupla’ good ones, too“. Infelizmente para mim, aqueles que Walsh considerava serem os mais espampanantes perus são alguns dos meus filmes preferidos – Sea Devils, The King and Four Queen e este The Revolt. Diz-nos Marilyn Ann Moss na sua biografia sobre Walsh, Raoul Walsh, the True Adventures of Hollywood’s Legendary Director, que Mamie Stover era motivo de grande desapontamento para o realizador: “The biggest mistake we made – I didn’t make it, the studio made it – was they bought that damn book, The Revolt of Mamie Stover. Well, that book is all about prostitution in Hawaii. They knew they couldn’t show prostitution and yet they bought it. We wrote a script and we put it on. And it was nothing.” Mas talvez seja por os códigos não permitirem uma prostituta como protagonista (e não só os códigos) que o filme se concentrou naquilo que é o instrumento de elevação social por excelência: o dinheiro.
O dinheiro é um dos elementos dramatúrgicos mais importantes no cinema de Walsh, o desejo de o ter (ou de o ter ainda em maior quantidade) é o móbil de grande parte dos seus heróis. Não o dinheiro por si só (ainda que isso se dê), mas pelo que o dinheiro permite socialmente. Consideremos Silver River (Rio da Prata, 1948), em que Flynn interpreta um militar que, transportando os ordenados do seu batalhão, se vê emboscado pelas forças sulistas e decide pegar fogo ao dinheiro (para não o ver em mãos indevidas). Na cultura americana este será possivelmente o pior dos crimes, queimar dinheiro (daí que só os vilões acendam cigarros com as suas notas), e como tal merece o castigo adequado. Flynn é expulso do serviço militar [e há que fazer as ligações entre o patriotismo de Flynn no início de Silver River e a dedicação mortal à bandeira de They Died with Their Boots On (Todos Morreram Calçados, 1941)] e jura que ganhará tanto dinheiro quanto consiga, entrando numa fúria de compras especulativas, apropriações indevidas, tudo a bem do lucro e do dinheiro que lhe oferece estatuto – claro que cai em desgraça quando o seu banco se torna insolvente. De bancários trata também Dark Comand (Comando Negro, 1940) e de como estes estão afectos às massas que, por um rumor, exigem violentamente as suas poupanças e desgraçam homens honrados. Ou ainda Strawberry Blonde, em que, apesar de ter a fortuna e a mulher bonita, o antagonista de Cagney não consegue ser feliz como este é com pouco. Ou seja, a ambição extremada é condenada pelo destino (ou pelo argumentista) e não há como lhe fugir.
O dinheiro torna-se mais presente nos filmes de Walsh a partir de metade dos anos 50, período em que também as mulheres ganham mais presença, quer com papéis de destaque, quer em número. The King and Four Queens é portanto exemplo capital. Cinco mulheres vivem isoladas no meio do deserto, quatro jovens e uma senhora de idade com pêlo na venta. Ao que se diz, a senhora protege o saque que os seus filhos lhe entregaram antes de fugirem às autoridades e acabarem por morrer, sobrevivendo apenas um dos quatro, ainda que não se saiba qual. Cada uma das mulheres que vive sob o jugo da senhora mais velha é esposa de cada um dos filhos e, portanto, apenas a que corresponder ao sobrevivente poderá lucrar do roubo [note-se que esta estrutura do grupo de mulheres aprisionadas por uma figura des-sexualizada e des-sexualizante se repete em Esher and the King, onde um eunuco controla o harém do rei, ou mesmo em The Revolt, onde a dona do bordel – e o seu capanga/amante – limita a vida, tanto profissional como pessoal, de Mamie e suas colegas – esta comparação devo-a a Laura Laufer no seu texto As cores da história]. Enquanto o filho sobrevivente não regressa, a senhora guarda as suas noras de modo a que estas preservem as condições em que foram deixadas – “when he comes back to claim his property he’s gonna find everything just like he left it”. Em Four Queens tudo gira em torno do dinheiro: “I never put a dime on anybody but myself” ou “A penny for your thoughts” são algumas das tiradas. Quando Clark Gable chega ao vilarejo é natural que aquele bando de anjos, que há mais de dois anos se vê preso pela velha senhora, salte em cima do pobre vaqueiro como se não houvesse amanhã. Note-se que, antes de prosseguir para o lugar, Gable lança uma moeda ao ar: é por dinheiro que vou para lá e é o dinheiro que me indicará o caminho [recorde-se também Pursued (Núpcias Trágicas, 1947), onde todas as decisões de Mitchum se fazem através da aleatoriedade da moeda que se lança ao ar]. Como se chama a personagem de Gable? Nem mais nem menos que Keyhole, sendo que todo o filme revolve em torno de fechaduras e arcas cheias de ouro à espera de serem abertas (e mulheres também). Existe uma cena particularmente marcante no que diz respeito a esta relação entre sexo e dinheiro: os quatro irmãos têm uma capacidade que os identifica, conseguem acertar com um tiro numa moeda que lancem no ar, furando-a. Gable obviamente não consegue, mas antes de partir para a Wagon Mount (o referido lugarejo) consegue uma dessas relíquias e, já instalado, finge ser capaz do feito familiar. Primeiro, ao mostrar-se capaz de furar o dinheiro equipara-se aos irmãos falecidos, e por isso surge aos olhos da mãe como um digno recipiente para a fortuna; segundo, ao furar o dinheiro ele literalmente penetra a moeda, atravessa-a de um lado ao outro – símbolo da sua virilidade. Daí que, apesar de as mulheres viverem no local onde o ouro se esconde (durante anos), seja ele – o homem – que consegue (em poucos dias) encontrá-lo e roubá-lo; como se o dinheiro se oferecesse apenas a quem o possa penetrar.
Em The Place of Women in the Cinema of Raoul Walsh, Pam Cook e Clair Johnston encontram estas relações de poder entre o dinheiro e os sexos. Dizem elas que no cinema de Walsh as mulheres não têm acesso à circulação do dinheiro: “as a system, the circulation of money embodies phalic power and the right of possession: it is a system by which women are controlled”. Embora seja esse o caso nos filmes da fase final, o oposto acontece nos anos 30 e 40, em que as figuras femininas são quase sempre mulheres trabalhadoras que não precisam dos homens para nada – a não ser chatices. Mas posto que estamos, por agora, nesta fase mais tardia da obra de Walsh, olhemos então (finalmente) para The Revolt of the Mamie Stover.
Como se referiu, ao não se poder transpor o romance de William Bradford Huie directamente, o que se fez foi transformar Jane Russell numa acompanhante de luxo, que partilha conversas e bebidas em quartos privados num clube para (entre outros) oficiais em licença chamado o Bungalow. Mamie tem problemas com a polícia (com os casinos) e, portanto, é expulsa de São Francisco e enviada para o Havai, onde integra o referido clube e a pouco e pouco vai acumulando dinheiro (para mostrar ao pai, que vive lá longe na terrinha, que a filha está bem na vida) – e o sucesso do seu cabelo fogoso fá-la passar de uma comissão de 30% para 70%. A guerra começa (a Segunda) e Mamie, que tem tanto dinheiro in cash, aproveita os bombardeamentos do ataque a Pearl Harbor – numa das sequências mais espantosas de toda a carreira do Walsh, filmado em ecrã largo, vemos os bombardeamentos e as pessoas a correrem nas ruas com um sentido de distanciamento desolador, o horror vidrado por mais de 10 anos de imagens e num período em que já se queria apenas esquecer – e a subsequente queda do preço dos imóveis. A nossa Mamie começa a comprar tudo o que dá à costa, pelo preço da uva mijona. Se Gable era glorificado por roubar a arca de ouro, Mamie ao fazer a sua fortuna legalmente é tida como uma ladra.
Como nos esclarece Jean-Pierre Coursodon em Escravas e Livres, Notas sobre as mulheres em alguns filmes de Walsh, há que compreender a mulher nos filmes de Walsh como a confluência de dois aspectos: por um lado, um discurso protofeminista resultante da presença de mulheres obstinadas pelo poder (e consequentemente pela sua liberdade) e, por outro, os espartilhos do código de cinema de Hollywood tradicional, “que querem que a mulher tenda para a dependência e que não lhe escapa senão à custa de riscos, perigos geralmente graves, por vezes mortais”. Ou seja, numa expressão muito portuguesa, Walsh dá uma no cravo e outra na ferradura. Mamie consegue uma fortuna, mas por amor deixa tudo e regressa às origens. Há que condenar a atrevida que quis ser mais do que devia. Já conhecíamos isto de The Man I Love (1947), em que a vizinha da frente que tudo queria acaba atropelada (sem motivo aparente), ou Ida Lupino em The Drive By Night, que virou louca pelas maldades que fez. A máquina de Hollywood assim mandava e Walsh nunca se fez rogado.
Any lad, for Mamie
Would go mad for Mamie
And give up all he ever had
For Mamie
Fellas who try to resist
Oughta hire a psychiatrist
Se o final é acompanhado pelo bolero dos Ames Brothers – “If you want to see Mamie tonight“ – num contraste assustador entre a letra da música e a rejeição do seu amado (que no fundo não tolera que ela tenha mais dinheiro que ele – “there’s nothing closer between friends than money”), os créditos de abertura são acompanhados pela composição de Hugo Friedhofer que por entre um jazz lânguido acompanha Mamie ao barco que a levará ao Havai. De repente, Russell vira-se e olha directamente para a câmara, surge o título e depois percebemos que afinal ela não olha para nós, olha além de nós, para a cidade ao longe. Com o mesmo olhar deve ter olhado a Annie para São Francisco quando fugiu das garras de Chan Lo em Klondike Annie (1936).Tanto Russell como Mae West são a atracção principal de um salão para gentlemans e ambas são prisioneiras dos seus patrões, a única diferença é que West é uma Occidental woman in an Oriental mood for love... Desejosa de liberdade, ela tenta assassinar o senhor Lo [como Yvonne De Carlo em Band of Angels (A Escrava, 1957)] e tem a infeliz sorte de conseguir. Só fugindo poderá escapar à prisão, e então embarca para o Alasca. É curioso que seja, tanto para Annie como para Mamie, um barco que as leva para um local seguro, e é também a bordo desse barco que encontram ambas as suas paixões [como também é um barco que salva Gable em Band of Angels já no final – e muitos mais exemplos poderia dar]. Onde Mamie é very much a woman, Annie não fica atrás, mas há no entanto na postura de Mae West uma nota de paródia excessiva – e como referiu Bénard da Costa a propósito de Going Hollywood (Vamos para Hollywood, 1933), “haverá algum filme de Walsh que não seja excessivo? Não é o excesso um dos traços fundamentais do seu cinema?” – que de alguma forma revela a maquilhagem sobre a fórmula masculina. De certa forma, Tag Gallagher sumariou a função das mulheres no cinema de Walsh quando disse “The only thing sure is that you will meet a damsel in distress, beautiful, erotic and alluring, and fall madly in love with her — to your ruin or regeneration”, mas aqui, em Klondike Annie, Mae West encontra também uma mulher e é através dela que terá a sua regeneração. Na viagem de barco entra um segundo passageiro: uma freira que vai em missão para o Alasca e que morre pouco depois do embarque, permitindo a West tomar a sua identidade e assim fugir às autoridades. Mas sendo a mulher uma freira, Annie vê-se obrigada a continuar o seu trabalho e por isso, como se a própria acção infectasse o ser, Annie converte-se e ajuda a pequena comunidade religiosa a atrair mais participantes. Esta estrutura é muito semelhante à de O.H.M.S. (Glória que Redime, 1937) ou à de Uncertain Glory (Três Dias de Vida, 1944) – onde o herói vira santo pela presença de uma figura feminina pura e angelical, onde, para contrabalançar, há sempre uma figura feminina lasciva e desviante. A diferença está no facto de que a figura lasciva é em Klondike Annie a própria protagonista. Ou seja, joga-se um jogo entre aquilo que o cinema de Walsh nos habituou e a alteração do género do protagonista, sendo que são os pontos comuns que sobressaem.
Em The Revolt of Mamie Stover a figura pura e a lasciva são uma e uma só, Mamie/Russell. Por isso dizia que Mamie parecia conseguir confluir as figuras femininas que nos outros filmes de Walsh estão dispersas: em The Man I Love existem três mulheres: a independente, a dona de casa e a amantizada; em Four Queens tínhamos a ratinha de biblioteca, a latina e fogosa, a showgirl e a independente; ao longo da maioria dos filmes há sempre pelo menos duas figuras femininas em lados opostos da moral. Mas Mamie é todas estas mulheres e de todas é talvez a que mais sofre por querer ser bem sucedida. Sofre por ter ousado ocupar o território masculino. Neste mesmo sentido estão também Yvonne De Carlo em Sea Devils e Ann Blyth em The World in His Arms (O Mundo nos seus Braços, 1952). Em ambos os filmes parece que a estrutura de map movie é convertida no feminino: as duas mulheres desejam chegar a um local distante (em ambos há o mar a separá-las do seu destino) e todo o filme se faz sobre o caminho que têm que percorrer para lá chegar. Onde nos map movies masculinos os homens tinham que bater-se contra a natureza, [em Objective, Burma! (Objectivo Burma, 1945), The Naked and the Dead (Os Nus e os Mortos, 1958), Distant Drums (As Aventuras do Capitão Wyatt, 1951) são sempre a floresta e os pântanos que se impõem como obstáculo], nestes map movies femininos os obstáculos são os sociais. As mulheres têm sempre que recorrer aos marinheiros (Rock Hudson e Gregory Peck ou Anthony Quinn) para conseguir a travessia. Para conseguirem o apoio dos marinheiros têm que fingir o seu interesse por eles e, assim, manipulá-los no sentido de conseguirem o que pretendem (muitas vezes se oferece dinheiro, muito dinheiro, aos piratas e mesmo assim eles recusam-se ou vêem-se impedidos). De certa forma, a mulher é tida como mercadoria, por entre os vários contrabandos que os marinheiros transportam a mulher é apenas mais um (e Yvonne De Carlo é literalmente amarrada e carregada às costas como um saco de batatas, porque uma carga de whisky mereceria mais cuidados). Além da mulher-mercadoria de contrabando, temos também a mulher-mercadoria de luxo em Band of Angels onde, mais uma vez, Yvonne De Carlo é a filha de um fazendeiro do sul que descobre, com a morte do pai, que é de origem mestiça – a sua mãe era negra – e por isso é tão escrava como qualquer um dos outros serventes da propriedade que são vendidos para cobrir as dívidas do falecido. Uma escrava branca é então o maior dos luxos.
A queue like this must be for watermelon, whisky or women!, diz um jovem militar à porta do Bungalow onde a fogosa Mamie trabalha; uma vez lá dentro, os homens são avisados: Mamie’s not beer or whisky, she’s champagne only
Here’s to girls and gunpowder!
Gregory Peck em The World in His Arms (1952).
Se nestes filmes a mercadoria era objectiva, na grande maioria das filmes essa mesma natureza da mulher como elemento de troca é algo mais ténue, ainda que muito recorrente, no trabalho de Walsh. Referindo-me de novo a Pam Cook e Claire Johnston, que sobre Marlene Dietrich em Manpower (Discórdia, 1941) dizem: “As an object of exchange between men, a sign oscillating between the images of prostitute and mother-figure, she represents the means by which men express their relationships with each other, the means through which they come to understand themselves and each other”. Referem também o caso oposto de The Bowery (O Terror dos Cabarets, 1933), onde a rivalidade masculina (Wallace Beery vs. George Raft) disputa a mesma mulher e o seu ‘símbolo’ oscila também de dono [mas também poderíamos pensar em Gentleman Jim (O Ídolo do Público, 1942), como em tantos outros filmes em que este conflito surge]. Ou seja, quase sempre a mulher é um meio para os homens se glorificarem e passarem de incapazes, trafulhas ou bandidos aos big shots que Walsh quase sempre filma – ou àqueles que o costumavam ser.
Talvez o melhor exemplo disto mesmo seja o díptico High Sierra/Colorado Territory (Golpe de Misericórdia, 1949). Por três vezes Walsh fez remakes plano por plano de filmes seus [e talvez tenham sido mais, já que o primeiro Carmen se perdeu sobrevivendo apenas o The Loves of Carmen (Amores Bravios, 1927) uma década mais velho], eles são, além do já referido díptico, Objective, Burma!/Distant Drums e The Strawberry Blonde/One Sunday Afternoon (1933). Parece-me que é através destas revisitações da matéria dada que Walsh apura ou actualiza os seus filmes, deixando sublinhado aquilo que nos originais podia passar despercebido. Note-se que em Burma não se vê uma única mulher enquanto que em Drums já é a relação entre Gary Cooper e Mari Aldon que mais interessa [ele, um homem pacato que apenas deseja viver em paz numa ilha paradisíaca, e ela, uma mulher devassa que se viu prisioneira de traficantes mexicanos por isso mesmo; claramente ele converte-a à boa causa – este homem, muitas vezes mafioso ou rebelde, que só deseja paz e sossego, é uma figura muito recorrente nos filmes de Walsh, surgindo à cabeça Bogart em High Sierra ou Hudson em The Lawless Breed (Sob o Signo do Mal, 1953)]. Já em The Naked, que repete muito destes dois filmes, as mulheres são uma constante – nos vários flashbacks – sendo a causa de muito do transtorno do homens, mais ainda que os horrores da guerra. Mas Sierra/Colorado é particularmente significativo na evolução do papel feminino, nem de propósito que sejam Lupino e Mayo a darem o corpo a esta mesma mulher. Onde Lupino é delicada e independente de uma forma que só ela sabia ser [acho que é por ela, por ela apenas, que amo incondicionalmente On Dangerous Ground (Cega Paixão, 1952) de Nicholas Ray], Mayo é, por seu lado, uma mulher que ferve em pouca água, expansiva e explosiva – note-se que, em White Heat, o primeiro plano que temos de Virginia Mayo é ela a roncar e depois disso vêmo-la várias vezes mascando pastilha de boca aberta e outras alarvidades de semelhante monumentalidade para uma mulher tão bela. Talvez a este respeito seja significativa o seguinte encadeado de imagens.
Onde Lupino brinca infantilmente com um pauzinho, entretendo-se a desenhar na terra, Mayo escova a farta cabeleira; onde Lupino levanta vagarosamente um olhar triste e vagamente perverso (como ela é perversa em They Drive by Night…) para Bogart fora de campo, Mayo salta de um rebuliço de cabelos esvoaçantes para encarar o homem que acaba de chegar, Joel McCrea [2]. Sinto que tenho que recordar Scorsese em A Personal Journey with Martin Scorsese Through American Movies (1995) quando o realizador aborda este par. Por um lado, diz ele, Bogart está perdido porque se separou do seu anjo caído – Lupino – e por isso a morte é inevitável, mesmo que o sol já brilhe no céu quando lhe dão o tiro pela costas. Enquanto que para McCrea é de noite que o matam (e desta vez pela frente) e é a lua que ilumina os últimos momentos da vida do herói – num cemitério da tribo dos navajos concedendo uma aura fantasmagórica ao final e a todo o filme. Só que se no primeiro a mulher estava longe, em Colorado Mayo morre com ele, de mãos dadas. Como salientou Tom Conley a propósito da recente retrospectiva que a Harvard Film Archive organizou sobre Walsh, Bogart sai do esconderijo porque ouve o seu cão ladrar – não de propósito chamado pard por ser pardo e por simbolicamente conceder o perdão ao herói/criminoso. Já em Colorado não há cão e quem tira o herói do covil é Mayo que, pretendendo ajudá-lo a escapar, acaba por os condenar aos dois. Onde o cão concedia o perdão, agora é a mulher que opera a regeneração do criminoso, mas, como tal, ela sofre as consequências desse gesto que a personagem de Lupino não teve a coragem nem a oportunidade de realizar.
Fica a faltar o par Blonde/Afternoon. Onde nos outros filmes a utilização dos mesmo enquadramentos era notória, mas onde se salientavam as pequenas diferenças significativas, neste último díptico isso já não se verifica nos mesmos moldes, ou seja, a repetição agora é meticulosa e as alterações entre o original e a versão prendem-se com o actualizar da época em que o filme se passa, com a cor e com o género – passa de comédia ao musical. É sabido que, de todos os géneros que Walsh filmou, o musical foi de todos aquele que piores memórias deixou ao realizador – não quero com isso dizer que os musicais de Walsh sejam para olhar de lado. Curioso será perceber que The Strawberry Blonde, adaptação de uma peça musical, seja o seu filme preferido de todos os que realizou durante o período sonoro. Além de este ser um filme onde se brinca abertamente com os movimentos feministas (e sufragistas) – “try not to be a pamphlet for one night“ – este é um filme onde a liberdade sexual das mulheres é tanto um motivo de gargalhadas como um repelente para os homens.
I uh, I guess a little kiss is harmless if it’s all in fun.
Even if it isn’t in fun.
You mean – -?
Exactly.
Well, wouldn’t you like a nice, young man to marry you someday?
No, not particularly.
So you don’t believe in the institution of marriage!
An outmoded, silly convention started by the cavemen and encouraged by the florists and jewelers. After all, what’s marriage?
Wouldn’t you like to have a home and kids?
Certainly I would, but that doesn’t mean you have to go through all the…
You mean – -?
Exactly.
[she winks]
Well, your mother’s a bloomer girl, you’re a nicotine friend, are there any more at home like you?
I have an aunt who’s an actress.
Well, that completes the picture.
Talvez seja através das comédias que Walsh extravasa mais agressivamente as barreiras impostas às mulheres pelos estúdios e pelo ‘bom gosto’. Veja-se como Cagney oferece uma banana a Rita Hayworth quando passeiam pela ilha onde a Estátua da Liberdade está plantada e, ao ver que a moça recusa, ele responde “Well, if a man can’t get liberties here, where can he?”. Parece-me que só nas comédias Walsh se permitiu estes subentendidos muito pouco ‘sub’ e tão entendidos. Mas é de novo na comparação com Sunday que encontro as deliciosas progressões. A barbearia é o local onde os homens cochicham e coscuvilham, onde apreciam as moças que passam pela montra e as que lhes passam pelas mãos, e é de lá que parte a ‘amizade’ entre Cagney e Jack Carson e é também de lá que se idolatra a ruiva do título. Se assim se passa no primeiro título, no segundo a coisa repete-se, mas o que se torna interessante é o modo como a certa altura, no segundo filme, as mulheres ocupam o espaço exclusivo dos homens, candidatando-se ao emprego de barbeiras e conseguindo-o. Esta ocupação do espaço masculino é muito típica das comédias walshianas, nomeadamente em Big Brown Eyes (1936), Me and My Gal (1932), (no já referido) Klondike Annie, de certa forma em Going Hollywood e muito evidentemente em The Sheriff of Fractured Jaw (O Sheriff e a Loira, 1958). Não é por acaso que a maioria destes filmes corresponde aos da década de 30 – a década esquecida de Walsh – onde a quantidade de comédias abunda. Nos dois primeiros títulos o motivo é muito semelhante: um polícia investiga um criminoso fugido e, enquanto vão investigando, vão fazendo a corte às suas pretendentes. Em ambos os casos as meninas são mulheres trabalhadoras: em Me And My Gal temos uma empregada de balcão (que podia ser, sem tirar nem pôr, Ann Sheridan de They Drive) e em Big Brown Eyes temos uma Joan Bennett que trabalha como cabeleireira/barbeira e depois como jornalista de investigação. O que importa salientar é a forma como estas mulheres independentes acabam por ocupar a função dos homens – os detectives – sendo elas a resolver o caso. Em Big Brown Eyes há gestos muito marcantes nesta progressiva ocupação (e consecutiva incapacitação) dos terrenos masculinos – a certa altura, Bennett quer telefonar a denunciar algo que descobriu e o seu pretendente/investigador, Cary Grant, pede-lhe que pouse o telefone fazendo cair-lhe a chamada; ela não tem meias medidas e bate-lhe violentamente com o auscultador na mão. Ele resmunga, dizendo que adorava que ela fosse um homem (porque assim poderia bater-lhe de volta, insinuando portanto uma masculinidade ofendida) e ela responde: eu também adorava. Desta velocidade do diálogo (que encontramos várias vezes nas comédias de Walsh) surge esta resposta que diz tudo. O homem prefere tratar com outro homem porque aí estaria de igual para igual, enquanto que a mulher prefere tratar com um homem (a sério) porque assim poderá sobrepôr-se-lhe.
Em The Sheriff a ocupação é definitiva. Um vendedor de armas inglês decide ir fazer negócio para o velho oeste onde, com certeza, todos gostam de armas – ele que não sabe dar um tiro que seja. Um homem tão elegante e educado no velho oeste não terá grande futuro – daí que a carreta funerária o persiga constantemente – e, das duas, uma: ou é definitivamente parvo (o que é o caso) ou esconde uma destreza arrepiante. Pelo sim, pelo não, a população recebe-o e prontamente o usa como escudo humano fazendo dele o novo sheriff. Se o título lhe pertence, o facto é que a voz que comanda as hordas não é dele e não é sequer masculina: é de Jayne Mansfield. O verdadeiro sheriff veste saias e canta alegremente sobre o amor mas, quando são precisos dois tiros de pólvora para o ar e uma bota esporada, Mansfield está igualmente pronta. Como em The Revolt, temos de novo um cruzamento entre bordel e bar e de novo uma mulher dona do negócio com destreza e lábia para dominar todos os homens que por lá passam. Nem por acaso, ela encontra no desprotegido Kenneth More um homem que lhe faz esquecer as virilidades exacerbadas do vaqueiros com que tem que lidar todos os dias [note-se que já em Klondike ou Me And My Gal ou Big Brown Eyes os homem eram pouco inteligentes em comparação e em The Revolt a discrepância vinha da diferença de saldo nas contas bancárias]. Esta posição de desequilíbrio entre o o masculino e o feminino é constante e são quase sempre as comédias que pendem mais para o lado feminino.
Este desequilíbrio torna-se mais evidente ainda quando More – dono das armas – aprende com a formosa Mansfield como utilizar a sua própria arma. Considerando a arma como o utensílio cujo simbolismo sexual é primordial, então está bem de ver que esta aula de educação miliciana está mais perto da prática sexual do que do tiro ao prato. Esta apropriação das armas pelas mulheres aparece vezes e vezes sem conta nos filmes de Walsh e, através dela, as mulheres são vistas de lado pelos (outros) homens porque delas esperam apenas a anuência e o silêncio. Em Along the Great Divide (O Caminho da Forca, 1951) os homens comentam sobre o risco para a sua saúde que é jantarem as confecções de Mayo porque supõem que a força ‘masculina’ dela se oponha à ‘delicadeza intrinseca’ do seu género. Mas talvez o maior exemplo desta força pulsante numa mulher walshiana seja Lupino em The Man I Love.
Lupino em The Man é um funil de whisky e xerez, cantante de jazz e mulher livre, anda com uns fellas e entre cada canção emborca meia garrafa sem nunca se embebedar ou ficar alegre que seja. É incrível o quanto ela bebe e como isso passa despercebido ao espectador. Ao contrário de Cagney em The Roaring, onde o mafioso só bebia leitinho (e depois, já em queda, entrava nos licores), aqui Lupino vira para o leitinho já no final do filme porque quer experimentar coisas diferentes – não será difícil imaginar aquela menina a ser amamentada a bagacinhos. Em vários filmes de Walsh, principalmente os de piratas e marinheiros, os homens perdem muitas vezes a sua compostura embriagando-se descomunalmente. Lupino é um poço sem fundo que nunca perde a linha do horizonte – nem mesmo quando é rejeitada pelo seu amado (ela e Russell sofrem os horrores de serem demasiado imponentes). Onde as armas e o dinheiro se mostravam como sinal evidente da ocupação do lugar do homem, aqui é a bebida que tem esse papel. Curioso será reparar na cena final do filme, em que Lupino enfrenta um homem armado que se quer vingar da morte da mulher causada pelo patrão de Lupino. Ele está em baixo, no fundo das escadas, ela em cima, iluminada em contraluz. Ele traz a arma na mão e ela não tem nada. Ele sobe as escadas e ela vai em direcção dela, quando ele a ameaça com a arma ela dá-lhe um par de estaladas e manda-o para casa como se fosse um menino mal comportado (ao longo do filme refere-se repetidamente o facto de os homens serem muito infantis e andarem em zaragatas como o sobrinho de Lupino que tem sempre um olho negro). Aqui a superioridade já não se faz através de símbolos, não é o dinheiro nem as armas nem sequer a bebida, Lupino desarmada vale mais que qualquer batalhão. Esta composição do confronto final, em que o herói está no topo de um declive e o opositor no fundo, é recorrente (Gun Fury, High Sierra, Colorado Territory) e tem aqui particular força, como em The Sheriff, onde a mulher sobe ao relevo onde se encontra o homem e defende-o dos assassinos. Aqui a literalidade é total, a ocupação do território masculino é efectiva.
Com tudo isto, e como tenho dificuldade em encontrar um bom fecho, talvez não me saia mal se demolir tudo o que está escrito para trás e disser que a Walsh pouco importa o género, porque é o indivíduo que mais lhe interessa ou, citando a frase final de Gentleman Jim, quando Flynn diz para Alexis Smith “I’m no gentleman“, ela responde-lhe “In that case, I’m no lady“.
[1] “Walsh once said that he could never make a woman’s movie (“call up Bette Davis if you want!”). It may be because he was already doing them with men. Like the ephebe ‘Wayne of The Big Trail’, his men often bear the trappings of women. In the Flynn cycle (‘Gentleman Jim’, ‘They Died with Their Boots On’, ‘Desperate Journey’, ‘Objective, Burma!’, even ‘Silver River’) we shiver at the delicate irony the hero brings to his roles: in ‘Desperate Journey’, in the heat of escape from Nazis in hot pursuit, Flynn and his cronies (Ronald Reagan and Arthur Kennedy) sputter to a halt. While Reagan plunges a stick into the vehicle’s fuel pipe (in deliciously erotic close-up), shattering the narrative, Flynn calmly quips, “This is the first time I’ve run out of gas with a bunch of guys in the car!“ – Tom Conley
[2] Manuel Cintra Ferreira, em Raoul Walsh, o Contador de Histórias, procura encontrar paralelos entre a biografia do realizador e os seus filmes – tirando partido da autobiografia do realizador Each Man on His Time – e a certa altura propõe que as mulheres nos filmes de Walsh sejam a manifestação de duas figuras marcantes na vida da jovem Raoul. Por um lado, a figura pura e cândida – com leve origem irlandesa – onde o paralelo se faz com a mãe do realizador, por outro lado a mulher ardente e latina que corresponde à namorada que o Walsh conheceu na sua romaria pelo mundo quando esteve ‘sediado’ no México e onde aprendeu a montar – sendo através dessa capacidade que começou a trabalhar com o seu mentor, D. W. Griffith. Talvez seja uma boa explicação para a bifurcação da personagem feminina na referida parelha.