É fácil cair na esparrela de tomar a obra de um autor como autobiografia, aliás, é das coisas mais fáceis do mundo. Quantos artistas não se poderão queixar (e queixam-se) de serem mal ou excessivamente interpretados? Quantas obras não são reduzidas à vida dos seus autores? De entre todos os artistas, aqueles que sofrerão mais são os escritores e os realizadores (estou a esquecer-me propositadamente dos letristas de canções, provavelmente os mais visados, para não estragar esta introdução), os das ditas artes narrativas (não pretendo entrar na discussão se o cinema é narrativo, ou até se a literatura o é; neste caso, pelo menos, também é), uma vez que nas respectivas obras acontecem coisas e nas vidas das pessoas também (normalmente). E mesmo que não se confundam, nós espectadores, nós cinéfilos, nós que escrevemos sobre cinema, confundimo-las (acabo de abandonar a literatura que já não me dá jeito nesta frase final do primeiro parágrafo).
Uma figura tão ‘simples’ como a de Raoul Walsh parece prestar-se muito pouco a este tipo de discussões. Então o homem não queria só contar histórias e levar as filmagens a bom porto, sem grandes preocupações artísticas (a única inquietação era não exceder o orçamento, o que, convenhamos, é mais de um Gaspar do que propriamente de artista)? Os argumentos nem eram dele, quando muito metia uma ideia ou outra lá pelo meio (umas coisas sobre os olhos ou a falta de um deles). Quer dizer, pegar nos filmes de Woody Allen para tecer considerações sobre a sua vida é uma coisa, agora Walsh? Nem mesmo os políticos de autores conseguiram encontrar uma obsessão que percorresse a sua obra, vastíssima, é certo, mas a de John Ford também o é e com esse não foi tão difícil.
A verdade verdadinha é que essa história dos cineastas do cinema clássico americano serem uns brutos cujo único objectivo era a eficácia é um logro, que os próprios, uns bullshiters de primeira, divertiram-se a inventar e os criadores da política dos autores ajudaram a propagar, talvez para exaltarem a sua criação: só eles viam o que era invisível (lá vêm os problemas de visão). Ora, quando Walsh filma os irlandeses imigrados nos Estados Unidos é impossível não sentir que aquela é a sua gente, que encontra nessas personagens a fundação da sua própria personalidade. Mais, que faz uma espécie de autobiografia das suas infância e juventude: as famílias numerosas, a comunidade unida, a doce agressividade entre irmãos (de sangue e não só), a honradez e a nobreza. Será, porventura, uma versão extremamente romântica dos seus ascendentes, mais conhecidos pelo amor à bebida e a facilidade do murro (e durante muito tempo, bastante mal vistos, antes de chegarem novos imigrantes, que passaram a ser ainda mais mal vistos), que achamos, por exemplo, em The Bowery (O Terror dos Cabarets, 1933).
Essa Bowery não é a de Lionel Rogosin [On the Bowery (1956)], dos bums sempre à beira de uma cirrose e da perfídia dos outros alcoólicos, para quem uma noite era bem passada na cama de uma das deprimentes flop houses, hoje memória folclórica de um bairro cada vez mais asséptico e upscale. A Bowery de Walsh, nova-iorquino de gema, vive de bêbados, é certo, mas dos bêbados alegres dos Gay Nineties (última década do século passado; não é desse, é do outro, estou velho), altura em que donos de bares e os janotas do bairro podiam ser como estrelas pop e lutavam pelo amor do povo, cometendo proezas cada vez mais ousadas, de modo a afirmarem a sua supremacia em relação ao outro: para ultrapassar o seu rival, o Brodie de George Raft decide lançar-se da recém-inaugurada Brooklyn Bridge. Uma rivalidade que permitia tudo (apetece escrever: menos tirar olhos) – intrigas, mentiras, engodos vários, pequenas partidas – desde que a lealdade (mesmo entre ‘inimigos’) estivesse salvaguardada. Apesar das brigas (nos filmes, o conflito familiar é resolvido à pancada), o amor fraternal era importantíssimo para Walsh: o irmão George, cujo futuro como actor seria abortado pelo advento do sonoro, encontraria abrigo nos pequenos papéis mudos na obra de Raoul. Em The Bowery, encarna o grande pugilista John L. Sullivan (que, a acreditarmos na interpretação do magnífico Ward Bond uns anos depois, era bastante loquaz) unicamente como presença, mãos que esmurram o adversário e uma boca calada de toda a bazófia.
Como escrevia atrás, é uma visão romântica de uma época, que corresponde exactamente à infância e ao início da adolescência do pequeno Raoul, pelo que se supõe que terá sido um período feliz da sua vida. Seria assim outra vez no soberbo Gentleman Jim (O Ídolo do Público, 1942), o tal em que Bond reinterpreta Sullivan e desencanta a humanidade por debaixo da lenda do boxe (numa belíssima sequência final em que admite a derrota perante o galante Jim Corbett de Errol Flynn), situado noutra cidade, São Francisco, mas sobre a mesma gente. Reencontramos a diáspora irlandesa por terras americanas, desta vez, tentando conquistar a rígida sociedade (estruturada pelo dinheiro e menos pelo nome, ao invés do Velho Mundo) através de um esvoaçante jogo de pés (equivalente ao do próprio Walsh, que nunca se deixou esmagar pelo peso dos estúdios e soube sempre tirar o melhor partido das situações, por mais aviltantes que fossem) e sobretudo o indivíduo para além do tipo social (como o Carlos tão bem disse no último Filme Falado, precisamente sobre este filme), ou melhor, o tipo de indivíduos com o qual Walsh, que haveria de filmar outros – psicopatas, fracassados, almas perdidas -, se sente em casa.
De casa de seus pais, não haveria de sair menino. Mas não era ainda adulto quando, após a morte da mãe, decidiu partir para o mundo, tendo sido um pouco de tudo, verdadeiro homem dos sete ofícios: marinheiro, coveiro, assistente de cirurgião e cavaleiro. Esta última habilidade haveria de lhe abrir as portas da indústria do cinema, na altura sita em Nova Iorque, ainda menina ela e longe dos laranjais da Califórnia: como sabia cavalgar, foi escolhido para cowboyadas. Nestas lides da representação, acabaria por conhecer o seu “pai cinematográfico”, David Wark Griffith, de quem seria assistente (assim como John Ford, Erich von Stroheim, Allan Dwan – os “alunos” de Griffith) no famigerado The Birth of a Nation (O Nascimento de Uma Nação, 1915), tida por muitos como a obra fundadora do cinema americano (a outros enoja tão profundamente, devido à maneira como os negros são retratados, que isso pouco interessa). Nesse filme, foi também actor, duas vezes, se assim se pode escrever, pois interpretou (de barba e sem pala) John Wilkes Booth na breve e dramática cena de Our American Cousin em que Abraham Lincoln foi assassinado.
Raoul Walsh levaria as técnicas aprendidas com D. W. – a íris, a montagem paralela, o grande plano – (melhorando-as, segundo alguns) para o seu cinema. No mesmo ano de The Birth of a Nation, realizaria Regeneration (Regeneração, 1915), um dos seus filmes mais antigos que ainda resistem (o grande drama da primeira infância do cinema é tanto se ter perdido por incúria). Regressamos ao local do crime: a Bowery. Regressamos, é como quem diz – para Walsh era a primeira vez (e Regeneration foi filmado inteiramente no Lower East Side de Manhattan, numa tentativa de realismo pouco usual para o realizador) e, na primeira vez, viu a cidade da sua infância com algum negrume: os heróis são pequenos gangsters, não os gangsters à Cagney, Coppola ou Scorsese (e por isso é excessivo vislumbrar o nascimento de um género), antes patifes que preferem jogar às cartas e beber do que tentar uma vida respeitável (complicada naquela zona de Nova Iorque). Claro que no fim a violência eclode, meio estapafúrdia e cruel, personificada num vilão que, curiosamente e avant la lettre, usa uma pala. É curioso também verificar que Walsh se sentia bastante à vontade com a montagem paralela “criada” por Griffith na sua “obra-prima” e inventa uma intensíssima tensão numa das sequências finais, a de um salvamento mal sucedido.
Na década e meia seguinte, Walsh tornar-se-ia num dos realizadores mais prolíficos do cinema americano, assinando alguns filmes de nomeada como The Thief of Bagdad (O Ladrão de Bagdad, 1924), com Douglas Fairbanks, e What Price Glory (O Preço da Glória, 1926), que seriam alvo de bem sucedidos remakes nas décadas vindouras. Com quarenta anos, em Sadie Thompson (A Sedução do Pecado, 1928), para além do papel de actor e argumentista, coube-lhe o de galã (treze anos depois da sua última representação como Booth) ao lado da lânguida Gloria Swanson do futuro Sunset Boulevard (O Crepúsculo dos Deuses, 1950). Era para prosseguir a carreira no seu filme seguinte, Old Arizona (1928), quando um inesperado coelho lhe saltou para o vidro da frente do carro. Os estilhaços cegaram-lhe um olho e o actor morreu (Warner Baxter, que o substituiu, haveria de ganhar o Óscar de Melhor Actor; estava traçada a sina de Walsh, que nunca ganharia uma estatueta da Academia que ajudou a criar). Sobreviveu o realizador, na imagem que hoje retemos dele, de pala em riste.
Estava criado o mito do cineasta zarolho. Muitos anos mais tarde, a pala de Walsh voltaria às luzes da ribalta, ao nomear um site de cinema, que agora homenageia o (agradece ao) seu dono com este conjunto de textos.
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Se estivesse entre nós, Walsh sentiria orgulho por um grupo de jovens talentosos o ter escolhido para emprestar a sua pala de zarolho aos escritos sobre a sétima arte. E orgulho justificado diga como conclusão.