As duas sessões temáticas que o Panorama dedica à cidade de Lisboa permitem traçar uma interessante cartografia de alguns temas muito presentes no documentarismo contemporâneo português no seu apelo urbano: o interesse pela vivência das comunidades emigrantes (Domingo à Tarde); o registo das realidades em vias de desaparecimento como as vivências de bairro e seus habitantes (Sem Anos), seja da “pele” da cidade que se renova abandonando certos espaços (Abandonados); mas também exercícios mais pessoais que, tendo como pano de fundo a cidade, mostram a forma como esta afecta o estilo de vida (222- Rua da Rosa) ou como serve de cenário à construção de um espaço sinfónico urbano (Santa Maria dos Olivais).
Na primeira das sessões que vai ter lugar no dia 9, quinta-feira, pelas 19:00 no cinema São Jorge, além de Para um álbum de Lisboa de Faria de Almeida e Alfama, Bairro Típico de Lisboa de António Ruano e Miguel Spiguel, que não tivemos oportunidade de ver, registamos com uma certa ternura a homenagem de Lino de Oliveira e Marta Tavares à rua da Bica. Com música dos Dead Combo que melhor se adapta à Bica by night, Sem Anos, filme produzido pela ETIC, procura captar pela voz dos seus habitantes mais antigos essa noção de bairro que desaparece (as pessoas já não se conhecem) ao mesmo tempo que o espaço se abre a novos ritmos e quotidianos. Sem que o filme importe para o seu ritmo (tanto quanto devia) o subir e descer do elevador da bica como espécie de metrónomo urbano, o filme procura as histórias dos habitantes – uma nonagenária que ainda fala com o falecido marido sempre que sai ou entra em casa; outra que vai estender um pano à janela e que se depara com uma adolescente bêbada e a aconselha a ir para casa – e a mutação do espaço. Com música de Paulo Curado, Abandonados de Júlio Pereira propõe um curto exercício conceptual que busca o detrito, as lojas e os edifícios abandonados. Uma cidade abandonada, sem gente, que precisa desse momento de solidão decadente, como uma cobra que muda de pele para se poder renovar. A renovação é também a palavra de ordem do exercício de escola (ESTC), em registo pessoal, da realizadora em voz off Alexandra Côrte-Real. Uma visita à típica feira da ladra, em registo ainda demasiado apoiado na música (a guitarra, o fado, o jazz, o acordeão). Uma das vendedoras diz a dada altura que “os trapos dispensam conversa”, outra que “quer lá saber das coisas que deixam saudade a gente precisa é do dinheiro”. Alexandra parece não acreditar muito nesta conversa e vai seguindo os objectos, o coleccionismo e as pessoas que deixam histórias. Retrato leve, vagamente adolescente que ainda procura um olhar mais firme que dispense muletas na realização. Por fim, no registo pessoal ainda o olhar fechado (os planos raramente abrem) de Susanne Malorny sobre os Olivais. Montagem rápida, música de Brahms, a ecranização (viva Eisenstein) com alguns paralelos interessantes (as formigas, os prédios, Macdonalds, as texturas). O resultado é bizarro, ainda pouco polido mas que olha alguns pormenores do espaço com um olhar já cinematográfico. Interessantes planos picados dos guardas-chuvas à saída do metro. Busby Berkeley e Rutmann nos Olivais, como miragem, mas a caminho de qualquer coisa.
A segunda sessão dedicada a Lisboa no último dia da Mostra, dia 11, Domingo, à 19:00 no São Jorge tem como centro os habitantes de Lisboa. Na curta que abre a sessão, 222 – Rua da Rosa de José Ricardo Lopes, existe a possibilidade de espreitar a vida de um jovem que mora no Bairro Alto. Esse registo pessoal, cujo título (só o título) faz lembrar um dos melhores filmes de Chantal Akerman Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, tem como principal virtude usar a ingenuidade própria do ponto de partida como algo sem reverência de reprodução de modelos que cai na imitação barata e partir para a experimentação sem pudor. Às vezes ridícula, outras interessante, José Ricardo Lopes não hesita em colar roncos na cama com barulhos da noite do bairro alto, planos da programação da cinemateca, referências a The Dark Knight (O Cavaleiro das Trevas, 2008) de Christopher Nolan, ou a escolha de Lost in Translation em detrimento de The Godfather. Além das referencias cinéfilas e da ausência de filtro (como se o cinema fosse uma matéria ainda distante mas objecto de deslumbre) fica-nos na retina os momentos em que o protagonista arranja a casa (cuida dela) e sobretudo a sequência final, da sua casa vazia, luminosa, antes que chegue outra vez. É o tempo, a repetição (até há Nietzsche por lá) é o coming of age sem merdas. Domingo à Tarde, longa-metragem que fecha a sessão, apesar de ter o mesmo nome do filme de António de Macedo, anda longe dessas paragens. Num tom bastante convencional, formato televisivo, a obra de Cristina Ferreira Gomes acompanha um grupo de jovens paquistaneses que deixou o seu país e agora tenta a sua sorte em Portugal. Jogam críquete na Alameda, analisam sonetos de Camões na escola, esperam que a mãe lhes arranje uma esposa no país Natal, veem a sua aldeia no google maps. Típico documentário “de conteúdo” que vale sobretudo pela possibilidade de dar a conhecer o choque cultural desta comunidade de emigrantes e suas expectativas de futuro.
Nem de propósito, pelas 17:00 do próximo Sábado, dia 11, terá lugar no cinema São Jorge a sessão Televisão: Experimentar Normalizar que inclui A Fábrica de Mariana Bártolo, Vitor, Fecho da Fábrica de Cândida Pinto e Paisagens de Papel de André Pisca e Pedro Almeida. Destes três filmes não tivemos a oportunidade de ver o último, que já havia sido seleccionado para o DocLisboa na secção Verdes Anos.
O que nos propõem os programadores é olhar para os três filmes e perceber como três olhares distintos sobre um evento semelhante, o fecho de um fábrica, pode dar origem a formatos distintos no documentário de televisão. De que forma estão predefinidos tais formatos televisivos e que espaços disponíveis há ainda para explorar. Vítor, Fecho da Fábrica é uma reportagem de uma série que a SIC fez sobre vários Momentos de Mudança dirigida por Cândida Pinto que abordou entre outros Miguel ‘bate-punho’ Gonçalves, vencendo um prémio da SPA na sua última gala. Aqui conhecemos Vítor que tem uma fábrica familiar de têxteis à beira do encerramento e sobre como gere ele a fábrica, a família e a equipa de futebol que treina nos tempos livres. Houve no decorrer da série um cuidado, muito próprio de Jorge Pelicano, na fotografia das reportagens (repórter de imagem habitual da SIC e realizador de Ainda Há Pastores? e de Pare, Escute e Olhe!) e aqui não é excepção. Desse cuidado surge um desejo de ficção muito marcado, como o encenar da chegada dos trabalhadores, dos intervalos para o almoço ou na montagem paralela entre o decorrer de um jogo de futebol e a situação da empresa. No entanto, como é habitual nas reportagens televisivas, o sentimentalismo toma conta de tudo e esse trabalho de retoque (os filtros e as cores puxadas) desmorona-se com as lágrimas do senhor que vê o trabalho de duas gerações abalar por entre os dedos. Mas sendo isto polpa de horário nobre, não poderia acabar a reportagem sem que nos contassem como anda tudo depois do trágico evento: as funcionárias estão todas no desemprego ou com emprego precário e ele, o patrão, foi trabalhar para o estrangeiro. O esquema é demasiado visível, a cadências das coisas é toda aristotélica, o desejo de ficção é tanto que acaba por reduzir as pessoas a personagens, ainda para mais planas.
Quanto ao filme de Mariana Bártolo, o fecho d’A Fábrica já se deu há mais de 20 anos; a fábrica de tecidos de Santo Triso fechou no início dos anos 90 restando dela apenas as ruínas de um largo complexo que chegou a empregar mais de mil trabalhadores em simultâneo. A realizadora leva alguns dos seus trabalhadores a visitar o que resta dos edifícios e os seus antigos lugares de trabalho entrecortando os olhares esgazeados das pessoas – quem te viu e quem te vê – com as imagens de arquivo da fábrica ao longo dos anos, filmada com pompa e cores brilhantes. Desse choque entre o que foi e o que é que surge o filme; as pessoas descrevem o funcionamento da operação, descrevem as máquinas e os seus serviços e depois a câmara olha para as ervas daninhas e para para as paredes caídas e não encontra nada disso. Esta é a primeira metade da curta metragem, a segunda parte consiste na descrição do projecto de reabilitação do espaço num local de ‘sinergias’ entre outras fábricas de têxteis, escolas de design, lojas de moda, espaço de exposições, restauração e divertimento nocturno. Entram aqui entrevistas ao presidenta da câmara e aquilo que era um olhar delicado escorrega no vídeo promocional.
Em jeito de súmula recordo o filme de Harun Farocki, Arbeiter verlassen di Fabrik (Workers leaving the factory, 1995), em que a narradora nos diz que o cinema nunca gostou de fábricas, aliás sempre as repeliu. Logo com o primeiro filme La sortie des usines Lumière de Louis Lumière (ou o primeiro filme português, Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança de Aurélio da Paz dos Reis) o cinema filmava as pessoas a saírem das fábricas com uma pressa desnecessária e como uma criança que repete a sua primeira palavra, vezes e vezes sem conta, também o cinema filmou vezes e vezes sem conta a saída da fábrica, o seu abandono, como se o cinema só pudesse existir fora do regime militar/prisional do complexo fabril. Esta é a tese de Farocki e para isso recorre, além de Lumière, a Chaplin, Lang, D. W. Griffith e muitos mais. Estou em crer que podia muito bem usar os filmes desta sessão como exemplos disso mesmo. O cinema não gosta da fábrica e portanto só a poderá filmar em ruína ou em processo de falência.
Carlos Natálio e Ricardo Vieira Lisboa