Para além de um importante realizador, João Mário Grilo é um dos mais respeitados pensadores e críticos da imagem e do audiovisual em Portugal. Professor catedrático no Departamento de Ciências da Comunicação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, publicou várias obras de referência para a compreensão da história da teoria e da teoria da história da Sétima Arte, nomeadamente um importante manual de filmologia As Lições do Cinema, uma compilação de valiosas crónicas escritas para a revista Visão O Livro das Imagens e a sua tese de doutoramento A Ordem no Cinema: vozes e a palavras de ordem no estabelecimento do cinema em Hollywood. O excerto que aqui republicamos provém, precisamente, deste trabalho defendido em 1994 sob orientação de Eduardo Prado Coelho e publicado originalmente em 1997 pela Relógio D’Água.
Pequenas alterações foram efectuadas na transcrição realizada por Luís Mendonça, no sentido de preservar a continuidade da leitura e a adaptação ao “livro de estilo” do À pala de Walsh. Agradecemos ao autor a autorização dada para o relançamento desta reflexão em torno de um dos mais importantes filmes de Raoul Walsh.
Produzido em 1939, The Roaring Twenties (Heróis Esquecidos, 1939) não só é um belíssimo filme (o mais belo, de todos quantos Walsh realizou no seu período sonoro) como constitui um caso particularmente singular e significativo, devido à forma como nele se cruzam, de maneira tão insistente e obsessiva, a história da América e a história do próprio cinema americano.
No entanto, e para uma possível história do género «filme de gangsters», The Roaring Twenties é um filme tardio. Em 1939, já há muito se tinha feito sentir em Hollywood o impacto provocado pelo ressurgimento dos movimentos de censura – em particular, a instituição do Production Code Administration, presidido por Joseph Breen -; e se algum género houve que lhe tivesse sentido particular incidência os efeitos, esse género foi, sem qualquer dúvida, o filme de gangsters. As razões são compreensíveis (pelo menos, até onde a censura pode ser um fenómeno historicamente compreensível): a postura realista, amplificada pelo decalque de personagens como Tommy Powers (The Public Enemy), Rico Bandello (Little Caesar) ou «Scarface» Camonte (Scarface) de uma mitologia assustadoramente próxima e autêntica (Al Capone e Hymie Weiss) colocavam o género numa posição especialmente vulnerável face ao articulado do código Hays e dos seus 13 Mandamentos, principalmente porque, como o código expressamente referia: «A simpatia da audiência não deve nunca ser orientada para o crime, a delinquência, a maldade ou o pecado (1ª disposição das «Aplicações Particulares»)» e «a Lei – divina, natural ou humana – não deverá ser ridicularizada, nem deverá suscitar-se qualquer tipo de simpatia pela sua violação» (3.º ponto dos «Princípios Gerais»)».
Muito embora o ancoramento romanesco do gangster cinematográfico o enquadre, explicitamente, dentro dos limites e legalidade de certos códigos sociais (de honra, de moral), a verdade é que a sua perspectiva da vida urbana e, sobretudo, a fascinante inteligência criminal que impregna uma narrativa predominantemente subjectiva, susceptibilizaram indiscutíveis empatias entre a dimensão épica e trágica dos personagens e as perspectivas do seu público. O que poderia ser, à primeira vista, o esboço de uma promessa de arrependimento e redenção (o fundo «humano» de Tommy Rico, que aparece já, muito menos vincado, em Tony «Scarface» Camonte) acaba por se tornar, perversamente, um excelente amortecedor das suas propensões criminais. Juridicamente entendido como um fora-da-lei, o gangster encontrava, no seu problemático e trágico retrato cinematográfico, um olhar que, não só o tornava familiar, como até, parcialmente, justificado (dando-lhe, na maioria dos casos, uma caução afectiva). O género violava assim, pelo menos, três das principais premissas do Production Code: «O tratamento do crime contra a lei não deve: 1. ensinar métodos criminosos; 2. inspirar desejos de imitação em potenciais criminosos; 3. justificar ou tornar heróicos os criminosos».
A legalidade ameaçada do cinema exigiu então, partir de 1934, um recondicionamento do género em torno de certas variantes relativamente catalogáveis, mas todas elas tendentes a cercear-lhe a sua intrínseca ambiguidade e a pô-lo de acordo com o código moral e jurídico da nação: o gangster torna-se política (G-Men, Bullets of Ballots, Public Enemy’s Wife) ou o seu poder é virtualmente contrabalançando pela presença de um duplo «branco», com igual poder igual empatia (Manhattan Melodrama, Dead End, Angels With Dirty Faces).
Uma cronologia problemática: guerras do tempo
The Roaring Twenties responde também, à sua maneira, a esse esforço de branqueamento do gangster clássico. Mas enquanto o trajecto habitual vai no sentido de uma quase total maquilhagem (e, por vezes, de uma quase total descaracterização) do género, Walsh, Hellinger (autor da história original),Wald e Macauley (que assinam o argumento) optam por uma solução mais técnica, dando ao filme a forma de um flashback abissal, o que não só contribui para lhe circunscrever um lugar e um tempo de enunciação problemático e instável (garantindo-lhe assim um ponto de vista e de escuta que lhe possibilita olhar a história a partir de uma confortável e distante exterioridade), como também lhe cauciona o discurso, afastando-se do presente, isto é, da ordem nova instituída pelo new deal rooseveltiano, e pela política isolacionista dos Estados Unidos, em vésperas de mais um conflito mundial.
O «texto» de The Roaring Twenties releva de uma extrema complexidade, o que se bem traduz os compromissos políticos e as dificuldades do projecto, melhor justifica o muito do seu interesse e fascínio. Apoiado numa série de newsreels – «actualidades» -, que lhe vão entrecortando, sistematicamente, o percurso narrativo, e estabelecendo um padrão cronológico e um referencial histórico para o trajecto dos personagens, The Roaring Twenties começa por nos introduzir num passado relativamente longínquo (o final da 1ª Grande Guerra), para nos transportar, depois, até um passado mais próximo (1932), ano da revogação – por Roosevelt – da lei seca e, consequentemente, altura que marca o fim técnico do «gangsterismo» – como se sabe, grandemente suportado pelo mercado negro da bebida que, nos próprios termos do filme, passa a fazer parte integrante da «national scene». Razão tem, pois, João Bénard da Costa, quando escreve no catálogo Walsh (editado por altura do respectivo ciclo na Cinemateca Portuguesa): «Assim – apologia do isolacionismo, da neutralidade e de Roosevelt – o filme podia passar. Quanto mais violência houvesse, quanto mis “maus exemplos” fossem dados, mais as suas intenções resultariam, provocando o susto e horror do público e levando-o à condenação das origens de tais desgraças: a guerra e a política dos anos 20. Os “gangsters” passavam a ser – segundo o inefável título português – “heróis esquecidos”. “Heróis” da guerra, “esquecidos” por uma sociedade e por políticos corruptos, gerados pela própria guerra».
The Roaring Twenties não se limita, portanto, a rever o género, acomodando-se às exigências da censura política e moral dos novos tempos; o engenho da construção de Walsh e Hellinger – a começar pela projecção no passado da história do gangster Eddie Bartlett (James Cagney) – faz dele um filme retrospectivo, uma verdadeira peça de teoria, se não do género, pelo menos de um estilo particular de narrativa, de formas e de personagens. Entender assim os «ruidosos» anos 20 do título original não é, simplesmente, entender as peripécias da história de Eddie Bartlett, um desses «heróis esquecidos» da guerra (e em vias de o ser pelo cinema), que se converte – pelos mecanismos da exclusão social que se seguem à crise 29 – num «big shot» do submundo urbano; é também entender o cinema desses anos e, muito particularmente, a qualidade elíptica e seca do estilo Warner dos começos do sonoro. Como afirmou Ethan Mordden, The Roaring Twenties não é uma retrospectiva dos anos 20, mas dos anos 30, tal como foram experimentados pela Warner.
Ao colocar a história de Eddie Bartlett no passado, Walsh tem a oportunidade única de fazer o derradeiro filme desse estilo, antes que um outro cinema lhe venha ocupar o lugar, como justamente Eddie diz a George Halley (Humphrey Bogart), no confronto final que os opõe, e os conduzirá à morte: «There’s a new kind of cinema you don’t understand». Figuras do passado – e passe a saborosa ironia “ruidosa” do título, para a década mais “muda” do cinema -, os personagens de The Roaring Twenties são uma evocação fantasmática dos pequenos/grandes mortos desse tempo (da vida, do cinema), uma ocasião única de os reencontrar, de os imortalizar, num reflexo analítico e a partir de um futuro que, paradoxalmente, nunca chegaram a conhecer.
A complexidade estrutural de The Roaring Twenties deriva, justamente, desta ambiciosa postura temporal – uma enunciação colocada no futuro (num presente teórico – 1940), para um enunciado do passado que se vai experimentando como presente no seu próprio devir: por mais que o filme nos lembre que nos fala de uma passado, jamais podemos deixar de o viver como presente, até porque a inclusão periódica das actualidades inscreve uma grande ambiguidade na ossatura cronológica do filme. Desde logo, a primeira sequência – espécie de prólogo narrativo – transporta-nos numa alucinante regressão temporal, que dura 22 segundos e 22 anos: de 1940 a 1918, isto é, do começo da Segunda Guerra Mundial a Abril de 1918, ao final da Iª, quando «um milhão de jovens americanos se vêem envolvidos numa guerra que, segundo lhes foi dito, há-de garantir o futuro e a sobrevivência da democracia». Os políticos – Roosevelt, Hitler, Mussolini – são os actores deste prólogo vertiginoso. A motivação desta curtíssima sequência é tripla: em primeiro lugar, delinear os trâmites do jogo enunciativo, embraiando-o num comentário exterior, predicativo por natureza, e moralista por intenção, fortemente caucionado pela montagem das imagens documentais e pelo sistema de sobreimpressões (o recuo no tempo é indicado pelas datas sobreimpressas e pelo rosto dos políticos), mas que não está isento de um certo cinismo no tom, nem de uma certa paródia na forma (numa exacta duplicação do filme de actualidades, que o devia ter precedido no programa); em segundo lugar, como já em cima referimos, isentar a enunciação do pronunciamento censurante, salvaguardando a imagem rooseveltiana da mudança e alertando para os perigos de um retorno aos tempos de opróbrio e corrupção (o ponto de interrogação, colocado no lugar do futuro); finalmente, colocar-nos perante os outros (porventura os mais verdadeiros) «heróis» da história – «the forgotten man» -: o soldado anónimo que combate nas trincheiras do Somme, tão longínquas na distância quanto no tempo.
No teatro terrestre da guerra estão três soldados: Eddie Bartlett (James Cagney), George Halley (Humphrey Bogart) e Lloyd Hart (Jeffrey Lynn). Travam uma última batalha contra um inimigo permanentemente invisível (pressentido apenas em off), nas próprias vésperas do Armistício. A cena é um remake perfeito da situação de guerra de The Big Parade (A Grande Parada, 1925), e que Walsh toma por referência directa e paródica (muito mais – dir-se-ia – do que o autêntico campo de batalha). A começar pela dita invisibilidade do inimigo e a acabar na relação entre os três companheiros de armas, que duplicam, de modo cristalino, o episódio nocturno de Belleau Wood e a belíssima sequência do tabaco de mascar (com as mesmas referências à antinomia medo/coragem). Começando onde acabara The Big Parade, The Roaring Twenties introduz-nos num universo abstracto e colectivo, marcado pela juventude e por uma certa imaturidade dos sentimentos, num cenário apocalíptico, ao qual o som asfixiante dos bombardeamentos imprime, precisamente, uma desconcertante marca de realismo.
A luz do dia traz, no entanto, consigo, uma outra claridade, uma definição mais precisa das motivações individuais de cada um. O colectivo desfaz-se, momentaneamente, num admirável prenúncio do que se avizinha, quando Bartlett, George e Lloyd, entrincheirados numa casa em ruínas, respondem ao fogo dos alemães. Cito, de novo, Bénard da Costa, para quem esta sequência tem uma importância fundamental, na definição da economia estilística de Walsh e na concisão extrema dos meios narrativos: «Com a câmara fixa sobre Bogart e Lynn (“o miúdo do colégio”) apercebemo-nos como o inimigo avança. Grande plano e hesitação de Lynn. Bogart pergunta o que há. Lynn responde que “ele não deve ter mais de quinze anos” (ele é o inimigo que Walsh nos não mostra, eliminando assim qualquer sentimentalismo ou fácil ponto de vista). Bogart dispara e diz: “Já não fará dezasseis”. A definição do seu personagem está contida tanto no espantoso diálogo como no plano». Ao contrário de The Big Parade, portanto, onde a morte do jovem soldado alemão havia configurado um pathos de enorme carga dramática, para nele depois inscrever um poderoso retrato ecuménico da guerra, The Roaring Twenties desmantela, na coralidade dessa cena – em que, justamente, a experiência de Lloyd o posiciona numa frágil contraposição a George -, e na elipse que torna o inimigo periférico, essa visão traumática do campo de batalha, colocando, no seu lugar, a racionalidade fria e calculista de um homem que simplesmente mata para não ser morto por um amigo invisível que apenas o olhar (e as balas) fazem existir.
O bloco da guerra – que ocupa os primeiros minutos – de The Roaring Twenties não só indica que o filme sabe o que é mas, sobretudo, que sabe o que não é, estabelecendo entre essas duas polaridades (que têm tudo a ver com a própria história do cinema e das suas formas) um espaço de incompatibilidade supra-genérico: e que este filme de gangsters tenha precisamente aberto com uma cena típica dos “filmes de guerra” (outro dos géneros a que Walsh se dedicou) é tudo menos indiferente.
A guerra tem, de facto, em The Roaring Twenties, uma importância dramática decisiva, a ponto de ser ela que, em última análise, acaba por estruturar a visão de Walsh sobre a América, na transição da década de 20 para a de 30. O retorno a casa dos três soldados – e, em especial, o retorno a casa de Eddie Bartlett, que é quem nos conduz nesse trajecto – é também o retorno a um teatro de guerra urbana, onde a corrupção, os negócios escuros e o submundo do crime ditam as suas leis sobre um país esfacelado pela crise económica e a depravação social. Em certo sentido – e mesmo no mais óbvio dos sentidos – Eddie Bartlett é um homem permanentemente incorporado: em vários exércitos, vestindo diferentes uniformes, mas combatendo sempre a mesma guerra; uma guerra elementar que o comentário-off do segundo bloco de actualidades chega mesmo a nomear – «numa outra frente de balha, a mesma luta, a luta pela sobrevivência» – e que Bartlett acabará por perder, regenerando-se, no entanto, na morte, na majestosa pietá que encerra o filme.
A guerra originária – a dos campos de batalha franceses – ecoa, portanto, em The Roaring Twenties como um fantasma avassalador e unificante. Bartlett e George são personagens de uma morte adiada ou – o que não é, precisamente, o mesmo – de uma morte que o filme adia (porque – não o esqueçamos – a enunciação lhe conhece o destino). Incorporado primeiro no longo regimento de desempregados, escolhendo depois alistar-se no criminal army do gangsterismo passando pelo batalhão inglório de taxistas da grande cidade (com direito a uniforme e a distintivo), para acabar no anónimo exército dos mortos, a tragédia de Eddie Bartlett resume-se a essa incapacidade de viver fora da «rede», à condenação a uma perpétua sociabilidade, que nem mesmo o amor por Jean Sherman (Priscilla Lane) consegue resgatar. «I’ll get out», a impossível promessa que Eddie faz a Jean, entregando-lhe um anel, no único grande momento romântico do filme, resume lapidarmente o trágico destino e toda a perversidade da mensagem que o filme esconde. Nunca, como aqui, as leis da sociabilidade justificaram tanta perdição; nunca, como aqui, as leis da sociabilidade justificaram tanta perdição; nunca, como aqui, a grande cena urbana se aproximou tanto de um inapelável teatro da morte, retratada de um modo poderoso, desafectado e, por essas duas razões, assustador.
Por tudo isto é difícil ajustar The Roaring Twenties ao figurino estritamente limitado – e provavelmente utópico – do «filme de gangsters». É certo que o filme trata, na sua maioríssima parte, da «ascensão e queda» de um gangster nova-iorquino, que chega ao mundo do crime quase por acidente para dele ser despejado com o fim da Proibição; é certo também que as cenas de acção são manifestamente devedoras dos ambientes característicos do género (e que lhe fizeram muito da fama), particularmente o impressionante tiroteio contra o gang mafioso rival; é certo, finalmente, que o cenário nocturno e urbano da delinquência clandestina, auxiliado, pelo habitual vitalismo de Cagney e o soberbo under-acting de Bogart, é facilmente reconhecível como uma forma arquétipa do género. Mas se tudo isto está certo, e suficientemente exposto no próprio desenvolvimento dramático do filme – na sua mais directa visibilidade -, não é menos certo que The Roaring Twenties é também um filme habitado por uma estranha e amarga nostalgia. É qua se Walsh parece saber muito bem de onde o género saiu – de personagens (de criaturas) e de um cinema que emerge dos «ruidosos» anos 20 -, parece saber muito melhor onde ele termina: na legalidade optimista e higiénica dos anos 30, que não só coloca no desemprego, na prisão, ou numa reciclagem improvavelmente regeneradora, os verdadeiros «bandidos» que construíram a fama e a fortuna numa América predominantemente ilegal, como ameaça expulsar do cinema (pela censura, pelas leis do mercado) as figuras que outrora lhes deram corpo e substância: personagens, actores, histórias, modos de filmar. É por isso – por esse paralelismo constante e surpreendente – que a já citada fala de Cagney para Bogart, na cena final, assume uma tão grande importância: «there’s a new kind of cinema you don’t understand». A guerra que estes homens travem é, sobretudo, uma guerra contra o tempo.
Passado, presente e futuro: retrovisões na máquina do tempo
Esse incrível sentimento nostálgico, que faz com que The Roaring Twenties seja, simultaneamente, um portentoso gesto de retorno e um dramático «gesto de previsão», é fortemente suportado pelas duas figuras femininas: Jean Sherman (Priscilla Lane) e Panama Smith (Gladys George), também elas figuras de uma decisiva contraposição temporal: a primeira, que descobrimos logo a seguir à chegada de Eddie (ela era a sua misteriosa e juvenil «madrinha de guerra»), é uma antevisão do futuro; a segunda, que Eddie encontra, acidentalmente, na cidade, e que o introduz no submundo do crime, é uma emanação do passado.
Bela, juvenil e provinciana, Jean anuncia a redenção próxima de um país afundado no vício e na corrupção: anjo branco, puro e virginal, que Eddie reencontra – já mulher feita – alinhada na fila (uniformizada) de coristas de um espectáculo musical, ela desce ao inferno de Cagney (a visita à destilaria em que o álcool é viciado) de um modo desassombrado, quase inocente. Figura desconcertante, Jean Sherman é o rosto visível e espectacular da criminalidade – ela será a vedeta musical do saloon de Panama -, mas que jamais será tocado por ela, ou a chega, sequer, a reconhecer (como jamais chegará a conhecer Eddie como homem).
Panama Smith é, bem pelo contrário, o símbolo vivo da década e, também, da decadência: é ela quem produz Eddie como gangster, é ela quem o cria como personagem do presente (começando, desde logo, por o implicar no tráfico de bebida), é ela quem o acompanha na sua queda irreversível e sem esperança. À infantilidade juvenil e cruel de Jean, Panama contrapõe uma devoção maternal e vigilante, consagrada na soberba pietá final, quando segura Eddie moribundo nos braços e lhe «escreve» o epitáfio: «he used to be a big shot».
Entre estas duas mulheres que o olham de modo tão diferente (e tão oposto), entre um país que desaparece e outro que renasce, Eddie Bartlett é um personagem condenado à perdição. O dramático desfecho de The Roaring Twenties é uma ilustração admirável desta teia complexa feita de múltiplas alteridades e que os personagens femininos desequilibram brutalmente.
Depois do assassinato de Danny – um amigo de infância de Eddie -, Jean decide abandonar Eddie e o mundo que o cerca, para se ligar a Lloyd, o antigo companheiro de armas («o miúdo do colégio»), que entretanto também optara por desertar do exército do crime para prosseguir a sua carreira de advogado. A sequência que confirma este primeiro desmembramento da rede é belíssima; tanto pela extrema economia de meios, como pela atmosfera intensamente dramática que Walsh lhe imprime: Jean havia dito a Lloyd para a esperar no exterior do clube e é, precisamente, no exterior que Eddie os apanha, quando se prepara para entrar num táxi. Num impressivo travelling lateral, Walsh acompanha Eddie até junto do par de namorados. Eddie pára e diz a Jean para se afastar – «Beat it» – e agride Lloyd com um soco na cara; ele cai para o chão sem sequer ousar responder, e levanta-se. Depois, pergunta simplesmente a Eddie «o que queria ele provar». Eddie reconhece, num lampejo de lucidez – e numa suspensão garantida pela montagem de um silencioso campo-contracampo (de um lapso) -, que aquelas não são nem as suas palavras, nem as suas acções, e que o mundo daqueles dois e o seu próprio mundo se regem por leis e valores irremediavelmente diferentes. Afasta-se então, desculpando-se, deixando Jean e Lloyd entregues a um futuro que Walsh reserva, numa fabulosa elipse, para as sequências finais.
Depois da subida de Roosevelt ao poder, e do consequente final da Proibição, a rede do submundo do crime é massacrada por uma nova ordem e o branqueamento da América origina sérios reveses no universo ilegal do gangsterismo. Há aqueles que conseguem fazer fortuna nas sequelas do crash de 29 (como George, que compra a frota de táxis a um Eddie à beira da bancarrota), mas há também os outros (muitos) que são cilindrados por uma economia que deixa pouca margem a alternativas «negras», e os deixa sem meios para pagar as célebres protecções, ficando por isso à mercê da intervenção policial. Eddie e Panama estão entres estes últimos, e o final do filme deixa-nos ver o ex-gangster conduzindo o único táxi que George lhe deixou. É precisamente nessa condição que Jean o reencontra, por acidente – e é curioso ver como os táxis, sinal inequívoco da malha urbana, são, neste filme, a ocasião, por excelência, do acidente e do acaso.
Esta curta sequência – em que Eddie, na sua condição de motorista, conduz Jean a casa – é das mais belas e das mais bem estruturas de todo o filme, porque condensa – muito menos no diálogo do que no modo de filmar – tudo o que o filme não cessa de mostrar desde as primeiras imagens: a projecção temporal das histórias de cada personagem – a cada um, uma história e um tempo -, como a chave de todas as dissensões e rupturas, de todas as proximidades e distâncias.
Walsh serve-se, aqui, do táxi, como uma curiosa máquina do tempo, apoiando-se na dicotomia interior-exterior. Jean está sentada no banco de trás, recortando-se no limite da janela traseira do automóvel (através da qual vemos o exterior) e reflectindo-se, simultaneamente, no retrovisor de Eddie. O que isto quer dizer, é que Eddie só pode ver Jean reflectida no isolamento emoldurado do retrovisor, olhando, portanto, para trás, enquanto ela só o vê, de costas, o olhando para a frente. Esta oposição é, de resto, magistralmente exposta no plano em que o reflexo de Jean no retrovisor ocupa a metade superior do enquadramento , enquanto a metade inferior é preenchida pela cidade em movimento, olhada através do pára-brisas do carro. O plano é curto, mas inscreve na topologia da imagem o logro fatal de Eddie, assaltado por uma verdadeira miragem temporal, que não reproduz – e este pormenor é interessante e decisivo – uma qualquer subjectividade psicológica (uma visão), mas o modo realmente físico (óptico) como o personagem se inscreve no espaço e (porque é essa colagem que o filme nunca deixa de promover) se posiciona no tempo: o que vemos que Eddie vê é, portanto, exactamente, tudo aquilo que ele (não) pode (deixar de) ver.
A retórica infernal desta sequência faz com que o espectador acabe por ter um acesso privilegiado ao único dos pontos de vista que os personagens não podem ter: o do exterior da viatura, onde a toma de vistas justifica, narrativamente, o dispositivo. À excepção desta tomada de vistas – que nos diz que tudo aquilo se passa dentro de um carro em andamento -, Eddie e Jean são personagens que, de facto, experimentam a história de maneiras diferentes e opostas, lembrando muito o que Claudel dizia das viagens de comboio: o passageiro que vai sentado no sentido da marcha olha para o futuro, enquanto o que lhe está à frente é forçado a olhar para o passado. Que importa pois, que Jean diga a Eddie que está casada com Lloyd, que têm um filho de quatro anos, que Lloyd faz uma carreira brilhante de advogado, no gabinete do procurador, que o táxi se dirija para o elegante subúrbio de Forest Hill, onde o casal mora? Que importa tudo isso, qua o real se apresente em cada palavra, se Jean ali está, retrovisionada num ecrã de perdição, como a mais perfeitas das imagens do passado e a mais cristalina mise en scène das imagens passadas.
Se a sequência do táxi é marcada por uma dissonância elementar entre a palavra e a imagem, a sequência que se lhe segue é uma brutal e, mais uma vez, cruel reentrada no presente. Eddie transporta os volumes para dentro da sala de Jean, conhece o filho de Lloyd, e é mesmo forçado a cumprimentar o pai, quando este chega a casa, subitamente. A harmonia familiar que Walsh nos faz ver só encontra paralelo no optimismo do cinema de Capra com toda a probabilidade «the new kind of cinema» que está prestas a irromper e que é o verdadeiro objecto da altercação entre Eddie e George.
Personagens do teatro rooseveltiano, Jean, Lloyd o filho anunciam um «mundo novo», mas também um cinema novo, feito de outros temas, outras histórias, outros personagens e com outras exigências. O que o final de The Roaring Twenties nos faz saber, é que nesse outro mundo e nesse outro cinema – para os pequenos e grandes dramas da gente de Forest Hill -, não há lugar para criaturas como Eddie, George ou Panama, nem para as suas histórias, nem para os seus desejos. Fá-lo, no entanto, com uma sublime ironia.
Delegado do Ministério Público, Lloyd garantiu a estabilidade do seu mundo familiar, montando processos contra antigos «colegas do crime» (Walsh economiza a exploração de toda essa hipocrisia). Entre os processo que está a instruir, encontra-se, precisamente, o de George. Este, procurando precaver-se, ameaça Lloyd de morte, e é por isso que Jean vai procurar Eddie ao fundo da sua própria degradação, uma semana depois do encontro no táxi. Pede-lhe que vá falar com George e que este lhe poupe o marido. Eddie responde-lhe que essa é a lei, que quem come, come para não ser comido, «e que se estivesse no lugar de George faria a mesma coisa». Mas, depois da saída de Jean, e perante a insistência de Panama, Eddie decide-se a reencontrar George. Na entrevista, Eddie mata George e, em consequência disso, é morto por um dos membros da quadrilha. Expira no colo de Panama, que responde, enquanto isso, ao inquérito do polícia de giro: «Quem é? Qual a profissão?. «He used to be a big shot» será a resposta e mote para a grua final.
É difícil imaginar epitáfio mais cínico e mais digno para o cinema que fez do gangster – e dos valores e acções que representa – uma das suas criaturas de eleição. Falando no futuro de Eddie e George – que é um futuro a que nenhum dos dois chega – Walsh conhece mais do que expõe na cena do presente. Sabe, por exemplo, que o desaparecimento de Eddie e George – e, mais tarde, em High Sierra (O Último Refúgio, 1941), a morte solitária do gangster Roy Earl (Humphrey Bogart) – correspondem a imolações quase voluntárias de personagens que escolhem, simplesmente, sair de cena, para tornarem possível uma outra: a do melodrama e da comédia burguesa e familiar. Toda a amarga ironia contida no final de The Roaring Twenties (que o torna, nesse sentido, um filme prospectivo) resume-se ao simples facto de ser Eddie – e o mundo de valores e formas que arrasta consigo – a assumir o lugar de anjo-da-guarda de Jean e Lloyd e, através deles, de garantia da estabilidade e reprodução de um diferente modelo narrativo. O que drasticamente muda, nesta clivagem, é a própria natureza especular do cinema de Hollywood: deixando de reflectir a dimensão uniformizante e indistinta das massas (em que o sujeito – predominantemente pensado como sujeito sociológico – sobressai por acidente), Hollywood passa a espelhar anseios e dramas individuais de uma comunidade burguesa centrada num paradigma de diferenciação social e do isolamento psicológico.
Formas, formatos e uniformes: Para uma essência do género
Compreende-se, assim, por que razão a inteligibilidade histórica do género cinematográfico só começa a ganhar um real valor problemático a partir do ponto em que as fronteiras entre os géneros se esbatem. É nessas zonas de permeabilidade – que o próprio sistema favoreceu, em grande medida pela precedência organizacional e corporativa do estúdio – que a prática do género, como prática de um pequeno formato, ganha uma dimensão produtiva, quer dizer, põe a funcionar, a um nível de grande proximidade com a matéria fílmica, mecanismos perversos de intercâmbio e cruzamento entre diferentes estruturas narrativas e diferentes – quando não opostos – modos de as olhar. No caso de The Roaring Twenties, estamos em presença de um filme que faz um uso intenso e extenso do programa generalista, rentabilizando, ao máximo, as mais-valias de reconhecimento que cada género suscita junto do público, facto que lhe autoriza a utilização pragmática de uma maquinaria narrativa extremamente económica e condensada.
A consideração de The Roaring Twenties como um típico filme de gangsters peca assim por redutora. A menos que se considere o género em causa – e, como ele, todos os géneros – como um modo, entre outros, de actualizar uma visão do mundo que os transcende. Se é verdade que, em The Roaring Twenties, os géneros se cruzam e harmonizam – começando no filme de guerra e acabando no melodrama -, segundo o modo maior da atmosfera do filme de gangsters, não é menos verdade que, de entre toda a produção da Warner dos anos 30, se propaga uma visão mais geral, mas forçosamente genérica, que tem por objectivo a produção de um sujeito cinematográfico profundamente identificado como uma perspectiva particular e epocal do modo de vida americano.
O que se passa de específico no caso Warner é que esse sujeito (que deve ser entendido como uma relação harmónica entre certas personagens, certos destinos e certas modalidades de os figurar) tende, naturalmente, para o género (para qualquer género). Em parte, porque se trata de um sujeito padronizado que, em regra, escolhe habitar um vácuo psicológico virtualmente desprovido de singularidade (e veja-se, a este título, como na sequência do anel, é Eddie quem diz a Jean por que razão ela não o pode aceitar e não, como seria «natural», o contrário), mas sobretudo porque se trata de um sujeito uniforme e, mesmo ocasionalmente, uniformizado (como vimos, para The Roaring Twenties), inapelavelmente condenado, portanto, a seguir rotas indiscriminadas e previsíveis de sociabilidade.
Dizer, portanto, que esta figura – geral e genérica -, atravessou o grosso da produção da Warner na primeira metade dos anos 30, equivale a dizer que, aceitando o seu modo genérico de ser (a sua existência ontológica), ela trespassou os géneros, representando-se através, e em cada um deles. O que faz, portanto, com que um musical da Warner tenha mais afinidades com um filme de gangsters do mesmo estúdio, do que, digamos, com um musical da MGM , não é só o peso específico – e que está longe de ser negligenciável – de uma visível identidade corporativa (que no fundo sempre acaba por revestir o perfil de certas opções de produção); é também a dimensão da figura genérica como modo narrativo de existência da coisa fílmica, reconhecível no automatismo instantâneo da parcela, mas (impre)visível na transcendência e globalidade do Todo. O trabalho de Busby Berkeley na Warner, de 1930 e 1939, funciona como uma perfeita ilustração desta natureza permeável do género. Também nele se vêm espelhar os sinais típicos de uma América socialmente deprimida e o contorno paradoxal de uma utopia geométrica abissalmente deslocada em relação ao optimismo individualizado dos personagens singulares e excepcionais que marcaram, por exemplo, os filmes de Capra ou as formações intensamente dramática do cinema de Ford.
João Mário Grilo