A certa altura o padre Javier Bardem, numa das suas homilias, faz um sermão sobre a necessidade de agir, bem ou mal. The man who makes a mistake can repent, but the man who hesitates, who does nothing, who buries his talent in the earth, with him he [Jesus] can do nothing. Malick terá escrito estas palavras e devem ter sido elas que conduziram este recente projecto. To the Wonder (A Essência do Amor, 2012) é o vai ou racha do cinema de Malick, e parece que rachou.
Por entre as informações dos créditos finais aparece-nos a informação de que foram utilizadas imagens captadas no decorrer da rodagem de The Tree of Life. Embora seja talvez apenas um método cosmético, há algo de simbólico na escolha: To the Wonder parece querer capitalizar o sucesso de The Tree of Life (ajudado pela retoma do trabalho com Emmanuel Lubezki que fotografou ambos os filmes – e fotografará os dois novos filmes de Malick que se prevê estrearem ainda este ano) só que actualizando-o e retirando-lhe aquilo que fazia dele grande – a ideia de que com The Tree of Life o cinema acabava, porque se tinha filmado o universo todo e já não sobrava nada. Talvez tenha sido mesmo isso: ao filmar tudo, Malick ficou sem matéria de trabalho e por isso passou a filmar o nada, os vapores, a espuma.
A câmara saltitante de Lubezki/Malick está constantemente a enquadrar os seus actores apenas em fragmentos: uns lábios, um torso, um pescoço fino e umas mãos, um ombro e por ai fora, como se a câmara amputasse os actores. A Malick já pouco lhe interessa o actor (e a personagem – que personagens?) que tem em frente da câmara, interessam-lhe apenas os corpos – mas aos bocados. Já pouco lhe interessa contar uma história, ou construir uma metáfora, ou simplesmente inventar uma montagem paralela entre o seio familiar e o seio cósmico; agora a Malick só lhe interessa filmar os interstícios dessas coisas, os entretantos – To the Wonder parece um filme feito apenas de pillow shots. Por uma vez a tradução de um título original para português não podia ser mais acertada, todo o filme é já apenas uma essência, um perfume (e alguém terá comparado o filme a um anúncio de perfumes estendido por duas horas).
Mas se isto não faz do filme melhor ou pior per se, o que garante é um resultado onde todos os maneirismos de Malick se tornam mais evidentes. Um dos aspectos característicos do cinema do realizador é a filmagem em contra-picados e a constante contra-luz. Mas se nos outros filmes isso podia passar como o choque entre o indivíduo e a natureza (o insignificante homem contra a enorme Natureza luminosa), aqui o que sentimos é uma falsidade em todas essas escolhas. A cada contra-picado sentimos que Malick se rebaixa (numa falsa humildade insuportável) e que a contra-luz só realça (como se a cada enquadramento ele nos estivesse constantemente a dizer que está ofuscado, que não sabe nada, que é um pobre ignorante). Esta posição de aviltamento repetido torna To the Wonder numa insuportável demonstração de falsa modéstia; ele que filmou o universo num gesto definitivo de quem tem todas as repostas ressurge neste filme sem saber nada mais do que as indicações de um qualquer livro de auto-ajuda.
No entanto não se poderá deixar de notar algo que parece significativo no trabalho de Malick, o facto de que este é o seu primeiro filme passado nos dias de hoje. Até agora todos os seus trabalhos eram filmes de época (industrialização, renascentismo, anos 50), neste, pela primeira vez, retrata-se a actualidade descrevendo o desemprego na Europa, a poluição causada pela extracção de petróleo, a emigração ilegal, a pobreza e exclusão social no Estados Unidos. E talvez seja daí que surge o melhor do filme; ao conhecer os bairros pobres e filmando cada pessoa com o panteísta olhar malickiano, ele encontra nos excomungados da sociedade um desejo documental que talvez seja a alternativa para o cinema do realizador – porque aí não poderá ele filmar reclames a perfumes.