“A glória de um poeta depende da excitação ou da apatia das gerações de homens anônimos que a põem à prova”, escreveu Borges. Digamos também que a glória da vida mesma dependa da excitação ou da apatia com que homens anônimos reagem diante dela. Em alguns casos, esses homens são chamados poetas.
Os filmes de Raoul Walsh trazem a vida em seu curso natural, mas ao mesmo tempo guardam o afeto típico de uma pessoa de idade que já viveu aquilo e evoca tudo com emoção. Há um distanciamento velado, uma “antevisão”, que confere ao momento um valor que ultrapassa a sua qualidade ordinária, uma aura. Walsh extrai isso talhando as coisas no próprio momento em que as presencia, como fazem os modernos: Rossellini, Bresson, Costa, Gray. A sua obra é pródiga em exemplos de vidas colocadas em perspectiva e revestidas pelos mistérios dos destinos que elas encontram.
Em Colorado Territory (Golpe de Misericórdia, 1949) narra-se a velha história de um fugitivo no Velho Oeste que descobre que o mundo que ele deixou para trás ao ser preso não existe mais. A vida dele, enquanto destino bem definido, agora é como o contorno das montanhas vistas na tela: tons de cinza cujos limites se confundem com o céu. A mulher com quem ele se casaria está morta. Aquela com quem ele pensou em se casar mostra-se uma menina tola e egoísta. Resta-lhe a menos improvável das escolhas, a bela e sensual Colorado, prenúncio e confirmação de uma vida que jamais poderá ser de repouso como ele sonhava.
A duração de Colorado Territory corresponde ao hiato em que esse homem percebe a mudança de foco da sua paixão. No entanto, o reconhecimento pleno dessa condição será tão fulminante quanto eterno, pois virá colado à morte dele e de Colorado. A vastidão, um tiro, um zoom: McQueen não cansou de se mostrar ciente de que mais cedo ou mais tarde morreria, porém de fato não acreditava que ainda seria possível morrer de mãos dadas com uma mulher que ele amasse, constituindo assim uma nova realidade a qual ele não esperava, e que no entanto aparece como a única possível.
Um dos filmes mais masculinos da história, Colorado Territory, termina onde Heaven’s Gate (As Portas do Céu, 1980) de Michael Cimino, Blow Out (Blow Out – Explosão, 1981) de Brian De Palma, Traviata ’53 (História de um Pecado, 1953) de Vittorio Cottafavi e Les savates du bon dieu (2000) de Jean-Claude Brisseau começam. Todos são filmes com homens dilacerados, fragilizados, rememorando o tempo em que foram plenos ao lado de suas mulheres. O presente deles é conturbado e repleto de arestas soltas; o passado é uma construção maciça habilmente lapidada.
Noutra de suas obras-primas, They Died With Their Boots On (Todos Morreram Calçados, 1941), o General Custer e Libbie, sua amada, despedem-se antes dele partir para o seu último combate. A leitura de uma página do diário dela revela a apreensão por que eles sempre passaram até então em silêncio: de que a cada guerra eles nunca mais se vissem. Dessa vez, as cartas estão todas na mesa. Esses dois amantes estão de tal maneira desnudados que dali surge um sentimento inédito, secreto e inominável, a ser para sempre carregado por ambos até o fim de suas vidas, que não tarda em se aproximar.
Esses dois exemplos pertencem a uma obra muito, muito vasta, repleta de outros pontos altos que poderiam também ser comentados como Pursued (Núpcias Trágicas, 1947), The Revolt of Mamie Stover (Mulher Rebelde, 1956), The Naked and the Dead (Os Nus e os Mortos, 1958), mas traduzem o modo como nesse cinema, apesar de tudo parecer intencional e deliberado, o rastro de realidade e suas interpretações sem fim são preservados. Enquanto se assiste à vida de forma transparente, lança-se sobre ela em imersão profunda, como fazem os melhores poetas, esses destemidos desbravadores de que Walsh faz parte e em cuja rotina está o hábito de penetrar em esferas que os demais homens, homens que ele mesmo filmou, só costumam adentrar quando conhecem os abismos da paixão ou da morte.
Matheus Cartaxo
[Matheus Cartaxo começou a escrever sobre cinema em 2008, no blog que ainda mantém, mesmo que com raras atualizações, O Planalto em Chamas. Depois tornou-se um dos editores da Foco – Revista de Cinema e colaborou com textos para o site Filmologia e, agora, À pala de Walsh. Actualmente, continua o trabalho na revista que edita e estuda cinema na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).]