Tenho bem fundo, no coração, a violência da alegria espasmódica. Ao mesmo tempo, esta violência é, e dizê-lo faz-me tremer, o coração da morte: abre-se em mim!
Georges Bataille, As Lágrimas de Eros
Passado sensivelmente um mês sobre a bolinha vermelha da RTP2, venho escrever-vos sobre outra utilização da bolinha. Julie diz que só “goza” quando usa a sua bolinha especial, com ela massaja o clítoris e vem-se à frente do putativo realizador. Putativo como potencial, putativo como amante do putedo. O realizador chama-se François, mas o jogo de espelhos parece óbvio: estamos a falar de Brisseau e de um episódio negro da sua vida, retratado com alguma amargura em Les anges exterminateurs (Os Anjos Exterminadores, 2006). Depois de filmar Choses secrètes (Coisas Secretas, 2002), o realizador francês viu a sua reputação ser beliscada pela condenação por assédio sexual de duas jovens actrizes durante a pré-produção desse filme. Não venho aqui falar do cidadão Brisseau, nem especificamente de bolinhas vermelhas (a de Julie nem vermelha é!), mas do díptico Choses secrètes e Les anges exterminateurs, dois dos vários títulos que “desabotoaram a blusa” e “mostraram a cueca” por estes dias no recentemente criado canal de televisão do jornal Correio da Manhã. Espante-se com a ousadia.
O CMTV abre o baú CLAP Filmes – ou Leopardo Filmes – para pôr os seus espectadores a ver cinema. O critério é simples: antes passaram alguns dos mais relevantes títulos do cinema português que têm no catálogo, agora viram-se para o cinema erótico “de culto”, algum a tocar o chic debochado. O leitor já me estará a interpretar mal, por isso vou pôr as coisas preto no branco: Choses secrètes é uma obra-prima, Les anges exterminateurs é um fait divers, pedaço de propaganda auto-absolutório, de um realizador do risco e da transgressão claramente devotado a arriscar e a transgredir na história dos outros a partir de e não pela sua. Posto isto, estou livre para continuar a etiquetagem daquilo que o dito canal recém inaugurado nos deu: do bordel de Bonello, aos rituais castradores de Oshima, às danças fatais de Emmanuelle Béart, aos amores despidos de Pascal Ferran até, fazendo fast forward neste menu só para carnívoros – os vegetarianos estão definitivamente out -, aos múltiplos “anjos exterminadores” de Brisseau. Já tinha recebido com satisfação a notícia da chegada de mais e melhor cinema à televisão portuguesa, via esta parceria entre a companhia de Paulo Branco e o CMTV, mas poder contar com tamanha orgia de bom cinema ou de “um outro cinema” na televisão portuguesa deixa-me na realidade esperançoso no futuro da mesma, com ou sem bolinha, com ou sem 5 Noites, 5 Filmes, com ou sem RTP2, com ou sem televisão pública de serviço público.
Mas recuemos à questão da bolinha, não àquela da RTP2, mas à verdadeira bolinha que aquece as cores na tela, que faz explodir no ecrã o vermelho mais intenso e extático. A bolinha de Les anges exterminateurs, como disse, é usada por Julie para se vir em frente ao realizador, ou melhor, aos realizadores: François e Brisseau. É frontal mas nada afrontante, terrificamente bela como um filme vermelho escuro feito de carne e de sangue, como um Vampires (Vampiros de John Carpenter, 1998) de John Carpenter ou um Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados, 1999) de Stanley Kubrick, a exposição da sua nudez convulsa, da sua performance do sexo, interpretação feita por sua conta e risco, na exposição letal de várias presenças, vários olhos: o olho da câmara, o olho de François, o olho de Brisseau e o olho do espectador, o último voyeur que na penumbra exercita as suas fantasias mais inconfessáveis. Como se vê no mais recente La fille de nulle part (A Rapariga de Parte Nenhuma, 2012), o problema da fantasia é um problema (freudiano) do inconsciente, do oculto, enfim, do Cinema! (O título é em si mesmo uma citação buñueliana significativa.) Exercícios do sexo e da mente, da morte e da vida, exercícios entre fronteiras, os filmes de Brisseau são um convite irresistível, mas sempre terrífico, a outras “aventuras”. Na nossa TV, no último mês, parecia que passavam em loop Les anges exterminateurs e Choses secrètes. O desejo é reincidente mas, por norma, não se acende assim, com tanta insistência, no nosso pequeno ecrã.
Em Choses secrètes, de facto, estamos no cume e no cúmulo do jogo sexual, dos bruxedos e exorcismos do corpo e do intelecto, de Brisseau. A sequência da bolinha de Julie é elevada ao cubo na sequência que abre o filme: uma performance cheia de sexo e de morte, cheia de escuridão e de vermelhos intensos, posta em cena por um corpo feminino que em cada gesto procura acender, na plateia como no ecrã, o máximo e insuperável sensualismo. A personagem é uma stripper de bar, chama-se Nathalie (curiosa coincidência com o filme protagonizado por Béart que também passa neste ciclo) e nesses curtos instantes está feita a introdução temática e formal de Choses secrètes: o sexo como domínio de poder, um poder todo ele visível, explícito, pornográfico, mas, ao mesmo tempo, um domínio todo ele secreto, obscuro, misterioso, subterrâneo… Quer dizer, subterrâneo não, já que esta história se constrói em altura: do formato 1.33 : 1 do ecrã até às pernas longas e insinuantes das duas assombrosas presenças femininas, a verticalidade impele-nos a subir. E a dupla “exterminadora” propõe “ousar” para ascender, nomeadamente dando uso às pernas fenomenais, a íngreme escada social. As duas furam a estraficação social com os seus diabólicos enredos sexuais, aliás, minam o sistema e dão a volta a todas as “ficções sociais” com o seu “gesto” porque, na realidade, pelo contrário,”furam a estratificação sexual com os seus diabólicos enredos sociais”.
A misoginia de Brisseau é indisfarçável, mas a reverência à escala do corpo feminino é sempre maior e mais pungente que qualquer receio pela infinitamente perigosa teia que ele, em seu redor, lhe possa tecer. À fascinação por aquilo que o corpo feminino pode provocar – num homem – segue-se a vertigem de morte de quem está prestes a cair na teia fatal da sedução. Choses secrètes é uma fábula sobre o sexo como instrumento de poder, em que o amor funciona como essa vertigem de morte que impele a uma queda no abismo profundo. Os filmes de Brisseau – e o mais recente La fille de nulle part não é excepção – estão assombrados por este sentimento duplo: atracção pelos corpos (Eros) como atracção pela morte (Thanatos). Georges Bataille, com uma câmara de filmar nas mãos, não seria mais claro. As personagens “ousam” ir mais fundo, desafiando os limites convencionados, “gozando” nas fronteiras do social, fazem vir o espaço privado ao espaço público, fazem-se vir nos limites dos dois, logo, esgotam-nos com o corpo… mas no fim desse caminho dão de caras com a dimensão destrutiva, auto e heterofágica, dos seus jogos de sedução.
As protagonistas de Choses secrètes subiram tanto que deram de caras com o Diabo na sua mansão loseyio-kubrickiana, lugar onde são ininterruptos os rituais da carne, onde quase nada resta de humano no gozo. Na realidade, o gozo – em sentido duplo – termina com a penetração das balas no único homem – será um homem Christophe, poderoso capitalista que monopoliza todos os desejos e que boicota a última possibilidade de “haver amor”? – que conseguiu inverter o xadrez feminino/feminista, um xadrez onde a penetração é mínima, onde o onanismo triunfa, mesmo sem o auxílio da bolinha de Julie, mesmo quando não há motivo ou programa social que o oriente. Um cinema “tocante” também pode ser aquele que se toca, até à exaurição (da nossa crença no poder) do corpo e do intelecto. É o caso deste aqui, que agora se mostra nos lares dos portugueses, através do pequeno ecrã que por norma lhes massaja o cérebro (o medium é a massagem, como bem se sabe) sem que daí venha um assomo de prazer, um assomo de saber. Deixe-se tocar por esta bolinha, ouse contemplar os seus efeitos.