Bruno Dumont vem desenvolvendo, no decorrer dos seus filmes uma composição visual do divino, uma manifestação em imagens do que é crer e do que é a fé. Como salientou o Carlos aquando da estreia do filme anterior, Hors Satan (Fora, Satanás, 2011), foi com Hadewijch (2009) que essa manifestação do espírito ganhou carnalidade, foi com esse filme que os corpos passaram a transportar, entre outras coisas, Deus. O caminho traçado entre esses dois últimos títulos daria a entender que este mais recente filme continuaria o trilho do anteriores. Talvez seja o efeito Binoche ou talvez seja a incursão numa época outra que não a actual, o facto é que Camille Claudel, 1915 (2013) é diferente; o divino aqui tens pés de barro, literalmente.
Camille Claudel foi uma escultora de renome no início do século passado, irmã do poeta Paul Claudel e íntima de Auguste Rodin – que acusava de roubo. Caída em desgraça devido a problemas mentais (o constante medo de envenenamento, a sensação de perseguição, o engrandecimento egocêntrico e as teorias conspirativas) e a desavenças familiares, é num asilo que a encontramos pela primeira vez, nua à beira de uma banheira sendo convidada pelas freiras a tomar um banho e lavar as mãos, essas mãos que ela traz sempre tão sujas.
Dumont diz-nos logo nesses planos iniciais que é nas mãos que se opera o sagrado e portanto há que as limpar, não vá acontecer algo de belo. Este é pois um filme de extremidades – a cabeça, as mãos, os pés – ainda que só o percebamos depois. Ao longo da hora e meia de filme temos apenas três tipos de grandes planos, vários de cabeças (cabeças enormes numa tela que olham e falam e nos observam sentados tão pequeninos na plateia), dois planos de pés sempre andando (num passeio pelo campo ou descendo umas escadas) e um, somente um, grande plano das mãos de Binoche amassando um pedaço de terra molhada.
O divino neste Camille é visível apenas através da criação artística e portanto depende da inspiração e do trabalho dos artistas para ganhar forma terrena. Camille recusa-se a esculpir, por medo que o seu génio seja roubado, e portanto impossibilita a aparição do milagre (que sempre surgia nos dois filmes anteriores). Embora este nunca surja, é por ele que ela espera, por um milagre que a retire do asilo (coisa que os médicos aconselham, já que a doença dela não é incapacitante, ainda que a família – em particular o irmão – sempre recusem).
Mas, como dizia, este é um filme de extremidades (e nunca de extremos, já que o olhar de Dumont é sempre sereno e quase bucólico), entre os pés que nos ligam ao chão e a cabeça que nos liga ao céu, este é um filme que vive dividido por um desejo de divino que nunca chega porque a terra, o solo, o chão nos agarra e não nos deixa subir. Daí que esse grande plano das mãos de Binoche moldando o barro molhado seja paradigmático: são as mãos sujas de terra que moldam o chão e nos conduzem ao divino, é por elas que a ligação se faz, é pois a arte e o artista que constroem a ponte entre o físico e o espírito. E é paradigmático no sentido em que é apenas um – nunca repetido – e resulta de uma pulsão da artista (Camille) em manipular o meio ainda que não seja esse o seu desejo último, ou melhor dizendo, resulta de uma pulsão do artista (Dumont) em manipular o meio ainda que não seja esse o seu desejo último, isto é, também Dumont quer encontrar o inefável através do seu trabalho. Terá pensado que manifestando-o na carne dos actores este se tornaria visível, mas agora parece ter percebido (através de Binoche?) que o sagrado se manifesta sempre nos gestos e nas palavras.
Um filme delicado de um realizador que parece estar ainda a maravilhar-se com as possibilidades do processo artístico, do cinema e, especialmente, do seu cinema, sempre tão cristalino – mesmo quando trata de mãos sujas e pedaços de terra.