Die Ehe der Maria Braun (O Casamento de Maria Braun, 1979) representou uma tentativa consciente por parte de Rainer Werner Fassbinder de fazer, nas suas palavras, “um filme de Hollywood alemão”. Não um blockbuster, à época ainda por ser inventado, mas um melodrama clássico ou, como na feliz designação reinante, um “sirkiano drama anti-sirkiano”. Grande sucesso internacional (400 mil espectadores apenas na Alemanha, distribuição mundial e único filme do realizador a ser mostrado na ex-RDA), segue o principio que Douglas Sirk utilizou sagazmente em A Time to Love and a Time to Die (Tempo para Amar e tempo para Morrer, 1958): o de transformar a História em matéria melodramática, sempre mantendo os principios éticos e estéticos dos filmes que até então havia feito, emocional mas desprovido de sentimentalismo, empático mas lúcido, tecnicamente competente e virtuoso mas brutal na frontalidade do olhar.
Rodado em 1978 na ressaca do insucesso de Despair (1978), escrito pelo dramaturgo inglês Tom Stoppard, Die Ehe der Maria Braun foi também ele, como a maior parte da fase final da carreira de Fassbinder, um filme cuja escritura este delegou, no caso nos argumentistas Peter Märthesheimer e Pea Fröhlich. Apesar da frase do primeiro, que afirmou ter tentado respeitar o ritmo e a estética dos diálogos dos anteriores filmes do cineasta alemão, este é um filme claramente mais literário, o que, juntamente com a vontade consciente de fazer um filme mais comercial, redunda numa obra que ganha em organização aquilo que perde no caos organizado e na energia centrípeta que enformam os seus restantes filmes. Porém, a maior novidade é mesmo o retrato que faz do período do pós-guerra na Alemanha. Longe de qualquer milagre económico, termo que quando é usado o é com alguma ironia, o que resulta é uma demonstração do ponto zero na economia e no ethos de uma nação, onde todos os papéis, sociais e sexuais, mudam radicalmente e onde, devido aos escombros económicos, tudo é transaccionável.
Maria Braun, amoral e com a perversidade daqueles que anunciam o que vão fazer e logo o fazem, é a heroína desta história, no sentido em que é nela que se concentra a amoralidade do período. Sem pejo de subir horizontalmente na vida, vê porém no casamento que durou apenas uma tarde e uma noite, antes do marido voltar para a guerra, a utopia da sua felicidade. Como as pessoas que, ao longo do filme, aproveitam as aberturas causadas pelas bombas e por elas cortam caminho como quem atravessa portas, Maria Braun percebe que no contexto vale-tudo em que se encontra, pela falta de valores presentes e pela mudança social do estatuto da mulher quando todos os homens foram recrutados, tem o poder de fazer o seu próprio destino, passando inclusivamente por si de homens como Herr Oswald, de longe a personagem com quem é mais fácil simpatizar, que só lhe querem bem. Sabe o que quer e quer tudo agora, pois sofreu para isso. Quão diferente seria Die Ehe der Maria Braun se não fosse protagonizado pela esguia e felina Hanna Shygulla, que permite que o espectador empatize com Maria Braun mesmo reconhecendo-lhe o lado maquiavélico e sibilino. E pensar que o papel principal esteve quase a ser entregue a Romy Schneider…
Assim, a destruição da casa no final, resultado da divisão de Maria Braun entre dois homens por intermédio de um testamento, representa, como o mostra a narração em off da vitória alemã no final do Campeonato do Mundo de Futebol de 1954, o regresso à normalidade da Alemanha como potência e farol da qualidade de vida na Europa. Neste mundo já não há lugar para ela. Porque, quando as coisas vão bem, toda a gente se esquece de quem sujou as mãos para melhorar o status quo. Mas alguém a imagina a esvanecer num casamento onde fosse subalterna?
Die Ehe der Maria Braun é exibido dia 25 de Junho, terça-feira, às 22h00, no Teatro do Campo Alegre no Porto, no âmbito do ciclo “Novo Cinema Alemão – Para Além de Oberhausen”, uma iniciativa com a colaboração do Goethe Institut Portugal.