Partimos para a conversa com Eduardo Geada com o objectivo de re-situarmos o autor de uma obra teórica e crítica que diríamos ser surpreendentemente vasta dentro da realidade editorial portuguesa. Estes dois redactores à pala de Walsh, Luís Mendonça e Sabrina D. Marques, descobriram em livros como O Poder do Cinema (1975) e Cinema e Transfiguração (1978) uma desassombrada análise, de inspiração semiológica e psicanalítica, de alguns dos aspectos da linguagem cinematográfica, bem como uma vincada dimensão ideológica marcante da geração crítica saída da revolução de Abril, que tanto os data quanto imediatamente os transforma em documentos preciosos sobre uma certa maneira de (vi)ver o cinema em Portugal. O contacto fez-se pela teoria, pelo pensamento e acabou por desembocar nos filmes. Eduardo Geada, como académico, crítico e cineasta, concentra em si todas as perspectivas de que é feito um filme. Entre o pensar e o fazer, ou sobretudo entre o “fazer pensar” e o “pensar o fazer”, foi sendo construída esta conversa que, nem de propósito, teve a Cinemateca como cenário e como inspiração. Queremos agradecer ao Paulo Cunha por ter disponibilizado muito do material aqui analisado, à Mariana Castro pelo trabalho fotográfico e, obviamente, ao próprio Eduardo Geada por ter aderido como aderiu ao nosso repto.
Luís Mendonça – A pergunta é um cliché, mas inevitável: como nasceu a sua paixão pelo cinema?
Eduardo Geada – É difícil de explicar. O que me lembro é que quando andava no liceu Gil Vicente, entre os meus 14 e 18 anos, havia perto um cinema de bairro chamado Royal. O edifício ainda hoje existe, está transformado num supermercado. No Royal as sessões eram duplas, tanto à matiné como à noite. E lembro-me de, com alguns colegas, faltar muitas vezes às aulas da tarde para ir para o Royal ver a sessão das três horas. Eram filmes de aventuras. Portanto, comecei a ver e a apaixonar-me pelo cinema, como penso que aconteceu com muita gente, através dos heróis do cinema americano. O Errol Flynn, o James Stewart, o Gary Cooper, o Humphrey Bogart foram actores que me levaram ao cinema e que me fascinaram, como fascinaram muita gente da minha geração. Estávamos numa época do cinema americano em que estes actores interpretavam heróis, com os quais nos identificávamos, porque eram heróis que lutavam por causas justas, que chegavam ao fim do filme e ficavam com a garota mais gira do elenco. Comecei a aprender o nome dos actores muito antes de saber quem eram os realizadores desses filmes. Mais tarde, quando revi muitos desses filmes, é que vim a descobrir que os filmes eram realizados pelo John Ford, pelo Hawks, pelo Michael Curtiz, pelo Raoul Walsh, etc. Depois fui para a Faculdade de Letras [da Universidade de Lisboa], e estamos a falar de uma época por volta de 1963/1964, que coincide com a emergência do cinema moderno. Primeiro aproximei-me do cinema americano, e quando vou para a faculdade, até pela actividade do cineclube universitário, comecei a ver os primeiros filmes europeus, os Antonionis, os Godards, os Fellinis, os Rossellinis, etc. O cineclube universitário, como todos os cineclubes da época, era um cineclube de esquerda. O que unia toda a gente era a crítica ao regime, não só em termos políticos globais, mas em termos do que era a falta de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa. No cineclube universitário o cinema americano era considerado um cinema reaccionário, imperialista. Portanto, o que o cineclube universitário passava eram os grandes cineastas europeus, que se demarcavam do cinema americano. Foi muito útil ter este confronto, porque a minha maturidade cultural coincidiu com uma transição na história do cinema que me foi muito útil. Depois acabei por integrar, em 66 ou 67, uma direcção do cineclube, cujas sessões de cinema eram numa outra sala que já não existe, o cinema Imperial. Aí fazíamos as sessões de cinema, que eram normalmente acompanhadas pela distribuição, antes da sessão, de um texto de apoio que na maior parte dos casos traduzíamos de revistas francesas, os Cahiers du cinéma ou a Positif, mas sobretudo de uma revista que hoje já não existe, a Cinéma 66, que depois se chamou Cinéma 67 e por adiante, que era o órgão oficial da Federação Francesa de Cineclubes, com quem o cineclube universitário tinha relações informais. Essa folhinha servia depois de pretexto para lançar uma discussão no fim do filme. Na maior parte dos casos, a conversa evoluía do filme para questões de carácter social e político, que era aquilo que os jovens universitários gostavam de discutir na época por causa da oposição ao regime. Os meus primeiros textos foram feitos nesse âmbito. Aconteceu uma ou duas vez nós não encontrarmos nas revistas textos que servissem o propósito da discussão, de maneira que alguém na direcção – neste caso, eu – começou a escrever os textos de apoio. Foi graças a alguns desses textos que vim a abrir portas nos jornais, para escrever crítica de cinema.
LM – Muitas pessoas da sua geração falam com alguma saudade das tertúlias cinéfilas e culturais em cafés centrais da cidade. Como é que recorda essa vivência do cinema e que importância teve no amadurecimento da sua visão crítica dos filmes?
EG – Teve muita influência, não só na visão crítica dos filmes, mas também na reflexão sobre a própria sociedade. Há uma coisa que é difícil hoje para a geração que não conheceu essa época ter consciência – é que o cinema não era uma actividade isolada em si mesma, o cinema era também um modo de compreendermos a vida. A relação entre o cinema e a sociedade era indissociável. Portanto, a consciência do cinema foi simultânea à consciência da minha relação com a sociedade. Havia esses debates no cineclube universitário e, mais tarde, fui conhecer muitos outros, por exemplo, nas sessões que no Monumental o Artur Ramos fazia. Nalgumas dessas sessões lembro-me das pessoas ficarem na sala de cinema a discutir os filmes depois da sessão. Era uma discussão livre e espontânea, em que as pessoas perdiam a intimidação de falar sobre o que tinham acabado de ver. Não estava ali nem uma autoridade, nem um especialista, cada um falava daquilo que tinha visto e isso foi muito útil. Havia outro tipo de tertúlias que mais tarde conheci, quer no café Vavá, quer no café Gelo, em que em dias fixos da semana as pessoas informalmente apareciam para tomar a bica e falar dos filmes que tinham visto nessa semana. Alimentava a discussão e alimentava, sobretudo, a reflexão, porque não é muito proveitoso falarmos com pessoas que têm a mesma visão do cinema que nós, porque isso obrigava-nos ao confronto e a perceber até que ponto é bem ou mal fundamentado. Esse ambiente foi-se diluindo. Os cineclubes desapareceram, as sessões do cinema clássico desapareceram, os próprios programas de televisão onde se fazia a apresentação e enquadramento dos filmes não existem mais. Eu próprio tive um programa de televisão, chamado Magazine Cinema [na RTP1, em horário nobre], onde apresentava filmes. Toda esta espessura cultural que o cinema tinha a pouco e pouco foi-se diluindo.
LM – Já vimos que há aqui uma relação estreita entre a entrada numa cinefilia mais adulta e a universidade ou o cineclubismo. Mas a sua formação académica inclui também um lado de investigação que nos parece muito relevante. Licenciou-se em estudos Anglo-Americanos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tem um mestrado (O Cinema Espectáculo) e um doutoramento na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Os Mundos do Cinema) e ainda uma pós-graduação em Film Studies na London College University. Este investimento foi feito numa altura em que o país atravessava um período de enormes transformações. O seu mestrado terá sido defendido poucos anos depois do 25 de Abril. O que significava, na época, estudar cinema em Portugal?
EG – Eu não quero dizer que os meus trabalhos tenham sido pioneiros, mas na verdade pouca gente estudava. O meu mestrado foi feito, creio, no primeiro mestrado que o Departamento de Ciências da Comunicação fez na Universidade Nova. Tive como colegas nesse mestrado o João Mário Grilo, o Bragança de Miranda, o Fernando Cascais… Que eu me lembre, desse mestrado apenas eu fiz uma tese sobre cinema. Portanto, não havia – como há hoje – muita gente a fazer trabalho de investigação sobre cinema. Era a área que me interessava. No Departamento não foi problemático, porque foi sempre uma universidade muito aberta à inovação. Mas lembro-me que foi um grande problema arranjar membros para o júri, porque não havia gente qualificada nesta área para o integrar. Como a minha tese tinha algumas passagens em que se falava da articulação narrativa do cinema, o meu arguente nessa tese foi o David-Mourão Ferreira, que nem sequer era doutorado. O outro elemento do júri era o Prado Coelho. Nenhum deles tinha uma relação formal com o cinema.
LM – Retomando agora o seu papel de crítico, gostaria de citar Jorge Leitão Ramos no prefácio do seu livro Cinema e Transfiguração: “Antes de tudo, o trabalho do Eduardo Geada recusa ser uma crítica de gosto; uma tarefa de maître d’hotel da burguesia a escolher no cardápio os pratos melhor confeccionados, uma crítica culinária, no sentido que Brecht deu ao termo”. Até onde deve ir o gosto na crítica de cinema?
EG – A ideia de gosto é evidentemente indissociável do exercício da crítica. O que eu acho é que quando se pratica crítica de cinema num órgão de grande divulgação, como é um jornal – e praticamente tanto eu como o Leitão Ramos escrevemos em jornais, sejam diários ou semanais, ou em revistas de cariz cultural de grande divulgação -, devemos fazer a distinção entre aquilo que é o nosso gosto cultural e aquilo que nós, enquanto agentes culturais, temos consciência de ser a importância de determinados filmes. Aconteceu muitas vezes eu fazer críticas de apoio a filmes que eu considerava culturalmente importantes, embora não gostasse deles. É nesse sentido que faço essa afirmação, ou seja, dissociar um bocadinho o que é o gosto pessoal daquilo que são objectivamente os filmes que, na conjuntura da exibição, devem ser valorizados em detrimento de outros, embora os filmes pessoalmente não me entusiasmassem por aí além. Dito isto, a questão do gosto é fundamental. Mas é apenas uma das várias componentes da crítica. De um modo geral – e aqui entramos a sério no que deve ser a crítica de cinema – acho que há quatro componentes na crítica de cinema que são indissociáveis. O que vejo, quer na crítica jornalística, quer na crítica mais académica, é que muitas vezes não se colocam em igualdade de circunstâncias nos textos, de modo a dar uma percepção cabal ao espectador daquilo que é o filme. Em primeiro lugar, a crítica de cinema deve ter uma componente descritiva. Esta componente descritiva não significa que eu me limite apenas a dizer aquilo que vejo, porque quando faço uma descrição do filme obviamente já estou a fazê-la de acordo com aquilo que é o meu quadro de referência, a seleccionar e a valorizar aquilo que me interessa no filme. Se pensarem um bocadinho, vão verificar que 80% das críticas jornalísticas ficam por este primeiro nível, a descrição pura e simples do que é o filme. Depois há uma segunda componente, que é uma componente de contextualização. É o aspecto mais pedagógico da crítica de cinema, [que consiste em] enquadrar o filme, não só nas condições em que o filme foi feito, mas também no género, na obra do autor, na mitologia dos actores. [Dentro desta componente] há muito que se pode dizer, mas que ainda não tem a ver com o exercício do gosto, tem a ver com aquilo que Habermas chamava o exercício da crítica como árbitro das artes: [o crítico como] alguém que tem também o dever de dar informações a um público que não é um público especializado. Nesse aspecto, a segunda parte, da contextualização, pode e deve ter um carácter pedagógico, como aliás o Brecht frisava. Depois há um terceiro nível da crítica, que é o mais importante, que é o da interpretação: “qual é o sentido que o filme tem para mim?” Pode não ser o sentido do autor, pode não ser o sentido do meu colega crítico, e estamos apenas a falar no sentido que é baseado numa argumentação de ideias. Esta é a parte mais interessante da crítica, é aquela que nos estimula a ver os filmes com os olhos de outra pessoa e, portanto, a partilhar o universo subjectivo de alguém com quem nos identificamos ou não, mas que certamente por aquilo que disse ou escreveu enriquece o nosso olhar sobre o filme. E finalmente, em último lugar, vem a avaliação, aquilo que normalmente se chama o juízo de valor sobre o filme. É nesta parte que entra a questão do gosto. É evidente que o juízo de valor deve ser um corolário da argumentação que foi desenvolvida nos três pontos anteriores, mas muitas vezes, quando eu achava que o filme era muito interessante do ponto de vista do contexto de exibição mas não me entusiasmava por aí além, omitia a última parte. Recebia muitas vezes – sobretudo na Capital – cartas de leitores que diziam: “li a sua crítica, fui ver o filme, mas fiquei sem perceber se você gosta do filme ou não”.
Sabrina D. Marques – Não havia estrelas…
EG – Ora bem, uma das razões que me levam a discordar do famoso quadro das estrelas é que este é a redução minimalista da crítica a um juízo de valor que não tem argumentação nenhuma. A avaliação é feita de um modo numérico, completamente abstracto, sem eu perceber o que é que levou o crítico a dar uma bola negra ou a dar cinco estrelas. Eu não sei nada da opinião dele. Ora a avaliação pura, que é aquilo que o leitor na maior parte dos casos quer saber para usar a crítica como cardápio, e a mera descrição do filme sem contextualização e interpretação, curiosamente eram as mais praticadas, pelo menos na minha época, pela crítica jornalística. É talvez por isso que algumas pessoas da minha geração tiveram tanta importância na formação da crítica e de críticos subsequentes, ao tentar introduzir uma ambição no exercício da crítica que ultrapassava o mero juízo de valor abstracto. O melhor programa da crítica, em termos simples, está num filme de Hitchcock: Rear Window (A Janela Indiscreta, 1954). James Stewart passa a vida com os binóculos a olhar para as janelas. Há uma cena em que entra a Grace Kelly, ele passa-lhe os binóculos e diz-lhe assim: “diz-me o que vês e o que pensas que significa”. Esta frase do James Stewart é o que deve ser o programa de um crítico de cinema.
LM – Em As Teorias dos Cineastas, Jacques Aumont defende que “a teoria do cinema, aquela que é feita pelos seus praticantes, é infinitamente viva e útil”. No seu livro Os Mundos do Cinema (1998), cita várias passagens de autobiografias, invocando assim as vozes, na primeira pessoa, de actores, realizadores, produtores e argumentistas. Isto não é muito habitual ou canónico numa tese de doutoramento. Foi uma atitude consciente, uma tentativa de cortar com uma certa ideia instituída de tese académica?
EG – Isso leva-nos para um outro campo. Felizmente, nessa tese não tive objecção da parte institucional, da parte da academia, mas há uma coisa que me faz muita confusão na maior parte das teses académicas que leio. Por vezes sou convidado para integrar júris de teses, nesta área do cinema, e o que verifico é que a maior parte das teses não são propriamente teses, mas são o que eu chamo relatórios de leitura. Quer dizer, o que os doutorandos fazem é mostrar a sua erudição em 300 páginas de corta e cola, de citações consecutivas. “O Deleuze diz… em contrapartida, o Rosenbaum diz… E depois o outro diz e vêm mais três páginas do Jacques Aumont”. E depois nós não conseguimos transformar num todo orgânico. Não quer dizer que sejam todas assim, as que eu conheço são muito assim. E pior que isso é que eu acho que os professores induzem os alunos a fazerem isso. Sempre que o aluno tenta ter uma ideia original é admoestado de que isso não faz parte do padrão académico de investigação. E o padrão académico de investigação é fazer citações de três em três parágrafos e essas citações não se destinam a produzir conhecimento novo, destinam-se a mostrar ao júri que o aluno leu aquela tralha toda. A consequência disto é que as teses são pouco interessantes do ponto de vista do material original que têm e são ilegíveis, o que é o mais chato. Por isso é que 90% das teses, não só da área do cinema mas em todas as áreas, vão directas da prova de dissertação para a biblioteca da universidade. Não são publicadas, porque não há editor nenhum que publique aquilo. Isso faz-me um bocado de confusão, porque, de facto, quando eu comecei a escrever Os Mundos do Cinema como tese tinha um ponto de partida: “vou fazer uma tese que vai ter um desenvolvimento paralelo em que as teorias vão aparecer todas numa trama romanesca como se fosse um argumento de cinema”. Não tive problemas em escrever assim, provavelmente porque o departamento da Nova é mais aberto, mas seguramente teria noutros locais.
SDM – Passando à prática do cinema, comecemos pelo princípio. Como é que nasceu o projecto de filmar Sofia e a Educação Sexual?
EG – Quando o projecto nasceu, eu estava a fazer crítica de cinema. Nunca tinha feito nada antes. A única coisa que tinha feito era escrever, escrevia para vários sítios, para uma revista que já não existe chamada Vida Mundial, para uma outra que era o Cinéfilo, de que era o director o Fernando Lopes, e para uma revista que era a da esquerda portuguesa, chamada Seara Nova, de onde saíram todos os ministros do PS depois do 25 de Abril. Um dia recebo um telefonema do Artur Semedo, que não conhecia pessoalmente, a dizer que queria falar comigo. O Artur Semedo tinha chegado do Brasil há pouco tempo e quando regressou a Portugal começou novamente a trabalhar no teatro com o Raul Solnado e a Io Apolloni. O que o Artur Semedo pretendia, o que foi uma grande surpresa, era dizer-me que desde que tinha regressado tinha lido as minhas críticas de cinema, que achava que eu sabia a potes daquilo e queria-me desafiar para fazer um filme. Eu disse: “ó Artur, eu não sou realizador, eu sou só crítico de cinema”. “Mas da maneira como você escreve, eu sei que é capaz de fazer um filme e eu quero abandonar a minha carreira ligada ao cinema do ‘antigamente'”. O cinema do antigamente eram os realizadores que conhecia e com quem tinha trabalhado em Portugal. Durante algumas semanas pensei no assunto e acabei por dizer que sim. Ele disse-me que a única imposição que tinha era a de aparecer no filme. Dizia: “Eu quero fazer um filme que entre para a história do cinema português. E o Eduardo faça o filme que quiser”. Eu andei a pensar no assunto, falei com pessoas para me ajudaram a escrever o argumento. E a história acaba por surgir quase como uma lógica interna que eu não consigo explicar. A ideia começou, foi-se desenvolvendo, eu fui falando com ele, e a certa altura a história estava feita. O filme foi feito em condições de produção inéditas. O filme não foi subsidiado, não teve participação de ninguém, porque o Semedo – que era uma pessoa com muitos conhecimentos e amigos na indústria e na distribuição – arranjou créditos por parte da Odisseia Filmes, para nós fazermos o filme sem termos de pagar custos de laboratório na altura. Ficou tudo com a promessa de que a exploração comercial do filme haveria de dar para pagar as dívidas que o Artur Semedo ia contraíndo. Tínhamos a garantia da Doperfilme de que o filme seria distribuído. E depois o Semedo, por um lado, e eu, por outro, tentámos angariar uma equipa que trabalhasse quase de borla. Uma das coisas que mais me comovem, sobretudo conhecendo depois aquilo que são as relações do cinema português, é que as pessoas só me conheciam por aquilo que eu escrevia e toda a gente que trabalhou no filme trabalhou de borla com enorme confiança em mim. Toda a gente trabalhava como se fosse um tipo consagrado, mas eu era um miúdo. As filmagens correram muito bem e devo dizer que nunca me senti tão livre em todos os filmes que fiz como no primeiro.
SDM – Houve nesse sistema de produção uma tentativa de propor um novo modelo?
EG – Não, foi um caso único. Nunca mais filmei nessas circunstâncias. Dadas as dificuldades económicas para se fazerem filmes, e sobretudo com os novos equipamentos digitais, talvez seja possível hoje fazer filmes com poucos recursos financeiros, mas a Sofia foi feita com uma câmara profissional de 35mm, não fizemos som directo, foi som de referência, mas tínhamos uma equipa completa a filmar.
LM – E sentiu-se melhor, como criador, dentro desse sistema de produção.
EG – Senti-me mais livre, é verdade. Vocês são muito jovens, mas também já foram mais jovens e já devem ter essa noção: à medida que os anos passam, a consciência da responsabilidade aumenta. Se há algum filme em que não tenho razão de queixa para dizer “eu não consegui fazer aquilo que queria, porque não tive dinheiro ou porque me impediram”, foi esse. A parte de maior inconsciência da minha parte foi pensar que o filme passava na Censura. Nunca esse problema foi abordado. Filmámos sempre com a maior naturalidade. Embora uma das coisas que eu penso, mesmo agora à distância dos anos, que faz o interesse do filme é o dispositivo de mise en scène que arranjei e que eventualmente iria ludibriar a censura – mas não foi isso que aconteceu.
SDM – Quando finalmente estreado no pós-revolução, como é que o filme foi recebido pela crítica?
EG – Na altura, bem. Foi o meu filme que teve melhores críticas.
SDM – Nós encontrámos uma muito favorável de João César Monteiro, que tinha visto apenas três bobines do Sofia e já o elogiava como “um dos mais sensacionais da temporada”, capaz da “conquista de mercados internacionais” que o Instituto Português do Cinema ambicionava.
EG – Devo dizer-lhe que era muito amigo do César Monteiro. Isso vem na sequência de uma reportagem para o Cinéfilo. Ele viu algumas cenas do filme numa mesa de montagem.
LM – O Eduardo Geada, como iria fazer mais tarde à sua maneira João César Monteiro, problematiza amiúde as questões da pornografia e do erotismo. Sobre a primeira escreveu, no seu livro Cinema e Transfiguração: “A monotonia de tais filmes [pornográficos] era evidente porque, como diz Luc Moullet com humor, o problema deste género de fitas é o de o realizador ter poucos sítios para colocar a câmara”. À revista Celulóide, nos anos 70, afirma que “a pornografia é a demagogia do sexo”.
EG – Há uma piada famosa que diz que a pornografia é o erotismo dos outros. Mas não é isso. O que é relevante no Sofia é que há uma subjectivação da sexualidade, que remete o desejo sempre para uma dimensão fantasmática, que nunca se concretiza. O erotismo funciona através do olhar e através da distância dos corpos. O erotismo é, portanto, um fenómeno essencialmente imaginário: nós imaginamos o outro de uma maneira tal que o outro é, ou não é, aquilo que nós imaginamos, mas nunca sabemos porque nunca se concretiza. Como diria um psicólogo, uma fantasia deixa de ser uma fantasia a partir do momento em que se concretiza. Há pessoas que têm grandes fantasias eróticas, que ajudam imenso a estimulá-las, mas quando concretizam uma dessas fantasias, o fracasso é total. Por quê? Porque a realidade intromete-se no imaginário. Portanto, a primeira coisa fundamental a perceber é que a dimensão fantasmática do desejo no erotismo é a essência do próprio erotismo. A outra componente do erotismo, corolário desta, é a não concretização. Por isso é que os corpos são muito eróticos quando funcionam numa estratégia de exibição e ocultação. Quando o objecto do erotismo é oculto ou disfarçado ou é inacessível o desejo torna-se mais intenso, exactamente porque a dificuldade em concretizar o fantasma é maior. Ora, a pornografia é o contrário disto. A partir do momento em que na pornografia a concretização do acto sexual é mostrada como um dado adquirido, o erotismo vai-se embora. A pornografia não é erótica, é o contrário do erotismo, porque é a concretização do fantasma da maneira menos idealizada que nós possamos imaginar. Isto não é uma perspectiva moralista, é uma consideração de carácter fenomenológico. A pornografia no cinema não me interessa exactamente por estas razões. Não sei se já viram um filme pornográfico, mas um dos momentos-chave de um filme pornográfico é sempre a ejaculação do actor masculino. Por que o cinema pornográfico sente obrigação de mostrar isso? Exactamente para mostrar que é verdade. Nós podemos fazer a análise do cinema pornográfico numa perspectiva baziniana. A prova da verdade no cinema é muito difícil de fazer, mas no pornográfico vem do facto do actor ejacular. “Ah, então ele teve mesmo prazer!”. É muito difícil no cinema pornográfico mostrar isso em relação ao prazer da mulher, porque não é visível. A mulher pode representar o prazer, mas não mostrar, como o homem. Esta problemática que eu abordei de um ponto de vista ontológico, é uma coisa que não me interessa nada no cinema. O cinema pornográfico não me interessa tal como a questão da violência, que mostra o sangue a saltar, facas a cortar pescoços… Não me interessa nada e até tenho alguma repugnância por isso, devo dizer. É uma das coisas que eu acho sublimes no cinema americano. Num filme do Hawks, podemos ver três tipos morrer, mas nunca vimos uma pinga de sangue em lado nenhum. Há um pacto com o espectador de que aquilo é um filme… O que eu pretendia fazer no Sofia era uma coisa que eu não sei se é conseguida, mas de facto foi aquilo que me animou a fazer o filme, que eu estava convencido – e ainda hoje estou – que era um projecto, nesse aspecto, muito original. É que eu queria fazer um filme erótico, em que o erotismo se baseasse no próprio filme. O que eu queria fazer era um filme que não fosse veículo de cenas eróticas, mas que o filme em si próprio, enquanto objecto artístico, tivesse uma dimensão erótica. Como? Através do dispositivo de filmar, da luz… É a maneira como se mostra e não aquilo que lá está, e isto é que se prende com a censura. Qual era o dispositivo que eu tinha criado, pensando ingenuamente que o filme não seria censurado? Era sugerir muito mais do que aquilo era realmente visível. Se voltarem a ver o filme, não vêem nada no filme, [quase] nunca vêem ninguém nu, nenhum acto sexual, sabem que está lá, mas não se vê. Portanto, a ideia – que é típica no cinema moderno – é “como é que eu mostro qualquer coisa que não é visível?”, ou seja, “como é que eu dou a ver, através do imaginário do espectador, situações que estão implicadas no filme, mas o filme enquanto dispositivo de imagem não mostra?”. Este sistema de não mostrar – cada vez que há uma cena de sexo, ou a câmara se desvia ou há um corte ou uma elipse – é um sistema que eu considerava e ainda considero um sistema censório dentro do filme. O próprio filme exerce sobre a sua mise en scène um sistema que é “dar a ver aquilo que não se mostra”. Como não se mostra, a censura não tem onde cortar. Pensava eu…
LM – A dimensão fantasmática também está presente na associação do erotismo à ideia de morte que é feita no A Santa Aliança (1977). Ao mesmo tempo, parece-me que no seu cinema não se fala muito de afectos ou do amor em sentido universal. Era algo que pretendia?
EG – Quer dizer, agora ao fim deste tempo todo, e reflectindo, talvez fosse isso. Mas o meu ponto de partida era muito simples, por isso às vezes tenho dificuldade de responder, porque a resposta é a maneira como os filmes estão organizados. Mas eu partia de uma resposta à questão que tentei desdobrar de duas maneiras. É uma questão que, aliás, o Brecht punha em relação ao que fazia. Do ponto de vista social, no caso do A Santa Aliança, a pergunta é: “Como é que as pessoas podem ser justas numa sociedade injusta?” E, no caso do Sofia, a pergunta era articulada de outra maneira: “Como é que alguém pode preservar a inocência numa sociedade em que o prazer é um pecado, em que o prazer é punido?” A resposta simbólica vem através da morte: “Não pode…” No período do regime fascista, a minha resposta é dizer que “não pode”.
LM – Em Cinema e Transfiguração, caracteriza o comportamento social da burguesia como sendo “constantemente teatral”. Senti isso em A Santa Aliança: uma teatralidade artificial incómoda que está presente na vida da família burguesa, em contraponto com uma luta pela liberdade que fervilha entre os membros do grupo de teatro, que funciona, por reverso, como uma família viva de actores. Nestes dois palcos há uma dialéctica que se joga. Como já acontecia no seu filme anterior, O Funeral do Patrão, o teatro volta a ter aqui um papel muito brechtiano de denúncia, quase de sátira…
EG – Sim, é verdade o que diz. Há duas componentes. A ideologia burguesa tem um lado ritual muito teatralizado e isso é muito óbvio em todas as instituições do poder. A mais consagrada são os rituais do tribunal, por exemplo. Todas as instâncias do poder têm uma grande teatralidade. Hoje já não é óbvia, mas esta teatralidade passava depois para situações de contexto social: as boas maneiras, a deferência, a etiqueta… Tudo isso são códigos que nós conseguimos facilmente associar a uma classe. No caso de A Santa Aliança temos um filme que de um ponto de vista simbólico, uma vez mais, põe em contraponto duas classes: aqueles que estão no lado da revolução, que são os do grupo de teatro, que formam uma cooperativa, e por outro lado, a burguesia, que ainda faz parte das instâncias do poder, que apesar de ter havido a revolução ainda não abandonou o poder (é o caso da banca, da alta burguesia da linha…). E estes têm a teatralização que é típica de uma conduta social, baseada, por um lado, na teatralização do gesto e, por outro, na hipocrisia moral. Depois o teatro no A Santa Aliança tem uma outra vertente, uma vertente brechtiana – foi, de facto, o filme onde me inspirei mais no Brecht. A teatralização no interior do cinema aparece como um mecanismo de distanciação entre a ficção e o espectador. Penso que esta é também uma tentativa original de colocar a questão. Eu lembro-me de um filme, que é uma obra-prima – não quero comparar com o meu filme -, em que Brecht está visível do princípio ao fim, que é o filme de Jean-Luc Godard 2 ou 3 choses que je sais d’elle (Duas ou Três Coisas sobre Ela, 1967). Por exemplo, aquele dispositivo que ele usa, em que a personagem fala e depois a voz-off sobrepõe-se ao diálogo, porque o que a personagem pensa não é aquilo que diz. Depois vem a voz-off do realizador, sem sabermos se ela é a personagem ou é a actriz… São tudo dispositivos estéticos que visam marcar várias coisas, fazendo com o que espectador não se deixe iludir pelo mundo da ficção: o que estão ali são actores a representar um papel, da mesma maneira que a burguesia representa um papel e a cooperativa representa outro papel, digamos, na luta de classes social. O teatro aparece como dispositivo de distanciação, de “estranheza”, como diria Brecht, de modo a que o espectador, por um lado, se identifique, mas por outro, tenha a distância crítica suficiente para o julgar de forma a saber quem são eles, o que representam. E a marcação desse dispositivo, que é feito ao longo do filme através de vários processos, tem o seu auge numa ideia que eu nunca vi em mais filme nenhum, que é as cortinas fecharem à frente da câmara de filmar, exactamente para marcar a materialidade do artifício do filme. Não é para tornar o filme teatral, é para marcar a artificialidade do próprio filme. A cena fecha como uma cortina de teatro.
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