Pedro Hestnes, antes da vida lhe abandonar o corpo, gravou a sua presença uma última vez no cinema português, quando a cara que marcou a obra daquela geração que começou a filmar entre os finais dos anos 80 e os inícios dos 90 (Pedro Costa, Manuel Mozos, Teresa Villaverde) mostrava já os sinais da doença que o iria matar. Em Segunda Mão (2012) é o filme-testamento de um actor que, parafraseando uma das personagens do filme, quis ser outro para que a morte o abandonasse. E abandonou: durante uma hora e quarenta cinco minutos, Hestnes vive ainda num ecrã de cinema (e, enquanto houver cinema, viverá para sempre).
Poderá ser injusto para Catarina Ruivo, a realizadora, que Em Segunda Mão seja visto (vá ser visto; por muita gente, espera-se) como o último filme de Pedro Hestnes. Mas esta esdrúxula história às voltas com vidas trocadas, vidas usadas (em segunda mão), vidas vazias, não ressoaria da mesma maneira sem o actor principal. A maior incongruência desta obra, que as tem muitas (assim como deliciosos non-sequiturs, caso do cão que aparece e desaparece segundo vontades insondáveis) e se preocupa muito pouco com a verosimilhança, é a maneira como nenhuma personagem parece dar conta do débil estado de saúde de Hestnes (a excessiva magreza, a palidez), de tal modo que o espectador, contaminado, também deixa de prestar atenção (ou como na religião do cinema a suspensão da descrença é um acto de fé).
De mais a mais, a figura de Hestnes ajuda-o a compor o solitário escritor de livros eróticos – sob pseudónimo; Jorge só não é anónimo por acaso – que vampiriza a vida de um outro homem que julga ter-se suicidado no quarto do lado da pensão onde passa a noite com uma prostituta logo no princípio. Fica-lhe com a roupa, a casa, o carro, e isto seria uma canção da Ágata se não lhe ficasse também com a mulher, o filho e o emprego (que consiste em aparar lápis num escritório de uma Fundação). Jaime, o outro, é mais nome do que imagem, a Rebecca para a Mrs. de Winter de Jorge, uma ausência demasiado presente (por exemplo, na cena em que Laura tem um orgasmo a sonhar com ele), cuja vida Jorge primeiro observa e depois toma, ainda que nunca esteja confortável nessa nova pele (da mesma maneira que a roupa nunca lhe assenta bem, sempre muito larga). Dá a sensação que qualquer vida se afigura melhor vista de fora, para Jorge, para outra personagem e, finalmente, para o próprio espectador de cinema (e num dos planos finais, Jorge é descaradamente um/o espectador com a silhueta recortada na imagem que olha).
Por esse lado hitchcokiano – de Rebecca (1940) e de Rear Window (A Janela Indiscreta, 1954) (e Em Segunda Mão tem mesmo muitas janelas indiscretas, a começar pelas montras do genérico) – Catarina Ruivo aproxima-se do cinema de David Lynch, não só na confusão das duas personagens [que também poderá ter vindo de Persona (A Máscara, 1966) ou 3 Women (Três Mulheres, 1977)] mas sobretudo pela inconstância daquele mundo escorregadio que troca a comédia absurda (fornecida pelos secundários Ricardo Aibéo, João Grosso e Joana de Verona) e a tristeza neurasténica com uma agilidade invulgar, de quem sabe que se pode acordar de um sonho para o meio de um pesadelo (ou então é a mim que, depois de ter lido este texto de David Foster Wallace, tudo parece lynchiano).
No último plano de Em Segunda Mão, quando as voltas são trocadas, roubado da vida antiga e recusando a nova, Pedro Hestnes já não é alguém. E ninguém, numa noite de chuva, corre para o infinito.