A beleza de Le plaisir (O Prazer, 1952) pode ser medida desta forma: mesmo numa sala em que alguém insiste em remexer num saco de plástico uma boa meia hora (“boa” é figura de expressão) e duas senhoras cochicham durante toda a sessão (sabe-se lá sobre o quê; ao menos têm a decência de não conversarem normalmente sobre variados assuntos do dia-a-dia, hábito que se vai arreigando nos cinemas portugueses mas ao qual a Cinemateca ainda resiste), continua a maravilha de sempre, uma obra-prima, não escrevo do cinema, pois tal seria redutor, mas de toda a criação humana (o que não deixa de ser redutor).
Neste tipo de textos, em que se escreve sobre algo tão belo (irei abusar do adjectivo, por necessidade absoluta), já se sabe que analisar o objecto dá a impressão de traição. Por exemplo, referir que Le plaisir adapta três contos de Guy de Maupassant (e está, portanto, dividido em três episódios) – Le Masque, La Maison Tellier e Le Modèle – ou que Max Ophüls tinha uma predilecção pelo período compreendido entre finais do século XIX e inícios do século XX (até à Primeira Guerra) soa a trivialidade, a curiosidade. E, no entanto, é essencial à sua obra. Assim como seria imperdoável não aludir ao travelling, a pincelada preferida deste “impressionista”, o efeito feérico que deslumbra o espectador e o mantém à ilharga dos acontecimentos (vejam-se todas as cenas no bordel), ou como Ophüls consegue a máxima profundidade na aparência de superficialidade; toda a natureza humana espelhada num embrulho lustroso.
Cumprido minimamente o caderno de encargos, e até porque não valerá a pena, sessenta e um anos depois, tentar mais um recensão exaustiva do filme, atenho-me ao que mais gosto: alguns pormenores do belíssimo episódio do meio, La Maison Tellier, o fulcro de Le plaisir, tanto que os outros episódios, não menos belos (a máxima “a felicidade não é alegre”, a epígrafe perfeita para Le plaisir, é dita no último, Le Modèle), são como as traves mestras em que este assenta. Afirmo, sem pestanejar, que a versão cinematográfica do conto é infinitamente superior ao original de Maupassant, o que, claro, quer dizer muitíssimo. No papel, o momento em que “Madame” Rosa (as aspas vêm das legendas apresentadas na cópia da Cinemateca, o que se compreende visto a moça não ser casada – aliás, é prostituta e não é a gerente do bordel) põe uma igreja inteira a chorar dura talvez um parágrafo (sirvo-me da memória, que não é grande coisa), justo e certeiro como todos os parágrafos de Maupassant, porém insuficiente. No ecrã, a sequência da primeira comunhão é tão bela como o cinema (ou o quanto o cinema pode ser belo) e nem o facto das legendas da cópia, respeitosas, irem dar uma volta o altera. Verdade seja dita, é uma lindíssima homenagem: ouve-se apenas a voz grave de Jean Servais, o narrador/Maupassant de serviço, sobre mais um maravilhoso plano que começa nas putas lacrimejantes e acaba nos aldeões enfeitiçados pelo choro redentor, motivo bastante para agradecer a existência da religião, do mesmo modo como o padre agradece, no final da missa, o momento mais bonito da sua vida.
Depois, há aquela extraordinária história de amor entre Madame Rosa (tirem-se as aspas) e Joseph Rivet, ou Danielle Darrieux [futura Madame de… (1953)] e Jean Gabin, que apenas se intui, em que tudo fica por dizer, em que tudo fica por fazer (apesar da ébria tentativa). Um amor impossível entre a prostituta e o aldeão bonacheirão, irmão de outra Madame (essa, sim, gerente de bordel), casado e pai da primeira comungante, razão por que todas as “madames” vieram à aldeia, que não gera tragédias, corações destroçados ou lamentos lancinantes, tão-só a tal felicidade triste [para além de Ophüls, só Renoir seria capaz de contar assim esta história, e fê-lo em Partie de campagne (Passeio no Campo, 1936), também adaptado de Maupassant, o que não pode ser coincidência]. Após a despedida no comboio de Rosa (à janela do comboio) e de Joseph (a correr para ela), o espectador não volta para casa numa carroça florida nem regressa ao trabalho numa noite lavada, tão alegre como a noite anterior havia sido angustiante (em princípio, que eu não sei a vida das outras pessoas), contudo, sabe que viu o mais belo filme de sempre. Mesmo com sacos de plástico e senhoras à conversa.
Le Plaisir será exibido dia 17 de Junho (segunda-feira) às 22h00 na Cinemateca Portuguesa.