Filiado na geração Oberhausen, Rainer W. Fassbinder foi, como é sabido, além de uma das figuras proeminentes do Novo Cinema Alemão, um profundo pensador da Alemanha do século XX, um país a todos os níveis complexo e ambíguo, cujo tumultuoso percurso histórico ainda hoje é motivo de ressentimentos (veja-se o actual sentimento generalizado “anti-Alemanha” na Europa, impensável há meia dúzia de anos).
No diagnóstico do deutschen volkes, Fassbinder, iconoclasta por excelência, demorou sempre o seu olhar sobre a transição do nazismo para a democracia liberal em que a Alemanha se tornou com o fim da 2ª Grande Guerra, dissecando com cinismo e, porque não dizê-lo, humor – um humor “de terror”, perverso e escatológico, é certo, mas humor, característica que muito injustamente poucos se lembram quando dele se fala –, as sequelas e os traumas (ou a falta deles, com isso querendo significar a amoralidade e promiscuidade) dos “novos alemães”. Os seus filmes não só se interrogam sobre “o que ficou” do nazismo – campo aberto para uma interrogação maior: o que fica do Mal?, é possível ceifar as suas raízes? –, como também sobre os vícios e as contradições (morais, desde logo) da nova Alemanha, a do capitalismo via Plano Marshall. A “prostituição” da Alemanha aos pés dos americanos está latente, por exemplo, em Die Ehe der Maria Braun (O Casamento de Maria Braun, 1979), onde Hanna Schygulla é uma mulher que se prostitui num bar frequentado por militares americanos, acabando por se envolver emocionalmente com um deles, jogando fora Hermann (Klaus Lowitsch), o seu marido dado como morto na guerra (ainda que nunca confirmado) – metáfora maior em que prostituição rima com traição, não só amorosa, mas no sentido mais lato de “traição à pátria”.
“A Alemanha vendeu-se! Abram alas para a corrupção e o oportunismo!”, bem poderia ser o slogan fassbinderiano para a promoção da democracia liberal alemã, palco, na visão de Fassbinder, de um sistema politico-económico visceralmente “porco” [a sordidez e imundice que tão bem encarnou Mario Adorf em Lola (1981)] em que a ideologia do “cada um por si”, característica do capitalismo selvagem, como que se transmite – numa lógica top-down, do Estado para os cidadãos, assim se jogando, perversamente, com o adágio de que “o exemplo vem de cima” – para a psicologia das relações humanas. Trata-se, no fundo, da sugestão de como o capitalismo amoral, implacável na prossecução do lucro, influencia (legitima?) as pessoas a comportarem-se de modo análogo, deixando de olhar a meios para atingir os seus fins na escalada da pirâmide social (caso paradigmático das personagens de Maria Braun ou de Lola).
Martha (1973), melodrama de sabor sirkiano realizado para televisão – tivéssemos nós, em 2013, telefilmes como estes em vez de fórmulas telenovelescas adaptadas para 90 minutos… –, é um desses filmes onde o “rasto de contaminação” do nazismo aparece à superfície, por força, como habitualmente na obra de Fassbinder, do poder da metáfora. Helmut Salomon (Karlheinz Böhm) é mesmo, podemos dizê-lo, a “metáfora andante” que Fassbinder construiu, com perturbante sagacidade dramática, para representar o ideário pós-nazi e a sua “normalização” (a possível) numa sociedade democrática e tolerante. Helmut, enquanto figura metonímica desse processo normalizador, interessa-nos, pois, a partir da sua psicologia individual, isto é, da forma como se relaciona com os outros (para o caso, com a sua mulher), e na medida em que encarna os tiques que imediatamente associamos, de uma forma ou de outra, ao legado de horror nazi.
Está lá, antes de mais, o sadismo, patente, por exemplo, na cena filmada na praia, em que Helmut proíbe Martha (a repetente Margit Cartensen) de utilizar protector solar, obrigando-a, deliberadamente, a queimar a pele – figuração alegórica das “queimaduras” de morte que os nazis infligiam nos campos de concentração –, para, no momento seguinte, a tomar sexualmente (num bom exemplo de “sexo implícito” no cinema, que, de tão implícito, de tão psicologicamente violento para o espectador, dele se poderá dizer… explícito).
O machismo, bandeira “natural” – no duplo sentido de i) característica típica e ii) de uma pretensa “natureza das coisas” que o conservadorismo ideológico sempre reclama, à míngua da força da razão – de uma ideologia de género como é a nazi, assente na supremacia, física e intelectual, do homem convertido em Chefe (Führer) do lar graças à caução matrimonial – o que, consequentemente, faz dele também “chefe” da mulher –, é visível no modo como Martha se torna, progressivamente, numa doméstica (Helmut proíbe-a de trabalhar) cuja ocupação diária é tentar “conseguir apreciar” os livros de engenharia e a música clássica que Helmut lhe prescreve (falávamos em humor “de terror” e este é um bom exemplo).
Encadeado neste ponto, o modo absolutamente totalitário como Helmut toma conta, a partir de certo ponto, da vida de Martha tem, afinal de contas, correspondência no modelo de controlo social, hiper-vigilante, que a ditadura nazi instalou sobre os alemães, para quem a privacidade, como a de Martha, passou a ser uma miragem (a proibição de sair de casa, o corte do telefone, etc.). Não esqueçamos, porém, o carácter controvertido do machismo na obra de Fassbinder, que dele disse ser resultado não só da opressão da sociedade, mas, também, do facto de as mulheres dele se aproveitarem enquanto “táctica de terror”, sendo, a esse título, co-responsáveis pela sua subsistência (numa conversa, uma das amigas de Martha diz-lhe que é preferível anuir a tudo o que os maridos dizem, pois “é mais simples e são precisos menos calmantes”). Alegoricamente, e se quisermos ir mais longe, podemos mesmo recuperar para aqui o conceito arendtiano de banalização do mal, perspectivando Martha (sinédoque da figura feminina) como uma burocrata colaborante na conservação do Mal [é esta uma visão das coisas que, cremos, Fassbinder não desdenharia, e que, inclusivamente, podemos imputar, de modo mais flagrante ainda, à personagem de Hanna Schygulla em Lili Marleen (1981)].
Enfim, é a própria fisicalidade do “Ken” ariano que é Helmut (a sua rigidez como sinal de autoritarismo, o sorriso sick) que, reveladora de uma personalidade obsessiva e violenta, faz transparecer o perfil doentio do nazismo enquanto enorme psicose colectiva.
Existe, porém, em Martha, um momento, em concreto, onde Fassbinder compila magistralmente alguns dos aspectos mais representativos da estética nazi enquanto uma global simbólica do mal (não no sentido ricoeuriano, desfaçam-se equívocos): falamos dessa fabulosa sequência na qual a câmara testemunha o primeiro encontro entre Martha e Helmut, a qual analisaremos, passo a passo, sob seis pontos de vista, ou, melhor dizendo, sob seis vistas de um mesmo ponto: a estética fascizante que nessa sequência Fassbinder “cola” ao encontro de Helmut e Martha, como que lançando os indícios do “holocausto” que será a vida conjugal de Martha (naquela que é também uma insinuação, tão fassbinderiana, do casamento burguês como uma relação sado-masoquista).
1. A escultura
No início da sequência, quando Helmut sai da embaixada e caminha em direcção à câmara, podemos ver – enquadrada a seu lado, primeiro, nas suas costas, depois – uma escultura de um nu representando a virilidade e a masculinidade do homem “autêntico” – é, no fundo, o que Helmut vê em si (e, eventualmente, o que Martha deseja, se alinharmos na tese fassbinderiana da mulher como co-responsável pela subsistência do machismo na sociedade). Trata-se, portanto, de toda uma mitologia (no sentido barthesiano) de que tanto o nazismo como o fascismo italiano se aproveitaram, conectando-a com o homem sexualmente vigoroso e fértil, futuro pater familias, normatização – e manifestação do conceito foucaltiano de biopoder – de que a perseguição aos homossexuais, supostamente “débeis”, foi o reflexo mais imediato. Paralelamente, representando este tipo de esculturas, por vezes, um Deus específico (embora a divindade não seja tema exclusivo da escultura quer da antiguidade clássica, quer, por exemplo, da renascentista), a sua inserção no plano figura, metaforicamente, o futuro “endeusamento” a que Helmut será votado por parte de Martha (o culto da personalidade tão caro ao totalitarismo hitleriano, igualmente extensível ao soviético), a qual, depois de perder o Pai logo no início do filme (com quem teria uma relação sexualmente ambígua), “precisa”, urgentemente, de reintroduzir um novo homem (um novo chefe, uma nova autoridade) na sua vida. É, enfim, a reintrodução da “normalidade” fálica na vida da mulher.
2. “Táxi!”
Há qualquer coisa de arrepiante nesta única palavra proferida por Helmut quando vê Martha, ainda uma desconhecida, chegar de táxi à embaixada (um “Táxi!” que quase soa a um “Heil Hitler!”, diríamos…). Martha ainda está a falar com o taxista, sob a janela do carro, quando Helmut, hirto e de braços cruzados, manifesta, numa frase tão simples quanto fulminante, o autoritarismo por que se pautará a sua relação com a futura mulher: “Táxi!” não é um pedido, mas uma autêntica ordem que Helmut dá, mais do que ao taxista, a Martha, obrigando-a a despachar-se e a deixar o táxi livre para si, coisa que Martha faz prontamente. É o primeiríssimo indício de obediência, de submissão, e do correlativo despotismo que constituirá o padrão comportamental desta futura relação conjugal, assente na supremacia do Führer que a “natureza das coisas” impõe.
3. Os passos em volta
A sonoplastia de toda esta sequência tem uma particularidade muito interessante, e que é proporcionada pela gravilha do espaço onde as personagens se movimentam. As suas passadas, pelo som que provocam no pavimento, evocam o passo marcial dos exércitos, outra forma de significar a atmosfera profundamente bélica do encontro. Se o elogio à guerra enquanto momento revelador dos “verdadeiros homens” sempre foi bandeira quer do nazismo, quer do fascismo italiano (é a obscena ideia de que a guerra revela “o melhor dos homens”, que “dá carácter”), é também de uma guerra que aqui se fala, pelo menos na cabeça de Helmut, o predador nesta “caçada”. De resto, quem já visitou um campo de concentração nazi sabe bem o impacto que o pisar daquele chão, no meio do silêncio absoluto, tem para o espírito. Não se trata de efabulação do escriba: a gravilha utilizada para pavimentar os acessos dos dormitórios era propositadamente escolhida pelos nazis para transmitir aos judeus uma permanente sensação de que alguém – o “anonimato” do Mal, que pode ser qualquer coisa e estar em qualquer lugar, como factor de terror psicológico – os patrulhava. É nesta claustrofobia que, mais para a frente, mergulhará a vida de Martha.
4. A rotação fatal
Espantoso nesta sequência é o plano-sequência de que se serve Fassbinder para filmar o momento em que Martha e Helmut se cruzam, transportador de uma carga dramática invulgar. Trata-se de um plano de 720º (360º + 360º), fabricado por Michael Ballhaus, o director de fotografia de Fassbinder em Martha. Foi, aliás, a primeira vez que Ballhaus compôs este plano, repetindo a fórmula, com igual sucesso, em filmes subsequentes, de que é exemplo The Last Temptation of Christ (A Última Tentação de Cristo, 1988), de Martin Scorsese [uma variação desta fórmula pode ser vista, por exemplo, em Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), de A. Hitchcock, ainda que sem a mesma espectacularidade dramática]. Para além da evidente sugestão de “paragem do tempo”, há qualquer coisa de destruidor neste plano-sequência (falar aqui em “instinto fatal” faria jus ao humor “de terror” fassbinderiano): ele é fundamental na representação da sensação de tontura, de vertigem, que o encontro provoca em Martha e Helmut – quais Bela e o Monstro – e na relação de dominação e opressão que, logo ali, se estabelece. Por outro lado, aquele que, dramaticamente falando, poderia constituir um momento “mágico” proporcionado por um exercício de estilo exuberante, é, ao invés, um momento profundamente estranho, pontuado por uma atmosfera agressiva e intimidante. Enquanto a maior parte dos realizadores se serviu e serve deste tipo de plano-sequência para ilustrar a “magia do amor” – o que o converteu (ao plano), diga-se de passagem, num lugar-comum de muita “comédia romântica” descerebrada –, Fassbinder utiliza-o para sugerir uma magia, diríamos, … negra (o que não deixa de ter, novamente, uma pitada humorística).
5. A marcha
Depois da rotação fatal, a câmara segue Helmut, de costas, dirigindo-se para o táxi. Neste momento, há como que um “descuido” de Helmut, quando este marcha por uma fracção de segundos em direcção ao táxi, retomando, depois, o passo normal (o que Martha não vê, por estar a caminhar na direcção contrária). Como se, nesse preciso instante, Helmut deixasse cair, sem querer, a máscara e revelasse toda a sua natureza bélica.
6. Prisão
Depois de Helmut entrar para o táxi, Martha é filmada à porta da embaixada olhando demoradamente para Helmut. As grades da porta por detrás da qual se encontra e às quais se agarra marcam o momento a partir do qual a vida de Martha caminhará, progressivamente, para uma autêntica prisão. A casa que partilha com Helmut será a cela de onde nunca poderá sair. É este, pois, um plano-charneira na construção da personagem de Martha, porque definidor da sua futura condição de reclusa, no duplo sentido que a expressão consente: fisicamente, uma vez que Helmut a proíbe de sair de casa; e, psicologicamente, na medida em que, aterrorizada com a opressão do marido [nem por acaso, o serial killer de Peeping Tom (A Vítima do Medo, 1960), de Michael Powell], se tornará absolutamente neurótica, como que “presa” na sua própria loucura.