Na pré-produção do The Sixth Sense (O Sexto Sentido, 1999) – ou talvez tenha sido na do Signs (Sinais, 2002) -, o M. Night Shyamalan mostrou repetidas vezes o The Birds ( Os Pássaros, 1963) aos seus colaboradores, para que eles soubessem o que era um filme sem música e suas respectivas orgias do silêncio. Entretanto, a mais de nove mil quilómetros a este e com uma vintena de anos adiantados, Gabriel Alves brindava-nos todos os sábados e domingos com os seus poéticos relatos da bola, onde predominavam brincos do calibre de “silêncio ensurdecedor”. Por entre tais práticas, alguns críticos do cinema diziam-nos que havia “filmes musicais” sem música (Mário Jorge Torres, sempre). E tudo isto aconteceu já Jean-Pierre Melville tinha entregue os seus predicados ao Senhor.
Não é verdade o que sua excelência está a pensar. Sua excelência está a pensar que está a ver um still das maquetes dos Thunderbirds (1965-1966) ou a pensar na razão por que está a ler este texto. Sua excelência está a ver um still do último filme do citado Melville, de seu nome Un Flic (Cai a Noite Sobre a Cidade, 1972). Un Flic é, para a maioria dos “especialistas”, um “filme menor” na obra do Jean-Pierre, longe das catedrais de Le Samurai (O Ofício de Matar, 1967) ou do Le Cercle Rouge (O Círculo Vermelho, 1970). No máximo dirão que é uma “piquena obra-prima”. Aconselhamos os “especialistas” a beberem, no espaço de duas horas e picos, cinco sagres, duas minis, uma imperial, duas alianças velhas e a darem duas passas num cigarro sem tabaco. Mas em pé.
A meticulosidade vai melhor sem música. Já em 1996, na obra-prima Mission: Impossible (Missão Impossível, 1996), e na ainda maior obra-prima que é a sequência de Langley, o Tom Cruise pedia ao Jean Reno: “a partir de agora, silêncio absoluto”. A disposição do espectador ficava apenas focada nas acções e preparos dos personagens, sem elementos exógenos a perturbarem o ambiente. Como em Hitch (desculpem, não tive intenção de associar um filme do De Palma ao Alfred), o nosso olhar fica cerrado à volta de objectos e movimentos corporais, que adquirem proporções de farto pendor hipnótico.
Tudo isto é levado à escala infinita na sequência central de Un Flic. São vinte minutos de acção em tempo real,onde o chefe do Rambo tem uma missão a executar. Há espaço para a apreensão total de cada gesto, da importância de cada olhar ou objecto: cigarros a serem acendidos, o Richard Crenna a pentear-se esmeradamente, um íman, a ladainha do som do helicópetro, etc. Qualquer intromissão externa seria um pernicioso corte ao fio condutor que une todas aquelas coisas. Estamos a imaginar Hans Zimmer a meter por aqui a sua colherada e pensamos imediatamente em motosserras, atiçadores ou no Herman Van Rompuy, um desastre.
Depois há o silêncio dos próprios personagens (uns diálogos meramente funcionais) e a câmera económica do Melville e a montagem que deixa respirar os planos entre si e temos o quadro completo. Pergunta: alguém hoje em dia faria uma coisa destas? Talvez o de Palma, se lhe dessem rédea solta. Ou o Porumboiu, se o enviassem para Hollywood, lhe entregassem 70 milhões de dólares e não o chateassem durante seis meses. E, sobretudo, se mantivessem o Hans Zimmer bem longe do set e da pós-produção.
Resta acrescentar que a visão de Un Flic surgiu na ocasional leitura de um artigo de Sérgio Daney, onde se discorria sobre “realizadores maneiristas”, onde as imagens se reflectem noutras imagens e onde não há relação entre personagens (apenas entre imagens e audiência) e acabava tudo com o Daney a escrever que “antes assim, do que ter academistas”. Impressionado com tais sucessos de escrita (tenho muito medo do Sérgio), logo tratei de pôr em andamento a visão de tal relojoaria. Termina assim tal crónica, sem termos mencionado o nome de Catherine Deneuve mais do que uma vez.