Das primeiras vezes que li o título Quatermass and the Pit pensei que era de um conto de Edgar Allan Poe (estava provavelmente a confundir com The Pit and the Pendulum). Aliás, até há relativamente pouco tempo não fazia ideia de que era o nome de uma série de televisão e muito menos sobre o que versava, ainda que seja bastante famosa, principalmente em Inglaterra, onde foi produzida, e, diz-se, tenha influenciado pessoas como Stephen King e John Carpenter (a influência neste último não é difícil de asseverar). No entanto, sem querer esticar muito a corda e embora seja bem mais wellsiana (de H. G. Wells), sente-se nesta ficção científica com viagens espaciais, alienígenas colonizadores, cientistas crentes, militares cépticos, políticos oleosos e gentes indefesas mas não inocentes – os futuros lugares comuns de um género – algum do terror inefável da obra do escritor americano (talvez na estranha explicação dos fenómenos sobrenaturais).
Se as séries de ficção científica nunca foram propriamente uma raridade nos ecrãs de televisão ao longo dos tempos – Star Trek, Doctor Who, Space 1999, etc. -, não deixa de ser singular que Quatermass and the Pit, que nem era didáctica como a série de Gene Roddenberry (apesar do discurso final meio moralista) nem tão leve como as aventuras do viajante no tempo extra-terrestre (mais orientada para um público juvenil), fosse exibida em horário nobre (segundas-feiras às oito da noite) no maior canal inglês, a BBC, em finais dos anos 50. Imagina-se o que a visão de cadáveres de insectos gigantes a apodrecer, a audição de sons inumanos (a manifestação de uma telepatia ancestral entre terráqueos e extra-terrestres) ou a revelação de que os humanos são descendentes dos marcianos (“we are the martians”) não terá provocado na cabeça de algumas criancinhas. Numa, pelo menos, sabe-se o resultado: segundo Simon Goddard no livro Ziggyology: A Brief History of Ziggy Stardust, o jovem David Jones não perdia um episódio de Quatermass e acabou por criar e matar uma estrela rock do outro mundo (e a questionar se haveria vida em Marte).
Reza a história que, para preencher uma falha de programação no Verão de 1953 (a dois anos da televisão em Portugal), a BBC encomendou uma série a Nigel Kneale, um autor recém-contratado. Kneale escreveria os seis episódios de The Quatermass Experiment, a primeira do que haveria de ser uma tetralogia sobre o professor Bernard Quatermass, um cientista especializado em foguetões que lançaria a Inglaterra para o Espaço muito antes dos Estados Unidos e da Rússia (naquele que é o pedaço mais inverosímil desta ficção científica), ao jeito dos serials cinematográficos, com aliciantes cliffhangers no final de cada capítulo. Juntar–se-ia depois a Rudolph Cartier (um judeu vienense emigrado), realizador com quem teve uma bem sucedida associação, para produzir a série. À altura, quando as técnicas de gravação ainda eram pouco sofisticadas, as filmagens em estúdio eram difundidas em directo (acopladas a imagens pré-filmadas em película, necessárias para exteriores ou para momentos que exigissem efeitos especiais mais requintados). Mesmo depois de muitos ensaios, era natural ver actores a baterem nos cenários (que vacilavam), a deixarem cair adereços e a esquecerem-se de diálogos ou os operadores de câmara a falharem os focos. De qualquer forma, dessa primeira experiência, devido às tais limitações técnicas, restam apenas os dois episódios iniciais. Mais tarde haveria um remake cinematográfico da Hammer (que iria reproduzir os três primeiros Quatermass para cinema) e um remake televisivo em 2005, filmado da mesma maneira.
The Quatermass Experiment foi um êxito, que levou a uma sequela intitulada Quatermass II em 1955, já depois da dupla Kneale-Cartier ter lançado aclamadas versões televisivas de Wuthering Heigths e Nineteen Eighty-Four, com um novo actor a interpretar o professor (e a cada nova série surgiu um novo actor principal – o sisudo John Robinson substituiu Reginald Tate, que havia morrido, mas seriam as sobrancelhas do afável André Morell a fixar a imagem da personagem -, uma tradição que passaria para o Doctor Who). Esta segunda série, uma espécie de They Live (Eles Vivem, 1988) avant la lettre, mostra o governo e o exército britânicos controlados por forças extra-terrestres que tentam dominar os humanos (uma constante nas forças extra-terrestres) servindo-se deles sem que os próprios saibam. É a paranóia conspirativa a descer sobre uma cidadezinha costeira inglesa, ou como o mais fundo terror vivifica na aparente normalidade da vida quotidiana.
No fim da década, chegaria então Quatermass and the Pit, o melhor dos três primeiros Quatermass (e, presumivelmente, melhor do que o quarto, o que não posso garantir, porque não vi), proclamado um dos grandes triunfos da televisão inglesa: o estilo de Kneale atinge uma depuração que enjeita diálogos expositivos (que afligiam um pouco as séries anteriores), embora se mantenham as dificuldades técnicas (as emissões em directo, os primitivos efeitos especiais) que impossibilitam as grandes cenas de acção habituais na ficção científica contemporânea e impõem que a sugestão se sobreponha à visão das coisas (só o último episódio, em que all hell breaks loose literalmente, sofre com isso: os factos são mais relatados do que vistos). Ainda assim, a terceira vez que Bernard Quatermass salva o mundo do apocalipse (ofício para o qual professor tinha uma verdadeira vocação) tem um escopo maior do que o das séries anteriores: Kneale casa sagazmente o enredo com a própria história da humanidade. A veia auto-destrutiva dos seres humanos – a violência, as guerras -, as manifestações sobrenaturais – espectros, sons vindos de nenhures, aparições -, a bruxaria, e a própria figura do Diabo (semelhante a um espécime de Marte) devem-se às tentativas de colonização dos marcianos, quando o seu planeta começou a tornar-se inabitável há cerca de cinco milhões de anos.
Para lá de todas as qualidades – é uma obra de ficção científica muitíssimo bem escrita, engenhosa, inteligente, excitante e viciante -, Quatermass and the Pit é importante por uma outra razão: marca uma das primeiras contribuições do BBC Radiophonic Workshop, o misterioso grupo de músicos responsáveis pela música incidental, ruídos, estranhíssimos efeitos sonoros que apavoraram gerações de espectadores ingleses (e deram origem ao interessantíssimo sub-género hauntology na década passada). Quem ouvir isto e não sentir um frio a percorrer espinha acima, o horror a retesar os músculos e o cérebro a desfazer-se é maluco.