The Last Emperor (O Último Imperador, 1987) é provavelmente o filme mais célebre de Bertolucci, juntamente com Ultimo tango a Parigi (O Último Tango em Paris, 1972) e Novecento (1900, 1976). É um filme enorme, na duração, na ambição e na fama. Ganhou nove Oscars, incluindo para melhor filme e para melhor realizador, e permanece uma das representações da China no cinema mais conhecidas de sempre.
The Last Emperor é um daqueles filmes que pertence a outro tempo, em que algum cinema aspirava a uma monumentalidade de histórias da história e não de CGI e ficção científica. É também um filme onde o histórico importa tanto como o esplendor do artifício: das cores, dos sons, dos tecidos, da arquitectura, das multidões. Vive ali o barroco de um épico mudo, a exuberância de Sternberg, a dimensão de Lean e a escala de um blockbuster chinês do século XXI.
Mas nem só de monumentalidade vive The Last Emperor. Como noutras obras de Bertolucci, como Il conformista (O Conformista, 1970) ou o próprio Novecento, o grandioso e o íntimo convivem, como se de uma ópera se tratasse. A vastidão dos espaços, o pormenor dos cenários, o esplendor do guarda-roupa, as marcas da caracterização convivem com expressões de intimidade, de desejo, de tristeza, de solidão. The Last Emperor é uma tragédia onde a pequenez do indivíduo se entrecruza com a grandiosidade de um país, marcados por um tempo em que as mudanças eram muitas vezes forçadas por outros.
Baseado na autobiografia do último imperador chinês, From Emperor to Citizen, o filme de Bertolucci acompanha o percurso de Aisin Gioro, também conhecido como Henry Puyi, desde o seu nascimento, pouco antes da morte da emblemática imperatriz viúva Cixi – cujo retrato feito por Bertolucci não anda longe da caricatura feita noutras representações ocidentais, incluindo cinematográficas. Com dois anos, Aisin Gioro sobe ao trono, a sua ignorância é explorada por eunucos e o seu poder retirado após o triunfo da revolução republicana de 1911. O irmão diz-lhe que já não manda para lá das muralhas da Cidade Proibida – um facto que ele, isolado do mundo exterior, parece desconhecer. Bertolucci acompanha as fases de crescimento de Puyi e alguns acontecimentos políticos que marcam a sua vida, directa ou indirectamente: da sua educação com o seu tutor escocês Reginald Johnston (Peter O’Toole, numa personagem que lhe assenta na perfeição) a sinais de uma China em ebulição, das manifestações estudantis de 4 de Maio de 1919 à expulsão do imperador da Cidade Proibida em 1924, passando pelos avanços japoneses na China. Puyi estava, como o seu próprio país, dividido entre o peso da tradição e o abraço da modernidade.
De menino-imperador a playboy em Tianjin, Puyi voltaria a ser imperador, já não de toda a China mas do estado-fantoche de Manchukuo, controlado pelo Japão. O desfecho é sugerido logo na abertura do filme: preso pelos comunistas como traidor, passou dez anos em “reeducação”, de onde saiu para se tornar jardineiro. Quatro actores dão a vida a Puyi no filme, destacando-se o agora esquecido John Lone naquele que foi provavelmente o papel da sua vida. Joan Chen está particularmente bem como a primeira esposa de Puyi, embora a personagem feminina mais fascinante do filme acabe por ser a princesa espia Eastern Jewel (Maggie Han), cuja vida real parece ter sido ainda mais rebuscada que a sua figura no filme aparenta.
Bertolucci cinge-se sempre à realidade de Puyi, deixando apenas implícito em certas deixas o que se desenrolava num quadro político-social mais vasto. Política, aliás, é algo que Bertolucci sempre tratou como indissociável do indivíduo, das suas aventuras amorosas e dilemas morais. O seu “último imperador” não é excepção.
Bertolucci não está, no entanto, preocupado com a verdade histórica mas em como “a história é filtrada pela imaginação”. Embora não seja uma colecção de erros, foram apontadas ao filme várias incorrecções e omissões, nomeadamente a relativa ausência da violência que marcou não só a ocupação japonesa como a “reeducação” comunista e que, aparentemente, era também um traço da personalidade do próprio Puyi.
As cenas passadas na Cidade Proibida são provavelmente as mais emblemáticas, um inebriante jogo de voyeurismo – os das personagens e os do espectador que olha como pela primeira vez para aquele complexo envolto numa aura de mistério orientalista (no filme, a Cidade Proibida passará de interdita a turística, mas nunca deixa de estar associada a uma ideia de “Outro”).
Diz-se que Bertolucci foi o primeiro ocidental autorizado a filmar no interior da Cidade Proibida, tendo a permissão sido relacionada com o facto de ser um apoiante do Partido Comunista Italiano. Significativo é, talvez, que uma das figuras dos dois grandes mestres de Puyi no filme, a do guarda prisional, tenha sido interpretada por um actor que era então Vice-Ministro da Cultura chinês, Ying Ruocheng (ele próprio com uma história de vida extraordinária). No entanto, a perspectiva do filme não é primordialmente a do partido, mas a de Puyi, é o seu individualismo e a sua estranheza e incapacidade de agir perante as mudanças na China que estão no centro do filme. Puyi não é retratado como herói, mas também não é propriamente retratado como um traidor. É quase um protagonista entre o trágico e o patético, por quem o mundo passa e muda sem que ele consiga encontrar o seu lugar e perdendo tudo o que julgava seu: da mãe a quem é retirado quando é feito imperador à ama que é a figura materna que conhece, do seu poder, à sua casa, da sua mulher ao estatuto que julgava ter na Manchúria. Só o grilo, memória de infância e símbolo da passagem vertiginosa do tempo, espera por ele.
Filmado em 1987, numa época em que a China era encarada no Ocidente com um certo idealismo de abertura – que sofreria um enorme abalo em 1989 – The Last Emperor é menos uma evocação histórica fidedigna e mais um cantar de cisne de um cinema de grande-ecrã monumental, e um exemplo das capacidades de Bertolucci para filmar o drama dos homens fracos perante um mundo demasiado grande e complicado.