Will Smith, depois de actuar pela primeira vez lado a lado com o filho em The Pursuit of Hapiness (Em Busca da Felicidade, 2006) e de ter produzido o remake The Karate Kid (Karate Kid, 2010) protagonizado por Jaden Smith, regressa agora com After Earth (Depois da Terra, 2013) produzido e protagonizado por ele e de novo com a companhia do filho. Houve quem visse nisto um presente para um menino mimado, estou em crer que é cinema – não fosse a realização assinada por M. Night Shyamalan.
Parece-me evidente que a carreira de M. Night Shyamalan mudou de rumo algures entre Lady in the Water (A Senhora de Água, 2006) e The Happening (O Acontecimento, 2008) e mais significativamente ainda com o filme seguinte, The Last Airbender (O Último Airbender, 2010). Isto é, com o filme de terror ambiental, Shyamalan passou do filme cerco [o bloco de apartamentos de Lady, a clareira de The Village (A Vila, 2004), a casa em The Signs (Sinais, 2002)] para o filme fuga (não no sentido sinfónico) onde as personagens fogem de um força persecutória (o vento em The Happening, os guerreiros do fogo em Airbender ou agora a Ursa em After Earth). Portanto, a estrutura da narrativa alterou-se, distendendo-se no espaço, o que é uma mudança significativa (mudança walshiana? não é este um filme mapa?).
Outra alteração dá-se com a presença acentuada de um discurso ambientalista que está presente nestes últimos três filmes de forma muito óbvia e do desaparecimento de qualquer discurso político; outra mudança marcante é o facto dos dois últimos filmes se direccionarem especialmente a um público infanto-juvenil na casa dos 12-13 anos, não querendo dizer com isso que os filmes percam o interesse para os restante espectadores. Com todas estas mudanças (a par da ausência de Shyamalan como actor – em pequenos papéis ou em cameos – que se iniciou com The Happening), poder-se-ia dizer que o seu cinema se descaracterizou, se anonimizou, enfim, que o Shyamalan touch desapareceu. Coisas como estas vêm sendo ditas por vários críticos (nomeadamente americanos, alguns que respeito muito – vide Richard Brody com palavras como impersonal ou bland) e não podiam estar mais erradas. Shyamalan não consegue evaporar-se dos seus filmes, não consegue escusar-se aos campos/contra-campos de 180º. Nem ao enormes planos das faces dos seus actores cortadas pelo enquadramento, nem à passagem despreocupada do plano objectivo ao subjectivo ou ao recurso ao flashback, para não falar da insistência nas ebulitivas relações pai-filho, no apego pelos elementos ou pela corporização das divindades hindus [a propósito, aconselho a completíssima defesa do Luís Mendonça de Airbender]. Tudo isso está aqui em After Earth, e só um olhar mortiço poderá não se aperceber.
Há no entanto dois aspectos novos neste filme que não havia nos anteriores: um corresponde ao facto de toda a sequência de eventos se assemelhar perigosamente a um videojogo, outro relaciona-se com a questão das comunicações digitais que nos afastam da presença um dos outros e do mundo. Quando refiro a proximidade dos videojogos não me refiro à estética de videojogo com as multiplicações digitais ou os efeitos à la W.S. Anderson, falo da estrutura narrativa em níveis (coisa que se vem tornando comum – vide Inception (A Origem, 2010) – e que revela uma relação ainda pouco explorada entre as crescentes partilhas do cinema e dos jogos digitais) com adversidades específicas em cada um deles, culminando no Boss final e na vitória (tudo propulsionado a cápsulas respiratórias em vez de cogumelos ou anéis – hoje em dia os jogos já não devem ter destas coisas…). Richard Brody avança uma hipótese para esta esquematização do argumento: o argumentista Gary Whitta, autor dos argumentos de videojogos como Prey ou The Walking Dead: The Game.
Sobre o segundo aspecto, parece-me que a inventividade de Shyamalan está mais presente. Ao longo do filme os ecrãs pululam, em tablets dobráveis, em fatos-ecrãs, em video-chamadas, em controlos de naves e demais aparelhos futuristas e, excepto uma primeira cena de jantar no início do filme, as personagens estão sempre distantes umas das outras – logo no primeiro plano do filme vemos um Jaden Smith que, correndo, se afasta do pelotão onde todos marchavam em conjunto – mas no entanto sempre comunicantes. Devido a uma queda onde só há dois sobreviventes (o pai Smith e o filho Smith), o progenitor encontra-se incapaz de mover-se (partiu ambas a pernas) e de comunicar com o mundo (o comunicador intergaláctico terá ficado na cauda da aeronave que se despenhou a 100 quilómetros do local onde eles estão) e por isso o filho terá que deslocar-se até ao comunicador perdido, assim salvando os dois de se tornarem alimento para as perigosas criaturas da terra.
O filme é sobre a travessia, mas em vez de se tratar de uma caminha solitária pela natureza, todo o filme se constrói em montagem paralela entre o pai e filho, evidenciando a montagem essa comunicação constante. Daqui surgem algumas das ideias mais interessantes de todo o filme, caso da forma como o realizador usa os seus habituais campos/contra-campos de 180º, mas agora através do espaço, ligando pela montagem as personagens que comunicam a dezenas de quilómetros. Ou seja, Shyamalan filma a confrontação à distância entre os dois, como se essa distância não existisse de facto, inventando na ilusão da montagem uma proximidade que a tecnologia cria e que se torna cada vez mais presente na nossas vidas – mas que sabemos ser apenas aparente, o que o filme concretiza nas consequências mais dramáticas. A este respeito há um plano escandalosamente belo (e que só por si revela a mestria do realizador): num flashback vemos a personagem de Will Smith comunicando – através de um tablet futurista – com a mulher e a filha nos anos desta, elas pedem-lhe que sopre as velas lá donde ele está, ele recusa-se por saber que tal é impossível mas elas insistem, ele acaba por aceitar e sopra. Eis senão quando as velas se apagam de facto do outro lado do universo para surpresa de todos (dele e de nós espectadores) menos das meninas que se riem; por detrás da câmara estava o filho que suprou simultaneamente com o pai criando assim o efeito e a surpresa. Num exercício de fora de campo delicioso, Shyamalan problematiza toda esta questão da comunicação à distância e da ‘descorporização’ das relações. Isto não é certamente impessoal ou sensaborão.