A verdade é que apesar do receio de um ano zero na produção de cinema em português, ainda não se sentiu, na competição nacional, o efeito de uma possível crise de apoios, porventura pela existência de projectos como o Estaleiro (entretanto terminado) ou como a Fundação Cidade de Guimarães. Continuam a surgir obras premiadas em festivais estrangeiros de renome (Gambozinos de João Nicolau, Tabatô de João Viana), continuam a confirmar-se nomes já conhecidos (João Pedro Rodrigues e Ivo M. Ferreira), e surgem novos talentos, a questão que fica é se terão meios para continuar a filmar no futuro próximo. Esta é a análise às restantes obras da competição nacional.
Primeiro filme do segmento 2, Torres (2013) de André Guiomar, o responsável pela fotografia em A Mãe e o Mar (2013) de Gonçalo Tocha, revela um apurado sentido estético, pela forma como consegue transmitir ideias e exprimir sentimentos com as imagens que cria. Os planos fixos parecem resultar de um estudo prévio e de respeito pelas regras de um cinema europeu de consciência social: o plano inicial que mostra um casal a discutir no carro através do reflexo do vidro e sem se ouvir o que dizem, e o plano final, que enquadra e encerra a personagem em frente ao movimento de uma ponte movediça, revelam disponibilidade em fazer afirmações sem palavras. Apesar das ideias visuais, falta apenas uma história ressonante, uma ideia do que dizer mais forte e importante além da deambulação desamparada filmada. Mesmo sem grandes declarações, dá espaço à expressão das suas imagens, e a disciplina formal permite que o filme ganhe amplitude.
Dingo (2013) de Pedro Caeiro é, antes de tudo, um estado de espírito, uma composição acerca da intenção de exprimir um sentimento. A letargia que se alastra ao longo do filme ilustra a melancolia da personagem principal, como da primeira vez que o vemos, em que, utilizando a profundidade de campo, o filme foca o rapaz deitado na cama enquanto a sua namorada fica desfocada, mais longe. A sucessão de planos demorados e de movimentos cuidadosos tem como objectivo a mimetização de um sentimento através da evocação de um mosaico contemplativo, sem que nenhum plano contenha em si significado importante. A ausência de contexto e de importância individual das composições levam a que passemos o tempo a tentar perceber o que está a acontecer, ou aconteceu, mesmo que o objectivo seja mesmo manter uma certa indefinição. Desta forma, gestos despidos de esperança tornam-se banais e ao mesmo tempo importantes porque são únicos, mas dissimulam uma ausência de mensagem sob a forma de um exercício de estilo.
Cigano (2013) de David Boneville é uma ideia alongada, um jogo dinâmico entre duas personagens confinado a um cenário fechado. Esticando até ao limite o conceito de combate entre as personalidades das personagens, um cigano indisciplinado e um miúdo rico bem comportado a quem o primeiro ajuda com os problemas no carro, joga com preconceitos e aparências. Este pas de deux que se desenrola dentro de um carro num caminho incerto, vive de silêncios desconfortáveis para acentuar a tensão de não sabermos a sua resolução. Durante a maior parte do tempo é também um jogo de enquadramentos das personagens com o exterior do carro, mas é quando a câmara imita olhares detalhados de um sobre o corpo do outro, que o filme ameaça escapar dos confins do seu conceito, mesmo que apenas brevemente.
Luminita (2013) de André Marques é uma co-produção entre Portugal e a Roménia. O filme começa com uma viagem de carro que junta dois irmãos que não se vêem há anos, e que param para resgatar o seu pai prostrado no meio de um campo – o destino é o funeral da mãe. Um regresso a casa temporário que é também uma despedida, o filme revela um cuidado nos enquadramentos e uma estética coerente sublinhada por movimentos lentos da câmara e longos planos fixos para reforçar um tom sóbrio. Com os sentimentos à flor da pele, apesar da proximidade espacial, as distâncias emocionais ficam bem estabelecidas. O filme permite-se uma fuga ao rigor estético na sua melhor sequência, onde, de repente, a câmara contraída liberta-se, torna-se sensorial e lírica, acrescentando emotividade à estética distanciada do filme até aí.
Primeiro filme do segmento 4 da competição nacional, Carosello (2013) de Jorge Quintela é um rodopio de imagens em rotação sobre um rosto num plano único. De curta duração, o pequeno filme experimental mostra o reflexo de um carrossel, num plano aproximado dos olhos de um velho, enquanto este debita uma corrente de pensamentos sobre um triste fim de tarde. Filme de bolso segundo o seu autor, é também uma execução minimalista sem ambição de ser mais que isso.
Versailles (2013) de Carlos Conceição começa com vários planos que se alongam no tempo, mas que pouco a pouco se revelam não elaborados, mas antes vazios de significância visual. Um rapaz e uma senhora de idade refugiam-se numa cabana para ele ajudá-la a morrer, mas o que podia ser um interessante ponto de partida torna-se apenas uma execução linear do argumento, sem surpresas. A pretensão em transformar este mergulho na solidão da floresta em algo que evoque um sentimento estranho e místico, ilustrado pontualmente com imagens do mar como exemplo de uma estética unidimensional, resulta apenas num dos filmes mais pobres do festival em termos de imaginação.
Longe do Éden (2013) de Carlos Amaral é uma produção da Fundação Cidade Guimarães e um produto atípico no cinema português pelo seu formato de filme pós-apocalíptico. Há uma evocação imediata de outras obras do género, de um imaginário catalogado por um cinema caracterizado por regras bem definidas. Um viajante solitário atravessa paisagens desoladoras, despojos de outros tempos que já não existem, é um homem transformado em soldado cínico pela sobrevivência. As composições que usam o espaço à volta da personagem, para em pouco tempo criar e caracterizar um mundo próprio, revelam inventividade em adaptar esse imaginário a cenários portugueses. Mas, ao mesmo tempo, esta execução competente não acrescenta nada de novo, seja em termos visuais ou narrativos, e mesmo os sonhos desfocados que abalam a personagem remetem para uma linguagem demasiada colada a outros filmes recentes do género.
Rei Inútil é o primeiro filme de Telmo Churro, alguém já com vasta experiência no cinema, tendo colaborado com realizadores como Manuel Mozos e João Nicolau, e trabalhado com Miguel Gomes como editor em Tabu (2012) e argumentista em Aquele Querido Mês de Agosto (2008). De longe o mais interessante deste segmento, o filme com as suas séries de quadros humorísticos e diálogos anestesiados e sardónicos, parece habitar um certo campo do cinema recente português. A personagem principal, alguém preso a um universo juvenil já depois da idade adequada, que imagina histórias à sua volta para preencher a solidão, com as referências ao futebol e às conversas de café, aproxima-se tangencialmente do mundo de filmes como Rapace (2006) de João Nicolau. As composições como piadas – como quando a personagem espera do lado de dentro do parque pela abertura de portas, ou a comparação da sua pose estática às várias estátuas que aparecem durante o filme – revelam imaginação na criação de sketches que se encadeiam, mas à qual falta ambição de uma voz própria e inventividade acutilante, de forma a surpreender.
Da competição nacional destacaria dois filmes – Gambozinos (2013) de João Nicolau, pelo retrato elaborado e imaginativo, e Na Escama do Dragão (2013) de Ivo M. Ferreira, pela sensação de estar a ver algo de diferente – mas não faltaram motivos de interesse e surpresas agradáveis. O Grande Prémio “Cidade Vila do Conde” (competição nacional e internacional) foi para Carosello de Jorge Quintela e foi e o Pémio para a Melhor Filme da Competição Nacional para Rei Inútil de Telmo Churro. A lista completa de prémios pode ser consultada aqui.