Domingo foi dia da apresentação de A Mãe e o Mar (2013) de Gonçalo Tocha, um dos vários filmes resultantes do projecto Estaleiro. O projecto é uma iniciativa da organização do Festival de Curtas Metragens de Vila do Conde, com vista à produção de vários filmes que incidam sobre temas ligados à região, e que utilizem como recurso estudantes de cinema das escolas da área.
Com A Mãe e o Mar, Gonçalo Tocha foi à pesca em Vila Chã, à procura de um filme. A encomenda da organização do Estaleiro pedia-lhe que investigasse o caso das mulheres pescadeiras na localidade marítima vizinha de Vila do Conde, mas o facto é que dessa época apenas restam memórias e histórias. O desafio de filmar algo que não existe, algo perdido entretanto no tempo, marca a primeira parte do filme, que é mais acerca do processo de encontrar uma história para filmar, e como o fazer – podia não haver um filme sobre as pescadeiras, mas haveria um filme sobre o processo de fazer esse filme. A pesquisa por um registo documental revela apenas quão obscura era a história das mulheres de Vila Chã e Tocha dedica-se a registar a geografia da praia da vila, dos artefactos que restam de outro tempo – os únicos barcos que restam, que agora cabem todos no mesmo plano – e o mar, herança sempre presente. Nesta fase do filme a presença do realizador é mais intrusiva, à semelhança do papel de estrangeiro que tenta perceber onde aterrou em É na Terra não é na Lua (2011), e o contágio da realidade pelos elementos de filmagem chega aqui a ser antes uma distracção, sublinhando a falta de material para filmar. Toda a encenação à volta da encenação, como as imagens da equipa a trabalhar ou os momentos após o “corta”, é apenas justificada quando começa a ser contraposta às pessoas que não estão habituadas a serem filmadas, que como que uma piada repetida, relevam a estranheza da situação.
O filme ganha maior interesse quando Tocha descobre as personagens da história que quer contar e encadeia nos seus depoimentos, deixando-as falar sem interferências, utilizando outros habitantes como interlocutores para colocar as perguntas. É aqui que a história começa a aparecer, como na melhor sequência do filme – encenada, mas apenas dirigida – de uma conversa a dois entre a filha de Glória, a única sobrevivente das mulheres arrais (a pessoa que mandava no barco) e outra senhora, filha de uma dessas pescadeiras. Sentadas junto a uma janela com o mar em fundo, partilham memórias das suas infâncias e histórias sobre as suas mães, que faziam parte desse inusitado fenómeno que eram as mulheres que pescavam ao lado dos homens, partindo para o mar e chegando algumas a serem responsáveis pelo seu próprio barco. Outras conversas, entre os elementos mais velhos da vila, relatam as dificuldades desse tempo e as origens dessa prática, e são ao mesmo tempo um testemunho do declínio que resta. Tal como João Canijo tinha feito sobre as Caxinas com É o Amor (2012) e o próprio Gonçalo Tocha com É na Terra não é na Lua, este filme continua o mapeamento visual de um Portugal esquecido, recuperando a tradição da atenção ao mar dada pelos documentários dramatizados de Leitão de Barros, como Ala-Arriba (1942) ou Maria do Mar (1930). O facto de já não ser possível filmar as pescadeiras em actividade, como já não tinha sido possível filmar a caça à baleia na ilha do Corvo no filme anterior de Tocha, mostra que resta apenas falar com as pessoas desse tempo, enquanto é possível, rodeados de despojos. O desalento e abandono actual sentidos na vila, revelam que, mais do que filmar a recriação póstuma de hábitos esquecidos, estes filmes ganham importância pela afirmação da persistência da tradição oral, o maior trunfo destes filmes. Obras que enunciam também a mais-valia destes projectos para as comunidades filmadas, para a sua memória futura, e pela oportunidade de assistirem à sua história numa sala cheia.
Na segunda-feira continuou a apresentação dos filmes produzidos no âmbito do projecto Estaleiro. De Onde os Pássaros Vêem a Cidade (2013) é o primeiro filme de André Tentúgal, com obra conhecida na área da música e videoclips. O início do filme é arrebatador: dois corpos nus numa cama, o suor a escorrer atrás de respirações ofegantes que dão lugar a um som inquietante em crescendo, uma máscara pousada numa mesa e o sol escondido pela persiana, os lençóis de uma cama vazia. Esta sucessão rápida de planos parece-se com aqueles primeiros segundos de detonação de um prédio, e o resto do filme é a ressaca das imagens anteriores. O desabamento que se segue mostra-nos o quotidiano de uma rapariga que parece presa a um lugar, isolada no seu canto no meio da cidade anónima. Uma série de planos fixos em preto e branco revelam um mosaico de momentos íntimos, como o dobrar da roupa ou o lavar dos dentes, que acentuam a solidão. Uma vez estabelecido o conceito, o ritmo começa a perder o fôlego inicial, e a claustrofobia do sentimento de auto-encarceramento é quebrada quando o filme foge do apartamento, para mostrar imagens exteriores. Ainda assim, o filme consegue em pouco tempo criar uma identidade própria, acentuada pelos enquadramentos da rapariga sozinha no seu apartamento apenas invadido pelos sons dos pássaros vizinhos e das pessoas ao longe, com a cidade distante, em segundo plano.
Fernando Ganhou um Pássaro do Mar (2013) resulta de uma encomenda do festival a Felipe Bragança e Helvécio Marins Jr., dois cineastas brasileiros. Segundo Felipe Bragança, resulta também de várias conversas à distância, de uma colagem de várias ideias dispersas, originadas pela urgência em analisar a actualidade a que cada um assistia. Filmado entre o Bairro das Fontainhas, no Porto, e o Rio Janeiro, conta-nos a correspondência entre dois amigos, quando Fernando, no Porto, recebe um papagaio enviado por mar. Esta troca de cartas revela um jogo de espelhos, no sentido em que revela ideias reflectidas do que cada um imagina estar do outro lado, mas no início apenas um dos intervenientes consegue ver os dois lados. De um lado, observamos o quotidiano de Fernando, desempregado que divide o seu tempo entre um pequeno apartamento com poucas condições e o café da esquina, enquanto se queixa, por carta, do pássaro que não parece ser grande prenda mas que até ajuda a atenuar a solidão – e não deixa de ter piada ouvir o papagaio a barafustar enquanto ouvimos Passos Coelho na televisão. Fernando imagina um Brasil paradisíaco, com as suas praias de água quente, sereias e índios nos seus palácios, e é exactamente isso que vemos do outro lado, a ideia de um Brasil imaginado aos olhos de um português à distância. Só mais tarde essa imagem é revertida para representar o Brasil actual, onde aflui dinheiro e pobreza ao mesmo tempo. De repente o palácio transforma-se numa barraca parecida à das Fontainhas, o índio começa a falar sobre a marginalização da sua cultura e o desperdício das Olimpíadas, e a metáfora, pouco clara no início, completa-se com a aproximação entre os dois pontos de partida.
Mahjong (2013) representa a continuação dos filmes de inspiração asiática para a dupla João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata. Situado na maior comunidade chinesa em Portugal, na Varziela, uma pequena zona industrial perto de Vila do Conde, Mahjong é uma ficcionalização de um local real mas de difícil descoberta. Abandonando quaisquer pretensões de um retrato fiel e exaustivo ou sequer um documentário, Mahjong é antes um delírio através de imagens hipnóticas, à procura de algo transcendente no deserto industrial filmado sobretudo à noite, quando a crueza das ruas solitárias é exponenciada. A longa sequência inicial é uma série de planos do ponto de vista de alguém que percorre de carro esta Chinatown diferente da de outros filmes, constituída por ruas iguais sem fim e armazéns em série. A descrição visual é a de um local sem pessoas, mas repleto de plástico: dinheiro de plástico, flores de plástico, pássaros de plástico, manequins na rua filmados como se fossem pessoas e na loja, num piscar de olhos a Blade Runner (Perigo Iminente, 1982). Uma investigação para tentar fazer sentido deste local acaba na construção de uma realidade alternativa, onde acompanhamos um figurante (Guerra da Mata) na procura da miragem de uma mulher misteriosa, o ocidente a perseguir o oriente, entre descaminhos. Ao jogar com códigos identificativos de diferentes géneros de filmes, entre o misterioso e o noir, submetido a um filtro Lynchiano (ajudado pela banda-sonora, elemento que Rodrigues admite voltar a usar), Mahjong baralha as peças para apresentar uma distopia, tal como Rodrigues tinha feito com Lisboa na curta Manhã de Santo António (2012). O resultado é uma composição anestesiada com um desfecho inesquecível e inesperado, que sublinha o jogo com os próprios códigos do cinema.