Depois de percorrermos o começo da carreira do teórico, crítico e cineasta Eduardo Geada, avançamos no sentido do presente (e do futuro), cobrindo a sua experiência na televisão, a homenagem que prestará a duas figuras cimeiras da Cinemateca Portuguesa (local da entrevista), a experiência da censura, o ensino do cinema, o fenómeno do digital e a evolução (ou involução) dos hábitos de consumo do cinema. Conclui-se assim uma conversa longa que pretendeu recuperar o pensamento ou as imagens do pensamento de um dos mais activos teóricos do cinema em Portugal. As fotografias são da autoria de Mariana Castro.
Luís Mendonça – Depois do A Santa Aliança (1977), passamos para a fase dos anos 80, um período em que trabalha sobretudo para a televisão, sendo a série Lisboa Sociedade Anónima o trabalho mais significativo. A que se deveu essa mudança e o que extraiu dela?
Eduardo Geada – Teve muito a ver com as condições de produção. Nessa altura continuava a colaborar muito com o Artur Semedo, que foi o director de produção do Lisboa Sociedade Anónima, e foi também graças à intervenção dele que conseguimos convencer a Direcção de Programas da RTP a produzir os filmes. Pesou também a dificuldade, que já então se sentia, dos realizadores se dedicarem a tempo inteiro ao cinema, de ter todos os anos um filme subsidiado pelo Instituto do Cinema, e fazer essa série para a televisão foi uma oportunidade. Que eu gostei imenso de fazer, aliás. Não há uma diferença ontológica no sentido da linguagem, mas há uma diferença, por exemplo, no sentido dos termos de produção serem muito mais flexíveis, serem mais ligeiros, de trabalharmos com material que não tão pesado, era tudo rodado em 16mm, as equipas eram mais pequenas, o que obrigava também a que os prazos de rodagem fossem mais curtos. Eu, apesar de ser uma pessoa que gosta de preparar os filmes, gosto de filmar depressa. Sempre me chatearam imenso, no cinema, aqueles tempos infinitos em que temos que estar à espera, que o director de fotografia mude o sistema de luzes, por exemplo.
Sabrina D. Marques – O João César Monteiro disse que o Sofia e a Educação Sexual (1973) foi acabado em 27 dias, três dias antes do prazo…
EG – Há uma razão. Cada filme tem uma história, mas o Sofia, talvez por ter sido o primeiro, foi um filme que preparei muito bem e em que sabia exactamente o que ia fazer. E como sabia o que ia fazer, tinha feito a repérage, tinha fotografado os décors todos e, quando chegava ao local de filmagem, só ficava à espera de que as coisas estivessem prontas do ponto de vista técnico para filmar. Por razões económicas, não só no Sofia como em todos, não repetia muito os planos. Quando às vezes leio na imprensa da especialidade que os realizadores americanos chegam a fazer 70 ou 80 takes do mesmo plano, fico absolutamente… O que eu não percebo nesse sistema de filmagens é como é que os actores aguentam. Ficam loucos. Eu tenho uma teoria muito pragmática: se ao fim de três ou quatro takes o plano continua a correr mal, é porque o plano está mal concebido. O que eu gosto no cinema é quando se faz à primeira. Faz-se o segundo take por segurança, mas se já está bom, está bom.
SDM – Há até uma cena no A Santa Aliança em que vão gravar a publicidade e em que o cameraman diz “está bom, está feito”…
EG – Os filmes de televisão são feitas por equipas de cinema, é tudo produção externa. Quando se diz que é produzido pela televisão, é porque a televisão financia, mas compra o produto feito. Agora não sei como é. Mas dantes eram equipas completamente autónomas. E como eu não gosto de repetir muitas vezes… E depois comecei, em alguns projectos, a permitir alguma liberdade ao que acontece no momento da filmagem.
LM – Em relação à substância da série, eu pergunto se não há – estamos nos anos 80 – uma forte dimensão documental, mas desta vez com uma mitigação do discurso revolucionário e uma crítica crescente à nova sociedade que se instala em Portugal, formada por personagens como a que encarna Artur Semedo em Pôr do Sol em Areeiro (1983), que é um vendedor de carros que se move exclusivamente por valores como o capital e o lucro. O Banqueiro Anarquista (1981), por ser um texto do Pessoa, parece produzir nesse filme uma crítica semelhante a uma sociedade que já esqueceu os ideais revolucionários e se conforma com um estilo de vida materialista.
EG – No caso do Fernando Pessoa, é literalmente o seu texto. Não está lá o texto integral, que é um monólogo, muito repetitivo e muito longo e, por isso, o trabalho de adaptação que eu fiz foi seleccionar cirurgicamente as partes que me interessavam mais, mas não alterei nada. Depois foi articulado em função do décor que escolhemos e houve uma transformação em que o monólogo passou a diálogo para justificar a situação, que foi tirada de um outro conto do Fernando Pessoa – a cena de estarem a jogar bilhar não é do Banqueiro Anarquista – e, portanto, o discurso do Pessoa, já nem estou a falar do filme, é sempre actual. Temos é que o contextualizar. No fundo, o Banqueiro Anarquista diz uma coisa muito engraçada, diz que o capitalismo é a forma extrema do anarquismo.
LM – Apesar de todas as histórias de Lisboa Sociedade Anónima se situarem antes do 25 de Abril, interessou-lhe esta ponte com a actualidade, ou não estava a pensar nisso?
EG – Não estava a pensar muito, estava a pensar mais na galeria de personagens. A ideia era um pouco esquemática mas organizou o projecto. A ideia era arranjar uma história para cada época – o Banqueiro Anarquista nos anos 10, o Almada Negreiros nos anos 20, e por aí adiante até aos anos 70 – e, curiosamente, cada uma das histórias foi originalmente escrita para essa época ficcional e, quando me dei conta disso na selecção das histórias, deliberadamente acentuei essa componente recorrendo àquela parte documental que aparece no início de cada história. Nunca me interessou fazer arqueologia histórica, fazer reconstituição de época por reconstituição de época.
SDM – No entanto, o seu cinema nunca saiu de Portugal. Os actores estrangeiros vêm, mas apetece dizer que Lisboa é sempre o palco dos filmes.
EG – Isso é verdade. Mas é uma Lisboa um bocado escondida, resisti sempre a filmar os lugares carismáticos da cidade. Mas tenho um grande amor pela cidade. Por outro lado, depois há um problema logístico quando se fazem filmes de época, principalmente quando não temos grandes meios de produção, que é o de encontrar um sítio em Lisboa que esteja igual ao que era naquela época, sem ter que fazer grande intervenção cenográfica. E isso é interessante porque, como eu gosto muito da cidade e a conheço bem, procurei sempre sítios que serviam e que, com um pouco de jeito, era possível filmar quase sem intervir.
LM – Aproveitando para referir o Passagem por Lisboa (1994), em sentido duplo, porque temos outra vez Lisboa e um filme historicamente datado, como surgiu a ideia de continuar Casablanca (1942)? Esta é a pergunta inevitável…
EG – Pois, mas eu nunca consigo responder a isso (risos). Não me lembro, mas uma coisa que toda a gente sabe é que o Laszlo sai de Casablanca com destino a Lisboa. E houve um belo dia em que eu resolvi pegar nisso como ponto de partida. Não foi só esse. Um dia estava eu a ler um livro de memórias de um tipo que tinha sido crítico dos anos 40, que referia histórias de pessoas famosas do cinema que passaram por Lisboa a fugir da guerra com destino aos Estados Unidos. O livro tem, por exemplo, um capítulo que fala da Pola Negri, em que esta tinha saído da Alemanha para ir ter aos Estados Unidos com o Lubitsch, com quem já tinha trabalhado, tendo ficado retida no Hotel Avenida Palace durante semanas à espera do barco que se tinha atrasado. E a partir daí comecei a ler sobre esta época e sobre as figuras que tinham circulado por Portugal nessa altura e achei que podia fazer algo dessa ideia. E depois foi como juntar peças de um puzzle. Claro que depois tive que incluir uma parte de intriga completamente fantasista…
LM – Há também um MacGuffin…
EG – Claro, o MacGuffin é o segredo que vem de Casablanca. É exactamente o Macguffin hitchcockiano típico.
SDM – A homenagem que faz a Félix Ribeiro e a Luís de Pina é uma homenagem ao cinema, sobretudo ao cinema clássico, mas vimos ali também uma despedida consciente do cinema.
EG – Isso é tudo verdade, mas é também uma homenagem aos dois homens que conheci muito de perto e que respeitava muito. Há um lado simbólico, eles representam um período do cinema que já não existe. Sobretudo porque são duas figuras com quem nunca tive afinidades de carácter ideológico, mas com quem tive relações pessoais de grande amabilidade e, no caso dos dois, de grande generosidade comigo. Quando comecei a interessar-me por cinema, vinha muito a esta casa [Cinemateca Portuguesa], à biblioteca, e houve uma altura em que eu andava à procura de um livro que não existia cá, e fui queixar-me à secretária do Félix Ribeiro, que sugeriu que falasse com ele. O que me surpreendeu, mas ele de facto recebeu-me, com grande afabilidade e disse logo que iria mandar vir o livro. E a partir desse dia, quando havia livros que eu queria e não havia cá, eu telefonava para o Félix Ribeiro e ele adquiria os livros. E ele dizia que não o fazia por mim, fazia-o pelos leitores, mas que se eu precisava deles, é porque tinham interesse. Estamos a falar do início dos anos 70 e eu era um miúdo, pelo que isto marcou-me, até pelo amor que ele tinha ao cinema. E o Luís de Pina foi uma pessoa que, quando o Sofia foi proibido pela censura, tentou por várias vezes mover as suas influências junto de pessoas do regime para autorizar o filme. Eu fiz uma projecção para ele e para dois tipos da censura, mercê de um recurso que tínhamos colocado, e eu presenciei a tentativa que o Luís de Pina fez junto dos censores para alterar a situação. Portanto, parece um pouco inexplicável porque é que eu dedico o filme a duas pessoas que têm pouco a ver comigo, mas foram importantes em circunstâncias da minha vida, em que se puseram ao meu lado por amor ao cinema.
LM – Na entrevista que dá à Vida Mundial em 1973 dá razão a Godard, quando este diz que a sua geração é a primeira a ter descoberto as cinematecas. Agora estamos aqui na Cinemateca Portuguesa, que passa hoje por diversas dificuldades. Que importância tem um espaço como este na preservação da memória do cinema e na divulgação do cinema português e internacional?
EG – A importância é fundamental, qualquer cinemateca. Eu não sou a primeira geração que descobre as cinematecas, sou talvez da segunda. A Cinémathèque Française teve também uma importância muito grande nos cineastas do Cinema Novo. Antes do 25 de Abril era muito frequente organizarmos grupos de quatro ou cinco para irmos juntos de carro a Paris, para estarmos lá uma semana só a ver filmes, não fazíamos mais nada. Íamos para a Cinemateca e era de manhã à noite, literalmente, porque nessa altura a programação começava às 11. Isto, uma ou duas vezes por ano. O vosso problema agora é o excesso de oferta, vai-se à FNAC e está lá tudo em DVD, mas naquela altura não. Muitos dos filmes fundamentais da época ou não vinham por razões comerciais – qual era o distribuidor que ia comprar um filme do Dreyer nos anos 60 para exibir em Portugal? – ou não vinham por razões de censura, e não só sobre razões políticas. Por isso, a importância da Cinemateca Portuguesa é óbvia, só posso dizer chavões sobre isso.
SDM – Voltando atrás, à censura, sendo alguém que viveu o cinema antes e depois, o que é que acha que mudou na produção do cinema, como é que acha que os realizadores viram as novas possibilidades que se abriram depois da censura nesse período de transição?
EG – Bem, a reacção que todos tiveram, e não apenas no cinema, mas também no teatro e na comunicação social, foi em primeiro lugar de regozijo. Para quem nunca viveu uma situação dessas, é difícil de imaginar. Posso dizer-lhe que muitas vezes, no dia seguinte a ter escrito para o jornal, eu lia no dia seguinte e via que faltavam lá partes do texto, e já sabia o que tinha acontecido. Todos os textos tinham que ir à censura, e o famoso lápis azul actuava. E havia coisas extraordinárias, que chegavam ao ridículo. Eu lembro-me que uma vez escrevi um texto sobre o cinema de arte e ensaio e dizia que era uma voga que estava a percorrer a Europa fazendo a distinção entre cinema comercial e cinema de autor, dava uma série de exemplos, etc, e o texto foi todo cortado só porque no fim eu dizia o seguinte: que pena que em Portugal não existam salas de arte e ensaio. A censura considerou que aquilo era uma desconsideração ao regime. Parecendo sair da entrevista, não sei se já viram teatro de revista mas, antes do 25 de Abril, era um teatro com uma enorme pujança popular. Não havia televisão com a força que tinha hoje… Em quatro ou cinco salas do Parque Mayer tínhamos actores com uma popularidade sem equivalente hoje. E o teatro de revista vivia muito de um discurso de duplo sentido, o discurso literal era aparentemente inócuo para os censores não cortarem, mas o discurso era para ser entendido num sentido figurado porque o subtexto estava sempre a dizer o contrário daquilo. Havia na altura os chamados ensaios de censura, porque a censura não analisava os textos, via as peças. E nesse período em que comecei a preparar as filmagens do Sofia, eu frequentava muito o teatro de revista. E uma vez vi o Raul Solnado num ensaio de censura, que era um ensaio geral feito só para os censores, a fazer os textos dele de uma maneira perfeitamente inócua, como se estivesse a ler a lista telefónica, sem graça nenhuma. Os censores nem devem ter percebido a existência daquele número, e aprovaram. Dois ou três dias depois, foi a estreia da revista. E o Solnado dizia o mesmo texto de um modo totalmente hilariante e crítico através do duplo sentido que ele criava só pelo modo como pronunciava o texto. O teatro de revista decaiu imenso com o fim da censura. De certo modo pode dizer-se que matou aquilo que estava na génese da sua popularidade, que eram as duplas piadas que, com o fim da censura, passaram a ser piadas literais, até grosseiras. É um paradoxo mas uma realidade, a que o cinema também esteve sujeito. O Sofia não teria existido se não fosse a censura, pelo menos não daquela maneira. As circunstâncias são fundamentais para perceber a obra.
SDM – Falando na sua experiência de mais de 20 anos na Escola Superior de Teatro e Cinema, o que é que descobriu nesse período e que papel acha que desempenha o ensino do cinema?
EG – Para começar, a criação da escola de cinema em Portugal foi um contributo decisivo para a melhoria técnica da produção cinematográfica nacional. Contribuiu também de uma forma marcante para o aparecimento de várias gerações de cineastas que, não só têm uma preparação técnica que antes nunca tinha havido, como têm uma capacidade de reflexão sobre os filmes como projectos pessoais que, de facto, antes do Cinema Novo não existia. Só por isso, valeu a pena. Claro que é necessário que ali, como em qualquer escola, haja actualização e uma consciência de que o cinema, hoje, não é o mesmo que na altura em que a escola foi criada.
LM – Há uma espécie de querela no ensino do cinema entre aqueles que consideram que o professor deve ensinar a filmar de um ponto de vista meramente técnico, a onde colocar a câmara, etc., e outros que consideram que o professor deve apenas dar algumas ferramentas, incluindo a teórica, e que deve ser o aluno a formar a sua própria linguagem.
EG – Isso é um problema central. O que talvez possa dizer primeiro sobre isso é apontar a necessidade de distinguir o que é ensino artístico do que é educação artística, porque o primeiro é vocacionado para os criadores, a segunda é algo de mais amplo, que tem a ver com a bagagem cultural inerente ao que é a história e a análise do cinema. Numa escola de cinema, qual é o perfil dominante? É o do ensino artístico ou o da educação artística? Se o objectivo é formar pessoas que, por seu turno, vão ter um papel importante na investigação, na museologia, na programação, na divulgação, no exercício da crítica, etc., não há dúvida de que a educação artística domina. Se, pelo contrário, estamos numa escola vocacionada para formar profissionais de cinema, a parte da educação artística não pode estar ausente, até porque devem aprender ali o que não vão aprender depois na profissão, mas o ponto forte do ensino artístico tem que ser o acto da criação. Dito isto, a minha postura é que nem no ensino artístico, nem na educação artística, o ensino deve ser normativo, porque isso é estar a limitar a capacidade de criação dos alunos. Não é possível ensinar arte, só é possível ensinar a parte cultural da arte, as suas regras, os seus padrões.
LM – Há vários cineastas que dizem que a sua grande escola foi a sala de cinema. Hoje em dia há uma tendência crescente para a especialização, mas acredita que a sala ainda é a principal escola?
EG – Acredito, claro. Há coisas fundamentais, como a sala de cinema, a paixão e o esforço pessoal. Não basta ir ver filmes, tem que haver uma reflexão. Mas a ideia de que o aluno tem que fazer tudo por si, em última análise leva a achar que as escolas não servem para nada. Há quem defenda essa teoria, de que só servem para incutirem aos alunos lugares-comuns. E por vezes é o que sucede. Há por exemplo uma grande praga, não tanto aqui, mas muito em escolas americanas, que são as disciplinas de escrita de argumento. São todas feitas de acordo com o mesmo manual, por isso é que depois os filmes são todos iguais. O Wim Wenders, no livro Emotion Pictures, utiliza uma metáfora muito interessante quando põe em confronto aquilo a que ele chama “o olhar do turista” e “o olhar do anjo”. Nos circuitos turísticos são criados miradouros que são pontos fixos onde todos tiram a mesma fotografia, porque usam todos o mesmo ponto de vista, mas o postal turístico é perfeito porque foi propositadamente predeterminado – a isto ele chama “o olhar do turista”. Hoje em dia, grande parte do cinema é um cinema que funciona a partir deste olhar, filmando a mesma história a partir do mesmo ponto de vista, plano geral, campo/contra-campo… e acabou – o Godard, na mesma altura, também dizia por isso que o cinema estava a desaparecer, porque a indústria estava a tornar-se num grande cliché. E o Wenders opõe a esse olhar “o olhar do anjo”, que é quando o cineasta descobre um lugar que nunca foi filmado, uma história que dá uma visão nova sobre o universo e que permita ao cineasta criar planos que não têm um ponto de vista banal. Não por acaso, ele surgiu com este discurso quando estava a filmar o Der Himmel über Berlin (As Asas do Desejo, 1987). É evidente que temos que ultrapassar esta situação, porque não precisamos do olhar de um anjo para fazer um filme original, basta um olhar humano. É preciso é que seja um olhar individual, pessoal e único. O que é notável, por exemplo, na geração dos primitivos americanos, e até mesmo na geração do Walsh e outros, é que eram realizadores que não tinham a consciência de estarem a fazer arte. Aliás, conseguimos perceber isso pelas célebres entrevistas que alguns ainda deram aos Cahiers du cinéma.
LM – Associarmos o experimentalismo ao nascimento da instituição clássica pode parecer paradoxal se tivermos uma visão monolítica do cinema, mas as fronteiras vão-se esbatendo…
EG – Mas eu percebo porque é que surge agora esse fascínio pelos primitivos. O cinema deve ter sido das artes do século XX, à excepção da arquitectura, aquela que esteve mais dependente da tecnologia. E a introdução do digital veio alterar completamente as condições de produção do cinema. O digital não é só um suporte novo e introduz um novo aspecto: é que permite reinventar o cinema. Voltámos a ter condições de fazer filmes que voltam ao primitivo. E no nosso caso, que temos um cinema que sempre teve uma componente artesanal muito forte, principalmente por razões económicas, o digital oferece claras possibilidades e suscita o regresso a um cinema primitivo no sentido de ter como essenciais as ideias e o experimentalismo. Agora, há um problema que é fundamental: a nova geração vai ter que pensar, não só nas condições de produção mas sobretudo no problema da divulgação dos filmes, que não vão ter lugar nas salas de cinema. O que é preciso é, sabendo que o digital vai ser apropriado pelos grandes monopólios, criar sistemas alternativos.
LM – A esse propósito, é curioso ter escrito em O Cinema Espectáculo, um livro de meados dos anos 80, que “se é verdade que o público tem vindo a desertar das salas, não se pode dizer que tenha abandonado o cinema. Pelo contrário, nunca se viram tantos filmes como agora precisamente porque o cinema está em toda a parte.” Nesta frase fica claro que os problemas que se colocam ao cinema permanecem mais ou menos os mesmos. Enquanto observador e espectador como situa esta aparente evolução, ou involução, dos hábitos de consumo de cinema?
EG – Há um texto do Walter Benjamin sobre a aura que é fundamental para se perceber essa evolução. Eu coloquei, como muitas outras pessoas a questão: no cinema, onde é que está a aura? Ele define a aura como sendo o objecto único e irrepetível, pelo que nas obra de arte, únicas, é a peça original. Um bom exemplo é o episódio, ocorrido há alguns anos quando num leilão foi vendido, a uma companhia de seguros japonesa e com grande destaque, um dos quadros da série dos “Girassóis” do Van Gogh. Durante dias existiram filas enormes de pessoas para ver o quadro na sede da companhia, até que um crítico de arte publicou um artigo em que revelava que o original, por uma questão de segurança, estava guardado num cofre e que o quadro em exibição era uma cópia. De um dia para o outro, as filas desapareceram. Porque as pessoas não iam ver o quadro do Van Gogh, iam ver a aura do Van Gogh. Ou seja, a ilusão de que aquilo era um objecto original e único. Quando pensamos no cinema… o cinema não tem original, o original é o negativo, mas o negativo não é o que o espectador vê, o que vemos é uma cópia – até lhes chamamos cópia. Portanto, o cinema é, de todas as artes, e o Benjamin já assinala esse paradoxo no texto dele, a única que não tem original. Mas há uma coisa que é original no cinema: a sala. A sala de cinema, no período clássico e não só, considerando o cinema como uma totalidade, como uma instituição em que existe uma componente de produção e uma componente de exibição, é o lugar original e único onde se vê uma cópia de um filme, e é cinema. Se eu estiver a ver um filme no meu telemóvel ou no ecrã do meu computador, o que eu estou a ver é uma cópia de cinema. O que acabou, ou vai acabar no cinema, é isto. Cada vez mais o que vamos ver nas salas de cinema vai servir a filmes que já não são cinematográficos, que são aquilo a que eu chamo pós-cinematográficos porque são feitos através de meios digitais que são pós-fotográficos, que já não têm a ver com aquilo que é a ontologia da imagem cinematográfica, baseada na reprodução do real. Até porque muitos dos efeitos digitais podem ser uma mistura do real com imagens geradas no computador, o que é o protótipo da ideologia multimédia, ou seja, a imagem de síntese. Há aqui uma componente do cinema que desapareceu. Alguns dos filmes mais interessantes vão estar fora das salas. O sistema tem que ser repensado.
LM – Chegando à última pergunta, cito uma frase sua que diz: “Nada valeria a pena se o cinema não fosse a aventura de mergulharmos dentro de nós próprios para aí procurarmos o rasto da nossa infância perdida.” Esta frase, que foi retirada de O Cinema Espectáculo, relaciona a infância com a idade adulta. Pergunto-lhe se ainda busca e ainda encontra a infância no cinema.
EG – Isso tem a ver com aquilo que eu lhes conto logo no início sobre o cinema Royal, de eu faltar às aulas para ir ver os filmes de aventuras americanos. É um pouco esse maravilhamento que o cinema traz quando somos miúdos, porque toda a gente gosta de cinema e, por maioria de razão, principalmente aqueles que fazem dele a sua vocação de certeza que têm na sua infância memórias de ficarem deslumbrados com os primeiros filmes que viram. É esse deslumbramento que eu procuro no cinema e que, de facto, cada vez encontro menos no cinema contemporâneo.