A doença de Lyme enclausurou John Lurie em casa, incapacitou-o de tocar saxofone ou de prosseguir a carreira de actor, deixando-o entregue às suas pinturas naïf reminiscentes da obra de Jean-Michel Basquiat e a estranhíssimos artigos da New Yorker que o retratavam como um paranóico em fuga de um ex-amigo convertido em stalker. E, o mais singular de tudo, deixando-o com sessenta anos, idade a que a figura esguia que serpenteava pelas ruas decrépitas da baixa nova-iorquina ainda a década de 80 mal começara parecia destinada a nunca chegar [no sentido em que aquela imagem que se fixara no preto-e-branco de Stranger than Paradise (Para Além do Paraíso, 1984) jamais poderia envelhecer]. A ausência do corpo de Lurie dos olhares do público (um público não muito grande mas, ainda assim, uns happy some) parecia quase fingimento, resultado do cansaço de artista, de uma Garbo moderna.
Pudera! Desde cedo, John Lurie praticou a arte do engano: para além do óbvio (todos os papéis que interpretou no cinema e televisão), fundou, com o irmão Evan, uma falsa banda de jazz (ou uma banda de jazz falso) que acabaria por se tornar numa verdadeira banda, de género indefinido, os excelentes Lounge Lizards; lançou um álbum póstumo de um músico afro-judeu, Marvin Pontiac, génio a que ninguém deu o devido valor em vida e, como é óbvio, nunca existiu; e, por fim, era ele mesmo uma personagem, com um chapéu na cabeça e os fatos estreitos do tempo do pai, o símbolo da Nova Iorque da no-wave. De tal forma que o tal artigo da New Yorker e consequente greve da fome do ex-amigo stalker para limpar o nome também cheiravam a invenções (ao que consta, não são).
Já Fishing with John, o programa de pesca para o qual convidou nomes ilustres do cinema e música (quase todos seus amigos; dois deles filhos de Lee Marvin, portanto seus irmãos) – Jim Jarmusch, Tom Waits, Matt Dillon, Willem Dafoe e Dennis Hopper -, financiado com dinheiros japoneses, filmado na Tailândia, na Jamaica, na Costa Rica e nos E.U.A. entre 1990 e 1991, montado e lançado na televisão americana no final da década de 90 (entretanto, os investidores japoneses tinham ficado sem dinheiro), existiu mesmo. Embora o simples facto de haver algo assim seja perfeitamente inacreditável e toda esta história muito pouco verosímil, basta comprar a edição da Criterion (ou procurar no YouTube ou aproveitar de outro tipo de pirataria) para comprovar a sua existência.
Como não poderia deixar de ser, é um falso programa de pesca, em que aparentemente qualquer pessoa que saiba pescar está proibida de aparecer e cujo narrador (Robb Webb, um verdadeiro narrador de programas de televisão), a voz de Deus e da Razão em qualquer programa similar, só diz non-sequiturs e disparates ou mentiras puras (logo no primeiro episódio, afirma qualquer coisa como “a palavra shark vem da palavra alemã shirke que quer dizer vilão”, o que uma simples busca pela internet desmente), quando não está a inventar perigos para os protagonistas de cada episódio (como se os pusesse numa lúgubre aventura por entre os cruéis rios de Heart of Darkness e a obsessão pela captura do animal de Moby Dick) para os quais a maior ameaça é morrerem de tédio ou a inventar histórias fantásticas (como a do pescador que se transforma em ave branca) ou até a vender os discos da editora de Lurie, a Strange and Beautiful Music (aproveito para mencionar que a brilhante banda-sonora de Fishing with John, disponível no site da editora, é da autoria de John Lurie; ouça-se e veja-se o belíssimo genérico, em que em apenas 40 segundos o músico consegue ser parvo e maravilhoso).
Por falar em tédio, não deve haver actividade mais entediante do que pescar (que me desculpem os aficionados), pelo que Fishing John é um programa sobre duas pessoas à espera de nada, em bom americano, shooting the shit, como nos velhos filmes de cowboys, que depende muitíssimo da química de Lurie com o convidado. O episódio de Matt Dillon, que o narrador afirma ser o melhor de todos, é claramente o menos interessante, por culpa do acanhamento do actor. O de Dennis Hopper, no período pós-desintoxicação das várias drogas que consumiu ao longo da vida (substituídas por incontáveis doces), das personas mais genuínas do cinema [como se pode ver em Hearts of Darkness: A Filmmaker’s Apocalypse (Coração das Trevas, 1991), o actor não difere muito das suas personagens], dividido em duas partes, é uma delícia. Jim Jarmsuch, a figura tutelar do programa (o humor é muito jarmuschiano e Lurie cresceu como personagem com ele) parece sobretudo enfastiado (“Why am I here?”), Tom Waits enjoa de barco (ou vomita por causa da noite de copos anterior) e sente-se mais confortável a jogar às cartas em terra (segundo a lenda, terá ficado tão zangado com Lurie por este o ter obrigado a participar que não falou com ele durante dois anos) e Willem Dafoe está simplesmente encatado em morrer de fome no meio gelo do Maine (Dafoe e Lurie morrem nesse episódio, Lurie volta no seguinte).
Enquanto pesquisava para escrever este texto (sim, eu pesquisei para escrever isto, um trabalho extenuante, que me tirou parte das forças reservadas para a escrita, o que se nota), descobri este vídeo de John Lurie a falar de Fishing with John, no que serão as imagens mais recentes que há dele. É bom vê-lo com os sessenta anos impensáveis (mesmo que isso destrua a imagem de outrora) e de aparente boa saúde (está gordito!). A não ser que não seja ele ali e que esteja de novo a fingir.
(A palavra pescarreta não vem indexada no Dicionário de Português, ou seja, não existe, o que condiz com este texto.)