Marcel Carné é um pequeno capitulo, Jacques Becker uma nota de rodapé: a genialidade de Jean Renoir fez baixas. E, no entanto, este Les enfants du paradis (Os Rapazes da Geral, 1945) permanece um marco, o filme de que se fala quando se fala de Carné, um expoente do realismo poético francês numa época em que a produção gaulesa conseguia ombrear com a produção americana, último filme da era dourada que a Segunda Guerra Mundial destruiu.
A uma primeira vista, Les enfants du paradis parece um evidente modelo de filme escapista, como o Musical durante a Grande Depressão, mas a produção da obra foi tudo menos pacífica. Iniciadas as filmagens em Nice, em plena República de Vichy, com a permissão dos censores colaboracionistas, viu o financiamento italiano com que havia sido planeado claudicar aquando da invasão da Sicília pelos Aliados. Entre o pára-arranca ordenado pelas autoridades e a deslocação das filmagens para Paris e subsequente regresso a Nice, passaram-se dois anos de filmagens. Entre a equipa, um dos actores foi preso pela Gestapo em pleno cenário e o cenógrafo Alexandre Trauner e o compositor Joseph Kosma, judeus, trabalharam todo o filme na clandestinidade. Por último, como a direcção cultural da República de Vichy só permitia filmes até 90 minutos de duração, Les enfants du paradis foi dividido em duas partes de 90 minutos, sendo apenas exibido com os seus 190 minutos de duração de pois da Guerra.
História de como quatro homens possuem a mesma mulher, Garance (interpretada pela esfíngica Arletty) sem nunca a conseguirem amar plenamente, Les enfants du paradis conta com inspiração verídica para a sua intriga. Baptiste Deburau (1796-1846) e Frederick Lematre (1800-1876) foram dois dos mais famosos actores da sua época e Pierre-Francois Lacenaire (1800-1836) um famoso criminoso acerca de quem se diz ter sido a inspiração de Dostoievski para o Raskolnikov de Crime e Castigo. Porém, e se mais provas fossem precisas, convém lembrar que ambas as partes do filme começam e acabam com cortinas, respectivamente, a erguerem-se e a descerem. O fulcro da obra reside na relação do teatro com a vida, de duas maneiras diferentes. A primeira, na medida em que os actores, na sociedade francesa do século XIX, representavam como que um semi-grupo social, com as suas rotinas e o seu próprio lugar, geográfica e sociologicamente; a segunda porque, nas personagens principais, toda a sua conduta mimetiza a forma de teatro que preferem: Baptiste, o mimo, é tímido e sonhador, rejeitando a carnalidade dos seus sentimentos por Garance, preferindo-lhes a idealização; Lemaitre é verboso, carnal e libertino, preferindo a tragédia shakespeariana ou a comédia como formas de expressão: o Conde detesta teatro e só conhece o mundo dos duelos e da imposição forçosa e material; e Lacenaire encena a sua vida de crime com a desfaçatez de uma farsa, indo para o cadafalso com um sorriso no rosto. Nesse sentido, Garance pode ser vista como uma figura teatral (e é-o numa pantomina), mas é também a mais humana das suas personagens, a mais disponível para amar de todas, incapaz de entrar no jogo das outras personagens, obedecendo apenas, mesmo que apenas interiormente, à sua vontade e à força das suas paixões. Ao ser a mais humana é também ela que quebra o tecido harmónico que perfaz o mundo teatral: ela defende que o amor é simples, a realidade e os conflitos entre os homens que a querem mostram o contrário. O drama humano, através da disrupção que a sua beleza traz, não acaba num final feliz, nem todos os papéis são recompensados ou punidos em conformidade (veja-se Nathalie, que tão bem desempenhou o papel de esposa de Baptiste e se vê abandonada no final do filme). Como nos melhores exemplos do chamado realismo poético francês, o fatalismo é a palavra de ordem e aqui prende-se com a impossibilidade de encontrar na vida a mesma perfeição que se encontra no palco.
Pela parte de quem assina este texto, os méritos de Les enfants du paradis são evidentes: a forma agradável como o seu tempo passa; a sumptuosidade e verosimilhança dos seus décors e da sua reconstituição de época; a imensa musicalidade dos diálogos de Jacques Prévert, virtuosos na poesia como no vernáculo; o classicismo sem esforço da câmara de Carné, ainda mais complicado tendo em conta as dificuldades de produção da obra. Ainda assim, a alegada visão política possível de atribuir à obra em que Garance, com a sua liberdade de escolha seria um exemplo da capacidade de resistência da França ocupada, o Conde a brutalidade do regime nazi, a arte teatral de Baptiste e Lemaitre a alma inabalável do povo francês e Larcenaire um símbolo maior de uma perturbação da ordem estabelecida, parece-nos rebuscada, sendo mais verosímil ver o filme na sua literalidade de melodrama. Mas até que ponto, considerando o resultado final e o que fariam posteriormente, nesta ligação entre teatro, cinema e vida, o próprio Renoir, Ophüls e até cineastas modernos como Bergman e Rivette, não estaremos perante uma espécie de Gone With the Wind (E Tudo o Vento Levou, Victor Flemming, 1939) francês, um filme exemplificativo de uma era dourada, a um tempo zénite e último estertor, mais importante pelo que representa do que pelo que é individualmente? Fica para cada espectador decidir.