Antes de adormecer, tentando espantar as imagens de mortos-vivos que me vêm assolando nos últimos tempos, faço umas leituras para desviar o espírito da necrofobia. Aproveito para ler uma das várias pechinchas que a última Feira do Livro trouxe, uma delas Lacrimae Rerum de Slavoj Zizek, editada pela Orfeu Negro (comprado na happy hour por metade do preço), e deparo-me com um texto sobre Hitchcock, originalmente publicado na compilação Hitchcock: Centenary Essays, de nome Alfred Hitchcock ou haverá uma maneira certa de fazer o remake de um filme. Vou lendo as palavra de Zizek e vou apercebendo-me de que muitas se aplicam, sem tirar nem pôr (algumas até demasiadamente bem encaixadas), aos filmes de George A. Romero, em especial ao remake do seu filme de estreia (e marco histórico) Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968) que Tom Savini realizou e que o próprio Romero escreveu e produziu.
Mas se Zizek olha para os filmes que Hitchcock refez e só encontra uma simplificação dos originais (Hithcock made easy), não me parece que isso se dê com este remake ou com os remakes que os próprios fazem. Talvez o ponto que mais me interessou na obra de Walsh tenha sido o facto de este conseguir refazer os seus filmes acrescentando-lhes sempre mais do que a repetição podia tirar. Também Romero consegue isso quando reescreve o seu filme de estreia acrescentando-lhe aquilo que a primeira trilogia dos … of the Dead tinha conseguindo impor e antecipando alguns dos desenvolvimentos que a trilogia seguinte fez.
Segundo Zizek, só haverá duas formas de fazer um remake ideal: uma é a ideia do Gus Van Sant de fazer uma cópia fotograma por fotograma num exercício de filme-arte (de objecto de galeria) encontrando no acto da cópia exacta as diferenças próprias de outro tempo, de outros actores, das cores e de toda uma produção nova; a outra hipótese seria filmar um dos argumentos subjacentes ao concretizado, isto é, encontrar as possibilidades que o acaso não escolheu e explorá-las. O que Romero escolhe fazer é esta segunda alternativa, olhar para o original e descobrir nele hipóteses não exploradas, finais alternativos, desfechos descarrilantes e, como tal, um filme completamente novo e, por outro lado, um filme que respeita a sua origem. A esse respeito Zizek dedica todo um capítulo aos finais alternativos filmados (e depois cortados) ou simplesmente insinuados nos vários filmes de Hitchcock. Lendo isto, talvez o leitor se pergunte então: como poderá encontrar-se uma continuação ao filme original quando o final do primeiro filme reserva a morte de todos os intervenientes? Pois bem, o que Romero opera neste filme é aquilo que Dawn of the Dead (Zombie, a Maldição dos Mortos-Vivos, 1978) e Day of the Dead (O Dia dos Mortos, 1985) já corporizavam de forma muito evidente, uma emancipação da mulher proporcional ao tamanho da praga. No original Night, a figura feminina, depois do primeiro ataque, entra em choque apático murmurando apenas alguns gemidos ao longo de todo o filme, sendo incapaz de lidar com a situação; em Dawn, apesar da gravidez, ela impõe-se no microcosmos masculino que se estabelece no centro comercial, enquanto que em Day essa tomada do espaço masculino é total quando os homens bloqueiam perante as tensões do fim do mundo e ela, a mulher, consegue lidar com as circunstâncias melhor do que qualquer um – “This whole fucking unit is collapsing. Everybody except you”. Desta forma, ao reescrever Night mais de 20 anos depois, Romero tem uma figura feminina já cimentada e fortificada. Esta é a hipótese que o original não explorava e que o remake segue. Arcando com as consequências dessa hipótese, o filme vai seguindo o carril do primeiro até que, pela presença de uma figura feminina forte, se desvia completamente do original encontrando um desfecho alternativo e prolongando-o.
Outro aspecto curioso do argumento de Romero, e que resulta também da evolução da sua mitologia em torno dos mortos-vivos, é o facto de, ao contrário do original, este apresentar o recorrente comentário: eles são nós [isto é, os mortos-vivos não são mais do que uma metáfora da sociedade ou simplesmente, nós não somos mais – leia-se melhores – do que os seres babosos e devoradores de carne humana]. No primeiro filme, Romero limitava-se a reflectir o seu tempo e a sociedade de então dentro da casa (como qualquer bom filme de cerco à la Hawks), não fazendo portanto considerações sobre os monstros que lá estavam fora, eram apenas monstros, catalisadores para os comportamentos extremados dos que lá estavam dentro – e sim, tudo se opera nesse limiar muito concreto que separa o dentro do fora. Acima de tudo, o que terá interessado a Romero era a atmosfera da luta pelos direitos civis e o racismo, onde o final é muito devedor do assassinato de Martin Luther King um ano antes da rodagem – “I was telling a story and I had a couple of radical ideas and, you know, it’s more of a political statement than it is a film“. A ideia de que o morto-vivo é um de nós (ou nós somos um deles) só surge no filme seguinte da série e, no entanto, parece-me que essa iluminação terá surgido alguns anos antes com o filme The Crazies (1973). Segundo o próprio Romero, o que hoje se pode ver em The Crazies corresponde apenas às primeiras quatro páginas do argumento original de Paul McCullough. Na ideia inicial não se demorava a câmara sobre a resposta militar nem sobre os sobreviventes nem sobre os refugiados; o que interessava a McCullough era descrever a vidas quotidiana das pessoas que, pouco a pouco, ficavam sobre o efeito da arma química que se havia derramado, tornando os intoxicados em dementes violentos – “the whole point was you can’t tell who’s nuts and who’s not in today’s world“. Embora o filme tenha acabado por ser outra coisa muito diferente, o facto é que aí deverá ter-se iniciado qualquer coisa, já que depois de The Crazies, todos os filmes do realizador lidam com esta dúvida entre o indivíduo são e monstro (ou a latência do monstro que há em todos nós). Não por acaso, é o próprio Romero que diz que foi apenas a partir desse filme que passou a considerar-se um realizador de facto. Deste modo, a nova versão de Night termina exactamente com este comentário: quando a protagonista observa uma trupe de rednecks a divertirem-se disparando sobre uns mortos-vivos dependurados [exactamente como no final de Diary of the Dead (Diário dos Mortos, 2007) ou numa das cenas iniciais de Survival of the Dead (2009)], ela comenta: “They’re us. We’re them and they’re us”.
Mas se é o caso de que os filmes de Romero são muitas vezes manifestos políticos (o racismo de Night, o consumismo estupidificante de Dawn, a política do medo da era Bush em Diary – Romero resumiu isto em “I don’t really care about who the characters are and what they do, I’m much more concerned about getting in some observations underneath it”), também se dá que todos os seus filmes (como já havia referido) a partir da colaboração com McCullough reflectem sobre aquilo que há de animalesco em nós, ou melhor, sobre aquilo que se perde do constrangimento social quando o animal/monstro toma o poder. Note-se que não me refiro apenas aos filmes de zombies, muito pelo contrário: em Martin (1976) encontramos um menino que é incapaz de conter (são uns tremores…) os impulsos que o levam a alimentar-se de sangue humano – o animal vampírico toma conta do ser racional -; em Monkey Shines (Atracção Diabólica, 1988) a animalização é evidente quando um recém paraplégico encontra na ajuda de uma pequena macaca amestrada a salvação para uma vida independente de terceiros mas no processo estabelece uma ligação psíquica com o animal, tomando poder dos movimentos do bicho e ganhando (no reverso) a agressividade dos seres irracionais (cometendo crimes diversos através da dita macaquinha); por sua vez, em The Dark Half (A Face Oculta, 1993) um escritor cria um alter-ego tão poderoso que este ganha vida e comete os crimes que o autor desejava mas nunca seria capaz de concretizar; e por fim, com Bruiser (O Rosto da Vingança, 2000) conhecemos um homem que depois de uma vida a ser esmagado por todos acorda sem face e, como tal, sem nada que o identifique como humano, permitindo-se cometer os actos de vingança que não passavam de divagações. Curiosamente, será interessante perceber que, contra o que se poderia pensar, a animalização nos filmes …of the Dead não se faz nos mortos-vivos, mas sim nos sobreviventes que, deparando-se com o apocalipse, agem de forma irracional (por exemplo, nas cenas finais de Day encontramos vários militares desesperados que lançam balas sobre tudo o que mexe, em paralelo evidente com as limpezas étnicas do III Reich – só que agora os alvos não se limitam a morrer…). Como o próprio Romero admitiu, os zombies sempre lhe desenvolveram alguma simpatia e o facto é que, com excepção do primeiro Night, os mortos-vivos são figuras dramáticas. Com Dawn ganham memória e portanto a compreensão de que estão de facto mortos; em Day ganham a aprendizagem e a compaixão (e também a raiva e vingança), tornando-se por isso parte de um contexto social que os repele; e em Land of the Dead (Terra dos Mortos, 2005) ganham a comunicação e a capacidade de transmitir conhecimento e com isso (e com a recusa dos instintos básico, como o medo do afogamento) arrebatam o paraíso dos humanos assassinos. Ou seja, se os vivos caminham para o desespero em cada filme de Romero tornando-se perigosamente impulsivos e irracionais, os mortos-vivos, no decorrer dos (primeiros quatro) filmes da saga, caminham o caminho inverso vencendo os seus medos e conquistando o seu lugar de direito (são poucos os vivos que pretendem partilhar o dia-a-dia com os mortos e acabam sempre condenados pelos companheiros que ainda respiram).
Mas regressando a Zizek, leio a certa altura, a propósito da sanita de Psycho (Psico, 1960) [e do mini remake da cena da casa de banho em The Conversation (O Vigilante, 1974)]: “a merda continua a ser um excesso que não se encaixa na nossa realidade, e Lacan tinha razão quando afirmou que passamos de animal a humano a partir do momento em que o animal fica sem saber o que fazer com os seus excrementos, quando estes se tornam um excesso que o incomoda”. Parece-me que o paralelo está à vista, é próprio dos homens não saber lidar com excrementos, entenda-se aqui restos mortais que ganham vida, e como tal só os humanos são alvo (Romero no primeiro filme punha os gouhls a comer insectos e em Survival tudo gira em torno de como podemos ensinar aos mortos a comer outra coisa que não carne humana acabada de chacinar), porque só os humanos têm medo de excrementos. Neste sentido, a sequência final do filme-aos-quadradinhos Creepshow (1982) é particularmente significativa, uma vez que trata de um homem obcecado com a limpeza (numa casa à prova de bicharada rastejante) atacado por uma praga de insectos de tais proporções que se vê engolido no mar de baratas e demais ortópteros. Por este ponto de vista, os zombies, embora excrementos, não fazem mais do que limpar a humanidade dos seus macaquinhos no sótão, isto é, contrariam aquilo que há de mais humano – os medos irracionais e as fobias.
Tudo isto para cimentar uma ideia que raramente vejo transmitida: George A. Romero é dono de um obra de singular coerência e está (ou pelo menos deveria ser posto) ao lado de outros realizadores como John Carpenter (que curiosamente, tal como Carpenter, parece mais preocupado, em tempos recentes, com o próprio cinema do que com o mundo – encontramos várias referências directas a Hawks [Sergeant York (Sargento York, 1941) em Land] e William Wyler [The Big Country (Da Terra Nascem os Homens, 1958) em Survival] nos últimos filmes de Romero) e Craven (outro esquecido).
Com toda esta conversa acabo por pouco falar do filme de Tom Savini. Mas quem é Savini? pergunta-se o leitor. Romero conheceu-o enquanto actor em Martin (onde interpretava um pequeníssimo papel secundário de trabalhador das siderurgias em falência na terra natal dos dois, Pittsburgh – um dos temas latentes no filme) e nesse mesmo filme havia uma cena onde o jovem Martin espetava um pauzinho no pescoço de um recém falecido e do orifício deveria jorrar uma pequena torrente de sangue (que o menino acaba por beber). Romero propôs arranjar-se uma carcaça e nela espetaram o dito pauzinho, e aí o talento de Savini surgiu pela primeira vez: “seria muito melhor se víssemos a cara do morto enquanto o espeto entra”, terá dito Tom, e como tal, pela primeira vez Savini fez um efeito especial. Daí para a frente, Savini tornar-se-ia num dos colaboradores mais fiéis de Romero (tanto como actor – tem um dos papeis principais em Knightriders (Os Cavaleiros da Lenda, 1981) – como técnico de efeitos especiais e maquilhador). E Romero sempre se mostrou muito devedor do trabalho que Savini ofereceu aos seus filmes – “Tom was responsible for much of my success because he would invent things on the spot that are still talked about in the movies that we did” – em especial em Day, onde o gore é muito mais intenso (já que a epidemia decorre há já vários meses e, como tal, a decomposição dos mortos está muito mais acentuada). (Tem-se referido que os horrores criados por Savini correspondem, de certa forma, ao horrores que o próprio presenciou durante a guerra do Vietname e, particularmente em Day, isso torna-se bastante visível.)
Mas de todas as mudanças (já enumeradas e das não enumeradas), talvez o que seja mais interessante é ver como o aspecto quase documental do original, com os seus passeios trepidantes pelo jardim abarrotante de mortos-vivos filmados em grande-angulares muito próximas, desaparece completamente no remake, o aspecto rough a preto e branco é agora coisa limpíssima numas cores muito puxadas. Ou seja, a realização de Savini (que se prologou depois apenas a alguns episódios de séries televisivas de terror) é simplesmente competente e pouco inspirada. O que torna este Night of the Living Dead (O Despertar dos Mortos Vivos, 1990) num objecto tão interessante é encontrarmos nele a mão de um mestre que tem a oportunidade de retocar a sua obra de estreia – e fá-lo sem qualquer pejo, ainda que seja talvez o seu filme mais admirado.