Faça este exercício em casa: experimente colocar Ryan Gosling junto a um papel de parede bonito com motivos asiáticos, ilumine-o em tons de vermelho, peça para ele fechar a boca e ter um olhar traumatizado mas pouco expressivo. Depois chame algum familiar com as capacidades de visão em saudável estado de funcionamento (se for do sexo feminino ainda valida mais a experiência) e peça-lhe para descrever o que vê. Se o seu familiar falar imediatamente no papel de parede (isto só funciona se o papel for mesmo muito bonito, eu aviso) tenho a dar-lhe os parabéns pois conseguiu: você é oficialmente um formalista.
Nicholas Winding Refn é um formalista e isso valeu-lhe há dois anos o prémio de melhor realizador em Cannes com Drive (Drive – Risco Duplo, 2011). Muita gente aplaudiu, outra tanta desejou torturá-lo, por expor assim tão descaradamente, tão in our face, os atributos técnicos do “grande autor”. Como agora em Only God Forgives (Só Deus Perdoa, 2013) permanece o mesmo herói silencioso, as posturas à frente das acções, o controlo absoluto da construção do ambiente e da forma através da luz, da cor, da música de Cliff Martinez. Mas terá então mudado alguma coisa?
A julgar pelas declarações de Refn o que mudou foi o facto de entretanto ter sido pai pela segunda vez e de ter tido necessidade de extrapolar em filme sentimentos de violência interiores mas com contornos existencialistas. O ponto de partida foi, diz ele, imaginar-se a ter uma luta física com Deus. Se comummente se critica o formalismo ele assenta numa tradição milenar de desvalorização da retórica (e com ela da arte, e dentro dela em particular da imagem) por essa “incapacidade” de chegar ao conteúdo, à ideia das coisas. A capacidade de produzir formas sem conteúdo. Ora é precisamente por aqui que Only God Forgives marca uma diferença face a Drive. Se o filme de 2011 tinha presente uma cega vontade de experimentar, utilizando o plot como pretexto para a forma, agora dir-se-ia que Refn deu ouvidos aos seus críticos, fazendo desaparecer a pureza do seu gesto estético.
Este gesto parece querer submeter-se a uma rede de simbolismo psicanalítico e construir uma viagem de contornos místicos e edipianos que nunca chegam a ser concretizados em pleno precisamente porque o seu ponto de partida, o seu “coração” está na forma. Assim o motorista de Drive é agora Julian, dono de um clube de boxe tailândes, impelido pela mãe a vingar a morte do irmão, assassinado pelo pai de uma prostituta que este mata. Mas ao contrário do primeiro, o protagonista interioriza a violência, recalca-a (é a sua mãe, o cameo de Kristin Scott Thomas numa versão horny e trashy de Jocasta, que lhe diz que tem a pila pequena) passando-a para a figura “divina” e inultrapassável do polícia tailandês Chang (Vithaya Pansringarm), com a sua espada silenciosa e acessos de violência extrema à la Kitano intermitentes com um puro estado de serenidade zen.
Dir-se-ia que no universo de Refn irrompe assim como ideia que tudo contamina uma ligação seminal à mãe (com contornos maternais e sexuais: há uma inesquecível cena final com “acesso” ao útero) que mostra também a violência como algo feminino e sensual, canalizando todo o mutismo e o estilo das suas figuras para o esboço de uma qualquer pulsão incestuosa. Traído desta forma pela necessidade de introduzir uma segunda leitura, por se levar demasiado a sério, o realizador dinamarquês dá ainda mais o flanco aqueles que não convivem bem com essa sua necessidade abstracta de expor a técnica. Não podemos deixar de pensar nos decalques às ambiências sonoras e visuais de mistério de Lynch, ao gosto infantil pelo choque de Gaspar Noé (a quem dedica o filme, juntamente com Alejandro Jodorowsky) ou até, imagine-se, às pinturas emocionais de In The Mood for Love (Disponível para Amar, 2000) de Wong Kar-wai.
Neste caldinho de imaginários onde sobressai o trabalho na fotografa de Larry Smith [Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados, 2000)] fica a faltar a coerência do próprio mundo de Refn. Sobram assim apenas fragmentos de esteta: o mutismo dos personagens como forma de falso enchimento de seriedade ou a violência como dispositivo sem particular noção de tensão. Cai-se assim na armadilha favorita do formalismo autoritário: um vácuo labiríntico entre a estimulação sensorial e a estimulação emocional. E nesse vazio, o espectador aborrece-se.