Raiders of the Lost Ark (Os Salteadores da Arca Perdida, 1981) foi o primeiro filme da trilogia, depois tetralogia de aventuras de Steven Spielberg protagonizada por Harrison Ford no papel do professor-arqueólogo-aventureiro Indiana Jones. Entretenimento de qualidade, homenagem cinéfila ou exemplo claro de representação orientalista e preconceituosa? Talvez um pouco de tudo.
Lembro-me de uma vez ter ouvido um colega dizer que quis ser arqueólogo por causa de Indiana Jones. Que um filme de aventuras desperte vocações académicas é algo tão comovente que parece coisa de outra geração. Mas a trilogia [depois com um apêndice de 2008, Indiana Jones and the Kingdom of the Crystal Skull (Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal)] de Steven Spielberg não é constituída por meros blockbusters como hoje se fazem semana sim semana não. Há muito em Indiana Jones que não pertence ao presente, nem sequer pertence ao ano em que foi produzido mas descende em linha directa de outro cinema, de outra maneira de ver o mundo.
Algo que deriva sem dúvida de uma cultura de aventuras imperialista de final do século XIX e início do século XX e, cinematograficamente, é herdeiro dos serials de aventuras e suspense da primeira metade do século XX. Há muito de Die Spinnen (As Aranhas, 1919-1920) de Fritz Lang, por exemplo. Tudo nos remete para uma tradição ocidental (europeia e americana) de cinema cujo poder mobilizador de público e crítica de outras épocas foi precisamente revigorado pelos trabalhos de Spielberg e companhia.
No entanto, essa nostalgia pelo passado, que nem sequer será perceptível para a maioria dos espectadores que desconhecem essas referências, não é inteiramente inocente. Há algo que soa estranho, soa mesmo errado quando revemos Indiana Jones no século XXI. A maneira simplista, por vezes quase insultuosa com que se retratam pessoas de outros países e culturas, reduzidos a figurantes, a idiotas ou simplesmente a “carne para canhão” dos heróis americanos. É certo que os anos 1980 foram uma época de triunfalismo americano, mas em 2013 há muito ali que nos deixa de sobreaviso. Não somos tão inocentes, não somos já tão crentes assim. O poder de Indiana Jones é tanto o poder ilusório do cinema como é o poder insidioso de uma visão limitada do passado e dos “outros”. Uma visão que, no caso dos três primeiros Indiana Jones, se reflecte na maneira orientalista – no sentido que Edward Said lhe deu – como se retrata o Egipto (em Raiders of the Lost Ark), a China e a Índia [em Indiana Jones and the Temple of Doom (Indiana Jones e o Templo Perdido, 1984)] e do antigo estado de Hatay, na actual Turquia, [em Indiana Jones and the Last Crusade (Indiana Jones e a Última Cruzada, 1989)]. Os imensos figurantes, os cenários “exóticos” (essa horrível palavra), a magia do oculto e do sobrenatural.
Os estrangeiros são falsos, estranhos, bárbaros ou atrasados. E, para horror de qualquer feminista mais acérrima, as mulheres são histéricas, assustadiças e dependentes da salvação do herói. Só Indy, herói americano, é sempre valente, sempre inteligente e sempre honesto. Um trota-mundos que rouba túmulos com boas intenções, herói mais da era dos grandes impérios (e do advento da arqueologia moderna) buy cheap cialis online mas que, peculiar contradição, nos apela mais que os homens-máquina que enchem as projecções 3D de hoje em dia.
Claro que tudo em Indiana Jones é aparentemente inocente. Um filme “para toda a família” (mais um rótulo assustador), com bons e maus inequivocamente delineados e quase sempre inocuamente anacrónicos (vilões nazis nos filmes de 1981 e 1989 e soviéticos no filme de 2008). Também é verdade que todos os filmes da trilogia nos remetem para uma época em que o mundo globalizado parecia ser palco de esquemas mais empolgantes que os de hoje – mas também essa ideia não está ausente de uma certa visão maniqueísta do mundo.
Mas nada disso importa muito se tivermos apenas em conta a mestria de Spielberg para criar entretenimento, inclusive aqui com um certo sentido artesanal que se sobrepõe a todos os efeitos especiais. Harrison Ford é um excelente herói de matiné, algo que já fora relevado na trilogia inicial de Star Wars (cujo último filme é posterior a Raiders of the Lost Ark) realizada por George Lucas (produtor do filme e “inventor” da personagem). O argumento de Lawrence Kasdan está repleto de deixas deliciosas que retêm a sua graça mesmo hoje.
Trinta e dois anos depois, Raiders of the Lost Ark está longe de obsoleto e o facto de manter intacto o seu poder de cativar espectadores em todo o mundo diz muito sobre o valor do filme. Um objecto singular, que não é inteiramente filho do seu tempo nem é, ainda hoje, visto como filho de um outro tempo passado. Para ver com um misto de despreocupação juvenil e crítica adulta. Quase, diríamos, como guilty pleasure.
Raiders of the Lost Ark passa dia 29, às 21:30, na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema.