“What happens in Vegas, stays in Vegas.” Malfadada a pessoa que, de uma forma ou doutra, ouse impedir que certas coisas “stay in Vegas”. Paul Verhoeven talvez já se tivesse habituado por esta altura a ser enxovalhado de todos os lados e de todas as frentes e, em Showgirls (1995), vêmo-lo completamente exposto (como disse Jacques Rivette, um dos poucos fãs deste filme), marimbando-se do princípio ao fim para as legiões do decoro, que têm muitas máscaras e muitas peles. Muito poder, também.
Da recepção a Showgirls sabe-se tudo, portanto não vale a pena estar a re-contar esses assuntos. Águas passadas. Vale a pena é olhar para o filme, tentar ver se não será o culminar de uma carreira, em que se vê tudo (temas, formas) diluído e concentrado sob a luz dos neons da noite de Vegas. Neons tão mentirosos e retumbantes como é mentirosa e retumbante a Nomi de Elizabeth Berkley (fabulosa Elizabeth Berkley). E tão retumbante como é a câmara de Verhoeven. Vem ela (Nomi) do nada – quantas vezes não terá ouvido dizerem-lhe “não és nada” e “não vais ser nada” -, dum fundo negríssimo que dispensa explicações ou palavras, de costas para a câmara e num plano que vale mil Van Sants, a trezentos e poucos quilómetros do deboche do Nevada e, até já podemos adivinhar, disposta a tudo. Desafio qualquer pessoa a chamar misógino a quem apresenta assim uma personagem. A conquistar e rasgar paisagens e céus, como dantes se fazia.
O carro do primeiro cabrão do filme faz os mesmos zigue-zagues na estrada do Turks fruit (Delícias Turcas, 1973) e do Spetters (Viver Sem Amanhã, 1980) da fase holandesa, asfalto demonizado e a lembrar ao de leve as rudimentares e sábias experiências dos pioneiros dos anos 30 ou um jovem Iosseliani, ou um jovem Fregonese. Tudo no fio da navalha, atravessa-se uma rua e pode ser a última vez, vidas desesperadas e desenfreadas. Que importa, não é? Para eles, nada. A estrada é o espelho deste mundo bárbaro e selvagem, que Verhoeven não acredita em contos de fadas. Incumbiu-se de mostrar o mundo que via e pagou caro por isso. Por alturas dos filmes de ficção-científica, que fez como artesão faz, sabia pouco dos USA e usou pedaços do que foi conhecendo e vendo [os media de Robocop (Robocop – O Polícia do Futuro, 1987), a corrupção ao mais alto nível de Total Recall (Desafio Total, 1990)]. Em 95, já sabia demais e saiu-se com coisa perigosa, mordaz, frontal e sem rodeios.
É esta frontalidade mais do que qualquer outra coisa, que incomoda. Faz mossa, leva a choques complicados com as nossas convicções. Qualquer coisa perto da máxima oliveiriana do “ninguém gosta de se ver ao espelho”. Pode ser isso ou o não haver um ponto de vista esmiuçado, descortinado, mas só matéria em estado bruto. Realidade. Porque o olhar de Verhoeven sobre este pedaço de mundo (e um mundo por si só) que são os U. S. of A. se calhar não é, ou não é só, um olhar denunciador, mas um de completa admiração. De quem percebe que é um país que vive e se alimenta de paradoxos fascinantes, de extremos que se confundem e se cruzam constantemente. Nomi ama e abomina aquela indústria e aquela gente, às vezes ao mesmo tempo. Como de resto parece sentir o mesmo sobre si própria. Fugiu duma alhada para entrar noutra bem parecida. Com gente bem mais requintada, bem mais prestigiada e que sabe pronunciar Versace, mas que lhe diz “You’re a whore (…), we all are. We take the cash, we cash the check, we show them what they want to see…”
Ela alinha neste jogo de “foder o próximo” e contamina-se e farta-se dele. Jogos que vão dando luzes sobre as suas inseguranças, os seus terrores e os seus fantasmas. Danças e beijos da morte, coreografias do fim do mundo, uma batalha do tudo ou nada com a diva do Stardust e do espectáculo lá residente, Goddess. Nomi e Cristal Connors (Gina Gershon) duas faces da mesma moeda, até ver. Até Nomi ver que era quem não tinha paciência para estes jogos quem tinha razão. Directores de entretenimento e chulos são a mesma coisa… “What is he, a pimp? Only people I know got pimp cars, are pimps.”, diz James, o coreógrafo frustrado. Mas até esse só a queria foder, que dizer a mulheres com sede de sucesso que têm talento é foda certa. Sem rodeios, sem escrúpulos. A vida e o sucesso são jogos de sobreviventes. E querem-me convencer que o filme e o realizador foram queimados porque são maus… Quê, esteticamente? Eticamente? Mostram é coisas que custam a engolir. A câmara até faz questão de no fim sobrevoar um poster que anuncia “Nomi Malone is Goddess” e aproximar-se de um sinal que diz que Los Angeles é a 280 quilómetros. Valha-me Deus… “Sátira”? “Big-budget exploitation movie”? Não, é uma declaração de guerra. “Hey, hey, let’s kick out the trash”…
“So, did you gamble?”
Nomi, agora Polly Ann Costello, acena que sim.
“Did you win?”
Volta a acenar.
“What did you win?”
“Me”
De Garth Brooks para Siouxsie and the Banshees e para a estrada do início do filme. Foi preciso passar por muito para se encontrar, foi preciso ver a cara inchada de Molly (Gina Ravera) para perceber. Mas Nomi agora endureceu e vai assombrar os nossos sonhos. Vingar-se como Polly Ann Costello na meca do cinema. Las Vegas como em Los Angeles como em Amsterdão como em Lisboa (como em…), que é tudo o mesmo. Um dos melhores filmes dos anos 90. É só passarem mais uns anos e as feridas sararem, que ainda ninguém se recompôs…