Nesta altura do Verão parece que o calor convida à resolução de palavras cruzadas e sudokus, como se o comportamento de réptil pacholas (que todos nós reproduzimos numa toalha à beira mar) obrigasse a uma compensação intelectual por via de passatempos mais ou menos complicados. Neste sentido convido o leitor à prática de uma simples operação aritmética que explicita, ainda que de forma enigmática, aquilo que é o novo filme de Michel Gondry: The We and I (A Malta e Eu, 2012) = Ferris Bueller’s Day Off (O Rei dos Gazeteiros, 1986) + Speed (Perigo em Alta Velocidade, 1994).
Explico-me: The We and I passa-se (salvo um par de cenas muito curtas) inteiramente dentro de um autocarro (uma carreira imaginária que atravessa Nova Iorque de uma ponta à outra, visitando cada um dos bairros ‘étnicos’) e acompanha uma série de alunos no seu caminho para casa naquele que é o último dia de aulas desse ano lectivo. O que Michel Gondry consegue neste filme é uma espécie de extensão daquilo que Be Kind Rewind (Por Favor Rebobine, 2008) já havia iniciado: uma aproximação (por vezes delico-doce e por vezes de uma sinceridade tocante) às comunidades pobres das áreas urbanas dos Estados Unidos [abandonando o romantismo inocente e atolambado de Eternal Sunshine of the Spotless Mind (O Despertar da Mente, 2004) e La science des rêves (A Ciência dos Sonhos, 2006)]. Nesse filme víamos um par de jovens adultos desamparados que encontravam no amor pelo cinema – especialmente em VHS – e no apoio da sua comunidade uma forma de combater uma força capitalista destruidora; agora o amor das personagens pelo cinema perdeu-se mas a noção de comunidade(s) exponenciou-se ao colocar-se num mesmo autocarro um representante borbulhoso da comunidade latina, asiática, afro-americana, católica, gay e por aí fora.
A certa altura parece que Gondry está a seguir uma lista – ou as directivas da ERC quanto aos debates políticos – de modo a não se esquecer de ninguém mas não demora muito para que percebamos que essa ideia não tem pernas para andar. A esse respeito há uma personagem que tem uma tirada que parece explicar o desejo muito americano do ainda muito francês Gondry: quando o autocarro fica preso num impasse do trânsito a motorista (gigantescamente obesa naquele arquétipo de mulher negra americana dona de si e do seu meio) pede a um par de alunos que viaja no seu autocarro que lhe vá buscar um fatia de pizza com ananás e alcaparras; surpresos com a escolha questionam a funcionária sobre a rara combinação e ela indica que se trata de um lema de vida cuja origem é um powerpoint sobre o Dalai Lama que a sua sobrinha lhe havia enviado: é nas combinações improváveis que se encontram as maiores aventuras da vida. Embora a citação seja de origem duvidosa, também são duvidosos os croquetes do café da minha rua e isso não impede que o resultado seja saboroso.
Também Gondry parece combinar pedaços de ananás e alcaparras cinematográficos numa salganhada surpreendente e não menos deliciosa. Daí que a soma aritmética do início não seja mera provocação cinéfila mas seja consequência de um trabalho apurado de mistura (que vão também à novela mexicana, à comédia adolescente, ao drama familiar tudo temperado com excertos de youtube enviados entre telemóveis como se fossem caramelos ou patilhas Babbaloo) preservando a frescura de cada um dos ingredientes – como o gaspacho do meu jantar.
Mas talvez o que seja mais interessante perceber com este filme é como a inventividade da câmara de Michel Gondry é capaz de transformar (e mastigar) os episódios das vidas do actores – que se interpretam a si mesmo, more or less true give or take a lie or two – num exercício semelhante ao multipremiado Entre les murs (A Turma, 2008) evitando o academismo deste e o seu desejo dramático opressivo. Um exemplo evidente disto é o caso em que uma das largas janelas laterais do autocarro se transforma num ecrã que reproduz o lado de lá de uma chamada telefónica que uma das personagens estabelece no interior, evitando assim a montagem paralela e evidenciando a multiplicação de ecrãs que assola esta geração de info-incluidos (mas muitas vezes socio-excluidos através das mesma tecnologias que os deveriam incluir), algo que Laurent Cantet nunca seria capaz de alcançar na sua sede de natur(al)ismo emocional. The We and I é muitas vezes de mau gosto, é mal educado, provocador, estúpido, egocêntrico, lamechas, enfim, tudo aquilo que é um adolescente – e não se lhe pedia mais nada, apenas que partilhasse o olhar dos seus personagens.