Aqueles de vós que acompanham os desenvolvimentos tecnológicos do mundo (ou os que como eu acompanham os documentários enlatados do canal Odisseia sobre os desenvolvimentos tecnológicos do mundo) estarão familiarizados com o termo Uncanny Valley. A expressão é usada especialmente por aqueles que trabalham na área da robótica ou da animação digital que (nas respectivas áreas) tentam reproduzir a figura humana de forma rigorosa e que ficam aquém do pretendido. O vale refere-se à depressão num gráfico que conglomera a informação sobre a parecença da criação com o Homem versus a familiaridade que o observador tem com a criação. O que se percebe é que alguma humanização dos robots ou das animações torna-as agradáveis (pensemos em Wall-e) mas que quando essa humanização se torna (estranhamente – uncanny) realista o resultado é a repulsa (pense-se no assustador bebé em Toy Story). Faço este intróito porque me parece que a primeira longa metragem de Basil da Cunha, que agora se estreia, é estranhamente atraente como um robot que não sendo ainda humano já engana muito bem.
A palavra uncanny (que se traduz, por falta de melhor alternativa por estranho) é por si a tradução do alemão Das Unheimliche que corresponde ao antónimo de familiar. Das Unheimliche corresponde àquilo que sendo estranho é de certa forma também vagamente reconhecível e que por isso mesmo leva a uma sensação de desconforto – embora a origem seja anterior e foi Freud quem desenvolveu o termo. Até Ver a Luz (2013) é o correspondente cinéfilo disso mesmo, já que a sensação de estranheza familiar prende-se com as referências que abundam no filme e da forma como parece ser inovador ao mesmo tempo.
Se tivéssemos que fixar um género para o filme seria o filme de gangsters, à cabeça o Mean Streets (Cavaleiros do Asfalto, 1973) – nessa altura em que o cinema de Scorsese ainda se movia a raiva e testosterona. Mas por outro lado temos como personagem principal o bairro da Reboleira entrando por isso no território do cinema de favela como Meireles ou Padilha fizeram. A juntar a isto temos um trabalho de iluminação e ‘onirismo poético’ a fazer lembrar outro bairro – as Fontainhas – e outro realizador – Pedro Costa. E também se tem falado de Takeshi Kitano e da violência latente (mas quase nunca concretizada) ou uma atmosfera semelhante aos filmes de Aki Kaurismäki (especialmente no tratamento da música e onde há cães passa a haver lagartos) – e ainda poderíamos acrescentar Akira Kurosawa cujo Shichinin no samurai (Os Sete Samurais, 1954) passa a certa altura num televisor que só podemos ouvir.
Parece-me portanto natural que o resultado de tão complexo rendilhado de influências se traduza num filme que é difícil de enquadrar – e como é natural no ser humano, é mais fácil repelir instintivamente do que absorver racionalmente (o caldo cinéfilo). Daí que ver Até Ver a Luz seja uma experiência invulgar: uma viagem tortuosa pelas ruas e pelas gentes de um bairro já de si tortuoso. Talvez por isso mesmo. Houve um roubo à pandilha de vigaristas de bairro e enquanto estes tentam descobrir qual é o fuinha, um paz de alma (de nome Sombra) que deve dinheiro ao chefão (Olos) tem que percorrer o bairro e receber dinheiros que lhe são devidos para pagar a Olos o ‘empréstimo’. Tudo se passa de noite (daí a sombra) e nem de propósito o animal que acompanha Sombra é um lagarto que vive do sol: é aqui que se traça o principal conflito, a necessidade de ver a luz e o gosto de viver na sombra. De certa forma a parábola descreve o próprio bairro que querendo abrir-se aos de fora não está disposto a largar as maravilhas do isolamento.
Basil da Cunha é amigo ou vizinho daqueles que protagonizam o filme, o argumento foi escrito com eles e as personagens estão algures entre os próprios actores amadores e o desejo de cinema do realizador, originando assim um retrato de um bairro que está entre a documental polaroid e a sublimação de um El Greco. Mas se o espectador é visita (de circunstância) o realizador e a equipa de três não são convidados – fazem parte do local – distinguindo-se portanto de outras tentativas (mais ou menos lamechas, mais ou menos abjectas) de entrar nos bairros problemáticos e fazer o dito cinema social – com um olhar cheio de preconceitos, para não dizer simples maldade. “A regra nas minhas rodagens é que a relação de forças entre o cinema e a vida do bairro dê a vantagem à segunda” mas se há de facto vida em cada personagem, todas se banham em cinema – numa praia, ao amanhecer.