A espera não nos dá melhor remédio do que… esperar. É isso que, ao longo do mês de Agosto, vamos requerer ao leitor-patrão: uma pausa para o recarregamento de baterias, a elevação da moral e para nos deixarmos inebriar pela mobilidade ou imobilidade indolente do Verão. Isto quer dizer que, em Agosto, o À pala de Walsh suspende uma boa parte da sua actividade. Estaremos reduzidos aos serviços mínimos, mas prometemos resistir a esse terrível vício pelo fare niente e regressar, com toda a força, em Setembro. Até lá, oferecemos a quem nos aguarde esta sopa acabada de confeccionar, que – bem a propósito! – tem como principais ingredientes a espera e a pausa.
“You’re a hell of an intermission!”, disse John Ford a James Stewart no documentário The American West of John Ford (1971), a propósito da extraordinária e divertidíssima cena de Stewart em Cheyenne Autumn (O Grande Combate, 1964). Lá, pode-se supor que Wyatt Earp (Stewart) e Doc Holliday (Arthur Kennedy) passam os dias a jogar cartas, fumar charutos e beber cervejas. Têm tempo para tudo, eles, mesmo quando o bar se desfaz em confusão e reboliço; para desconversar, para dizer piadas, para pesar baralhos e contar cartas várias vezes, não vá a conta estar errada. Sabem-se divertir, como Ford também o sabia. Se calhar por muitas vezes decidirem estirar as pernas como deve ser. Isto há-que contrariar as velocidades à nossa volta, que senão lá se vai a sanidade. De pernas estiradas à espera de charutos e cerveja ou de charutos e cerveja na mão, não se pode ter medo de criar uma velocidade só nossa enquanto o mundo sua e corre e se esfola. Mas isto anda tudo cheio de pressa porquê? Eis o que Ford nos mostrou e ilustrou muitas vezes e até tornou plano de assinatura.
João Palhares
Em boa verdade, em Rio Bravo (1959) passa-se muito tempo à espera, não é só na cena a que este plano pertence. Durante a maior parte do filme, os heróis estão aquartelados na prisão sempre na iminência do ataque dos vilões, em suspenso, em tensão, portanto, apesar de estarem à espera que alguma coisa aconteça (e demora, e demora, e essa demora é o maior prazer), não estão propriamente descansados. Para mais, cada um tem um demónio a combater: John T. Chance, a possibilidade de se permitir amar alguém (depois de uma última experiência mal sucedida); Dude, os anos em que se embruteceu na bebida; Colorado, a culpa do patrão morto; Stumpy, a dúvida se ainda será necessário. A única ocasião em que estão completamente relaxados é este: Dean Martin, quase deitado, e Ricky Nelson (ambos cantores na “vida real”) juntam-se numa cantiga, “My Rifle, My Pony, and Me” (logo depois, Nelson cantará “Cindy”, mais ou menos a solo), acompanhados por Walter Brennan na gaita e o olhar enternecido de John Wayne, de café na mão. É o momento mais feliz deste filme deliciosamente preguiçoso.
João Lameira
Blake Edwards não quis fazer de The Great Race (A Grande Corrida à Volta do Mundo, 1967) apenas uma homenagem aos filmes mudos que terá visto em pequeno e que muito o terão feito rir – à cabeça os por cá Bucha e Estica e por lá Laurel and Hardy-, o que Edwards tentou (e convenhamos, ficou muito aquém – mas pelos melhores motivos) foi fazer um filme como essas two reels do par cómico, só que com som e a cores (estridentes) e em larguíssimo ecrã naquilo que fora a comédia mais cara em Hollywood até então – e que perseguiria depois em A Fine Mess. Como Serge Daney escreveu sobre o filme, o problema prende-se com o facto de o corpo dos actores não conseguir transmitir o cartoonesco que Edwards procurava e de facto cada cena é mais uma anedota em formato de gag visual cuja linha condutora é do mais ténue que há. E, portanto, se Edwards escorrega, fá-lo apenas por desejar tão ardentemente repetir hoje o que só fazia sentido noutro tempo. Nessa fúria copista, o filme chega a incluir um entr’acte em que o decorrer natural da história se interrompe num intervalo fictício: as luzes da sala continuarão apagadas e o espectador esperará que o intervalo termine, olhando (e exasperando) para o ecrã. Mas não é isto mesmo o cerne do cinema de Blake? um gozo imenso em ver como os personagens (e aqui nós somos os personagens) reagem às circunstâncias em que calham (?) meter-se, tudo com um suave riso maléfico que Blackie nunca conseguiu evitar.
Ricardo Vieira Lisboa
“(…) o homem que se entedia acaba por se encontrar numa «vizinhança extrema» – mesmo se aparente – ao aturdimento animal. Ambos estão, no seu gesto mais próprio, abertos a um fechamento, completamente entregues a algo que obstinadamente se recusa.” A citação é tirada do livro O Aberto: O Homem e o Animal de Giorgio Agamben e assenta que nem uma luva no que se abre ao espectador de The Connection (1962), moderníssimo falso documentário da autoria de Shirley Clarke: entre as quatro paredes de um apartamento decadente, um grupo de junkies “mata o tempo” enquanto espera e desespera pela tão apetecida dose. A espera, esse “abandono no vazio”, vai levar a que uns toquem jazz, outros deambulem no espaço, sem saberem para onde se virar. Contudo, pouco ou nada muda depois de satisfeita a vontade: um dos junkies distrai-se com palavras intoxicadas sobre o dealer de nome Cowboy, depois a câmara desvia-se do seu rosto para se fixar, fascinada, num insecto que por ali passa, trepando a parede em direcção a parte nenhuma, isto é, sempre em direcção ao aberto. Shirley Clarke é clara: o devir-animal do drogado é, na realidade, um devir-insecto vicioso e viciante.
Luís Mendonça