No anterior texto da cobertura do Queer Lisboa 17 já me entristecia que o Verão tivesse acabado de partir, mas confortava-me o calor que ele se tinha esquecido de levar. Hoje acordo com uma chuva miúda e uma cúpula de nuvens cinzentas que assusta qualquer um. O Verão foi para não mais voltar. Se o filme de Joaquim Pinto era quente de fogo e opiáceos artificiais, temos agora o gélido olhar de Tomasz Wasilewski, naquele é – até ao momento – o melhor filme na competição de longas-metragens de ficção, Plynace wiezowce (Floating Skyscrapers, 2013).
All the way
Há um aspecto que nada tem que ver com Plynace wiezowce, mas sim com a programação do festival, que é particularmente divertido. Não é incomum rejeitar-se um filme da selecção de um festival por haver já outro (melhor) que aborde um mesmo tema, ou o faça de forma semelhante. Estou em crer no entanto que isso retira à programação aquilo que mais graça tem, encontrar conversas entre os filmes, inventar diálogos entre cada sessão. Pois bem, Plynace wiezowce fala directamente com Freier Fall (Free Fall, 2013) – que abordei por aqui no texto de há dois dias. Isto porque os filmes contam virtualmente a mesma história e, mais que isso, recorrem por vezes às mesmas soluções visuais para avançar (ou interromper) a “narrativa”. Logo a começar, o filme coloca-nos no encalce de um homem que corre pelo bosque, sozinho. Esta era a solução do filme de Stephan Lacant, onde as corridas pelo bosque formavam o primeiro passo de uma conquista amorosa. Mas se este é apenas um dos primeiros planos, as repetições estão apenas no princípio: temos de novo o ambiente de balneário (no primeiro era uma academia de polícia, aqui uma piscina com nadadores de competição), de novo os charros como batente de porta e o beijo enevoado como primeira aproximação, repete-se também a relação heterossexual (neste é uma namorada, no outro a esposa) e a forma como o protagonista evita mentir-lhes – a sequência do telemóvel que interrompe um momento romântico é idêntica -, para não falar da revelação aos progenitores (sempre a figura da mãe) e sempre a mesma reacção. Quando disse que os filmes eram virtualmente idênticos, disse-o pensando na definição “que existe potencialmente e não em acção”, ou seja, apesar de os filmes se sobreporem de forma estranhamente coincidente, é certo que Tomasz Wasilewski leva sempre ao limite cada uma dessas ideias, ao contrário de Lacant que se deixar ficar pela simples enunciação das mesmas.
A este respeito há um momento que é particularmente revelador. Dizia no capítulo anterior que em Freier Fall “tudo prossegue como esperado com uma foda à chuva e uma montagem musical de meninos a rirem-se muito todos nuzinhos e muitos suspiros” e era de facto o caso que o filme se limitava a rever os clichés do drama televisivo sob um filtro queer. Agora neste Plynace wiezowce temos uma, em tudo semelhante, sequência de sexo sôfrego (no outro era conta um carro, aqui contra um muro) entre os dois homens que se desejam há muito mas que só agora concretizam esse desejo. Mas Wasilewski filma esta foda do início ao fim, desde o primeiro beijo ao orgasmo, sem cortes e de forma suja e atabalhoada – como é sempre o sexo. Nada de romantismos plásticos de banda-sonora e chuvinha de mangueira, nada. Se é uma cena de sexo, que o seja de facto – e não apenas um plano decorativo -, all the way.
Mas além de todos estes considerandos, Plynace wiezowce é um filme que revela um controlo de câmara estranhamente forte para um realizador que está apenas na sua segunda obra. Há qualquer coisa de Steve McQueen no olhar de Wasilewski, um mesmo rigor de movimentos, um mesmo olhar frio e distante – e o mesmo desejo de incomodar o espectador. Mas onde McQueen parece saber tudo sobre os seus personagens (e os seus filmes são quase maléficos, no sentido em que o realizador sabe onde tudo vai parar e mesmo assim demora-se a lá chegar), aqui há a consciência de que o protagonista é um desconhecido, para a câmara e para nós também que o olhamos através dela. Isto manifesta-se em recorrentes enquadramentos onde a personagem de Kuda parece querer fugir das quatro linhas delimitadoras do ecrã – e que destoam com um gosto kubrickiano pela simetria. Há dois planos que se revelam particularmente belos: um carro passeia-se por um estacionamento de vários pisos, a câmara apenas mostra a imagem que o condutor vê – sem que nós o vejamos – e como tal não sabemos o que se passa dentro do carro. No primeiro plano o carro sobe até ao piso superior, sempre ao som de uma batida electrónica, no outro plano, tudo igual, só que agora o automóvel dirige-se ao piso mais fundo. Serve isto como elipse para as noites do casal – deixando pois aberto ao espectador imaginar o que terá acontecido – e serve também pelo poder simbólico: tudo o que sobe tem que descer – e é certo que o filme acaba bem no fundo.
As vacas e o camp
Mas como não me posso prender (e perder) num só filme, passemos os olhos por Noche (2013), a primeira obra de Leonardo Brzezicki e filme de abertura da secção Queer Art. A primeira questão que me coloco é porque razão é este um filme queer, apenas porque tem um protagonista homossexual (ainda que seja ausente, em corpo, grande parte do filme) ou porque termina com uma sequência de sexo violento no meio dos bosques entre esse mesmo protagonista e o seu namorado? Como escrevia no outro dia, o “olhar queer” parecia-me dominante sobre as escolhas da programação, mas agora reconsidero em parte essa afirmação – é no entanto um facto que foi também na secção Art que o ano passado encontrei os filmes mais interessantes do festival. A Brzezicki pouco lhe importa a orientação dos seus personagens, importa-lhe sim o seguir as pisadas de um Lisandro Alonso ou de uma Lucrecia Martel – a certa altura sentimos que estamos em La ciénaga (O Pântano, 2001), se esse filme se passasse de noite -, o problema está em que o peso dramático de Noche e a sua obsessão por corpos (e por vacas…) se torna quase paródica daquilo que vem sendo o cinema de autor argentino. Claro que há um trabalho sobre as ferramentas do cinema, nomeadamente o trabalho do som (o filme é sobre um conjunto de amigos que depois da morte de um deles se reúne para ouvir as gravações do falecido) e da montagem (uns fades tão lentos que não sabemos onde acaba um plano e começa o seguinte) que são muito dignos – e alcançam algo curioso, o tempo e o espaço parecem moldar-se através desses mecanismos, fazendo aparecer o morto no presente, ou fazendo saltar para o passado os enlutados. Mas como não o poderia dizer melhor, auxilio-me das palavras do meu colega Luís Mendonça sobre o mesmo filme: “Eis uma primeira obra que é mais um sintoma gasto do cinema contemporâneo do que uma (pretendida) actualização desta metafísica do e pelo primitivo”.
Para terminar com um docinho deixo-vos deliciarem-se com um pequeno montículo de fezes caninas pela mão de Divine – Jeffrey Schwarz, um querido do festival, surge mais uma vez com um documentário sobre uma figura basilar da divulgação popular das representações gay, a actriz e cantora Divine, no documentário I Am Divine (2013) [repete sábado, dia 28, às 17h00]. Para os menos atentos à cultura popular dos anos 80 ou para o underground americano dos anos 60 e 70, a primeira frase deste parágrafo talvez surpreenda. Mas para a grande maioria das pessoas Divine tornou-se um nome reconhecível através de Pink Flamingos (1972), o filme onde John Waters – no seu pervertido gosto pelo escabroso e pelo camp – fez com que Divine comesse a merda acabada de expelir do rabinho de um cão de apartamento. Ao realizador Schwarz interessa-lhe fazer essa coisa, tantas vezes feita e refeita, que é encontrar a pessoa por de trás da persona, neste caso o homem (Harris Glenn Milstead) por de trás do corpo roliço da mulher que o levou às bocas dos mundo (normalmente em jacto). Divine marcou – e a responsabilidade é de Waters -, senão o início, pelo menos a popularização do camp como movimento cinéfilo, que se propagaria a tantos outros filmes [vide The Rocky Horror Picture Show (Festival Rocky de Terror, 1975) como o exemplo maior] nas consequências mais desrespeitadoras do memória do cinema. O fenómeno do “tão mão que é bom” é das piores coisas que aconteceram à cinefilia, mas Divine, embora uma peça fundamental disso mesmo, sempre se mostrou alheia a tais coisas. Esse é o grande trunfo do filme, a figura de Glenn, um homem que apenas queria ter dinheiro suficiente para poder esbanjar em coisas e em comida – e convenhamos, a redefinir aquilo que um drag é suposto ser. O problema do filme é elevar a figura de Divine – através do chatíssimo formato das cabeças falantes – a musa pop, desconsiderando (e por vezes mesmo idolatrando) o asco que alguns dos seus filmes exibem.