Mais uma muito boa descoberta na antena do canal TCM, Our Mother’s House (Todas as Noites às Nove, 1967) é uma arrepiante revisitação da infância trazida pela mão de Jack Clayton, realizador que ficou famoso graças a uma obra-prima de horror cujo título ressoa neste filme como um sussurro vindo do além. Duro, tocante e mortificador, Clayton prova aqui que não é cineasta de um filme só.
Os jornalistas e aquela sua mania de se defenderem de tudo e de todos com a expressão: “por favor, não queiram matar o mensageiro!”. Pois, mas as pessoas atentas já sabem, por esta altura, que o mensageiro é a mensagem. Em Our Mother’s House, a verdade e a inocência, a morte e o espiritismo mediúnico rasam essa ideia com dureza e muita inquietude. E, contudo, neste filme de Jack Clayton, o célebre realizador da obra-prima de terror The Innocents (Os Inocentes, 1961), é contada a história de um grupo de sete crianças que enfrenta a morte da mãe, vencida por uma doença prolongada, fingindo que nada aconteceu, para si e para os outros, lá fora… fora da casa. “A mãe está a dormir”, “a mãe partiu para um sanatório no campo, para respirar ar puro”, “a mãe isto e aquilo”, todas as crianças mentem a qualquer estranho que bata à porta, mas também mentem a si próprias. De qualquer modo, ninguém sabe, como no filme de Hirokazu Koreeda, o que de facto se passa naquela casa.
A inocência de toda esta encenação é justificada pelo receio legítimo de que esta família de pequenas meninas e pequenos meninos, habituados desde cedo a desenvencilharem-se sozinhos por causa da doença da mãe, vá parar a um orfanato e tenha que se separar para sempre. A encenação macabra, que passa pelo enterro do cadáver no jardim e a organização de sessões diárias de contacto além-morte, é o mecanismo moral que encontram para se auto-desculparem pela fachada de mentiras que erigiram de um dia para o outro. Garantir a existência, mesmo que “paranormal”, da sua querida mãe evitará, pensam as suas lógicas cabeças infantis, que a profanação e o pecado lhes sejam cobrados por uma indesejada visita que lhes bata à porta. Quem canaliza o espírito da mãe será Diana (Pamela Franklin), a segunda líder do grupo logo a seguir à resoluta e mais adulta Elsa (maravilhosa interpretação de Margaret Brooks). Rodeada por coisas da falecida e sentada na sua cadeira de baloiço, Diana perde a inocência, oferece-se à possessão e, como uma “mestre louca”, chama a si o papel de medium.
Jack Clayton aplica a sua magistral capacidade para compor atmosferas de horror e mortificação em cada uma destas sequências, fazendo incidir sobre o rosto de Diana um jogo de luzes contrastantes, que fazem com que este, entre a luz e a escuridão, se metamorfoseie em algo terrivelmente familiar: a mãe, em intermitências “de carne e espírito”, manifesta-se na filha para ditar sentenças, administrar castigos muitas vezes cruéis e corrigir eventuais erros na “política da casa”. O uso do complemento no título, “a casa da mãe”, não é impensado, na medida em que a casa nunca deixa de ser dela, mesmo que in absentia. E a mentira canaliza uma verdade inocente: a mãe não pode desaparecer porque, caso contrário, teremos de mentir ou ir parar a um orfanato. As crianças não mentem verdadeiramente até pelo menos ao momento em que Diana assume que, numa das decisões que os seus lábios “mediaram”, não estava, de facto, a “canalizar” o espírito da mãe. A vontade e caprichos da criança começam aqui a inserir ruído, entropia, no sistema da casa.
É a partir da entrada em cena do pai desaparecido (um papel à imagem das melhores personagens, sempre cínicas e sedutoras, de Dirk Bogarde) que se começa a pressentir a definitiva “saída de cena” da ainda proprietária da casa. “Os menores não podem possuir coisas”, alerta o homem charlatão de quem a mãe desconfiava e o qual não se inibira de desacreditar junto da primogénita, Elsa. Esta não acredita numa única palavra do suposto pai e a presença ausente deste – porque não se torna presente quem simplesmente regressa passados tantos anos… – começa a revelar-se mais desconfortável que a ausência sempre presente da mãe – já que dificilmente desaparece quem esteve lá, junto das filhas, durante tanto tempo.
Não, o jornalista/comunicador avisado tem de perceber de uma vez por todas: o mensageiro é a mensagem e esta terá ele de carregar até à tumba. Diana, a medium de serviço, não poderia dissociar-se assim tão facilmente do espírito da mãe; ela, na realidade, estabelece com o pai retornado uma relação secretamente promíscua, de filha-esposa-mãe, que, nessa indecidibilidade de posse ou de possessão – as crianças não podem possuir nada, mas uma dúvida: nem mesmo quando possuídas por um adulto? -, acaba mais cedo ou mais tarde por produzir uma nova morte: afinal, possessão de quê, de quem, por quê, por quem? Resultado: que se mate a esposa, isto é, que se mate o escroque do pai (= a figura que desperta na filha o papel da esposa defunta). A filha que dera vida à mensagem de uma morta, uma mensagem de morte, responde ao choque de uma infâmia – o pai grita que a mãe era uma puta, mas não se sabe se mente… – com uma raiva que não é sua, que não possui na medida em que é a raiva (da mãe) que baixa, em legítima defesa, sobre a filha. Aqui, na casa da mãe, a culpa é mediúnica: não queiram matar o mensageiro, pois ele, criança sem infância, já entre os mortos está.