Reza a lenda que no escritório de Billy Wilder existia uma placa com a frase: “Como faria Lubitsch?” Scorsese conta uma velha anedota de Hollywood, segundo a qual Lubitsch conseguia fazer mais com uma porta fechada do que qualquer outro realizador com uma braguilha aberta. Estes são dois exemplos da influência de Lubitsch e da consideração que os seus pares tinham por si. A capacidade do realizador nascido em Berlim de transformar um argumento e um par de actores num filme repleto de sofisticação e inteligência, de acrescentar elegância e perspicácia a qualquer cenário – o famoso toque de Lubitsch – é evidente na forma como este se torna parte activa do filme, como que uma personagem própria dentro do filme.
O material em Angel (O Anjo, 1937) – uma adaptação de uma peça de teatro – não é excepcional, o que permite maior espaço a Lubitsch para deixar a sua marca autoral, para se intrometer na história. Angel é a história de um afastamento gradual, de uma longa despedida entre um casal cuja relação está em declínio, que é também uma despedida a um certo modo de vida – a prosperidade de uma classe alta inglesa no momento anterior à segunda guerra mundial, a nobreza de uma sociedade que seria abalada pelo conflito. No centro está um casal cada vez mais distante, em que o marido, um diplomata sempre em viagem, está acomodado ao estado da sua relação. Mas a sua mulher, Maria, interpretada por Marlene Dietrich, está cansada da falta de tempo do marido, das aparições em público do casal, onde é obrigada a manter a imagem do casal perfeito, mas, acima de tudo, descontente por ver o marido agir como se tudo estivesse bem.
Logo no início do filme. Maria viaja em segredo para Paris e conhece, através de um mal-entendido, alguém que se apaixona imediatamente por si, uma corte que Maria permite, pelo menos momentaneamente, para voltar a sentir-se desejada. Mas regressa a casa, e regressa ao velho quotidiano, que é agitado pelo aparecimento do estranho de Paris, por sinal um velho conhecido do seu marido. É a partir daqui, dos avanços e recuos de Maria em relação ao seu marido, que parece por vezes decidido a recuperar o seu amor, e em direcção ao estranho, que parece oferecer uma nova vida e o mistério de um novo amor, que Lubitsch encena uma dança a três, onde sobressai mais o coreógrafo que os seus bailarinos.
Lubitsch constrói a linguagem do filme com recurso a elementos clássicos que se repetem, como a alternância entre o plano e contra-campo, e dos diálogos filmados por cima do ombro. Estabelece assim um modo de ler o filme de forma consistente, que sustenta a atenção do espectador, para depois dirigir esse olhar para pormenores que avançam a narrativa. Um exemplo é quando a câmara, em vez de seguir uma personagem, se detém na imagem de um telefone pousado, para mostrar o momento em que este capta algo que a pessoa do outro lado não era suposto ouvir. Esta base construída permite uma economia de planos, para Lubitsch não ter que mostrar mais do que o necessário, e assim depender do espectador. Ao acreditar na sua capacidade de interpretação, cria uma relação recíproca entre o realizador e a sua audiência: Lubitsch confia no espectador e este confia em Lubitsch.
É, no entanto, quando Lubitsch altera o ponto de vista dentro do filme, que melhor deixa a sua marca como agente interventivo. Duas sequências ilustram esta forma singular de orientação do foco do filme. Numa primeira sequência, no fim do primeiro encontro em Paris entre Maria e o seu admirador, este compra-lhe uma flor e a partir daí vemos apenas a senhora que vendeu a flor e o que esta vê: o banco de jardim vazio, a flor esquecida no chão. Noutra sequência, num almoço entre o casal e o admirador de Maria, a provável tensão da cena é desarmada por Lubitsch, ao filmar apenas a cozinha e ao mostrar as reacções dos empregados que servem a refeição e os seus comentários sobre o que vai acontecendo.
Apesar de um certo melodrama excessivo que disfarça uma ideia central escassa e incursões paralelas à história que apenas distraem, a tensão entre os personagens do triângulo amoroso mantém a atenção, e a incerteza joga-se até ao fim. Outras obras de Lubitsch ilustram melhor o humanismo presente nos seus filmes e a sua capacidade de encantar: Trouble in Paradise (Ladrão de Alcova, 1932), o melhor ponto de partida para conhecer a sua obra, sobre um invulgar casal de ladrões e as personagens que fabricam para ludibriar as suas vítimas; The Shop Around the Corner (A Loja da Esquina, 1940), onde o mundo é reduzido à escala de uma pequena loja como espelho da realidade, e o que lá acontece parece assumir importância maior; To Be or Not to Be (Ser ou Não Ser, 1942), onde, durante a ocupação nazi da Polónia, uma trupe de actores vê-se obrigada a substituir-se à resistência, recorrendo ao seu engenho e talento para sobreviver. Angel pode não ser a obra-prima de Lubitsch ou um filme perfeito, mas permite ver o tal toque que celebrizou o realizador. É fácil deixar-se levar por Lubitsch, e vale a pena para ver o que ele consegue fazer com uma porta fechada.
Angel será exibido dia 17 de Setembro, pelas 22h, no Teatro do Campo Alegre no Porto, no âmbito das Terças-feiras Clássicas