Para quem goste de perder tempo a ouvir os políticos e os seus discursos diários (ou os briefings que é para ser mais moderno) estará certamente habituado a ouvir as mesmas expressões, vezes e vezes sem conta. Uma insistência nas mesmas construções frásicas – como se aquelas palavras tivessem sido criadas em laboratório para obter um efeito único e a sua simples reprodução ordenada seria capaz de provocar no receptor descuidado um tal êxtase que o mais certo é que as fileiras do próximo congresso se adicionem na ordem das centenas – que para o ouvido instruído soam tanto a falso como vagamente nauseante. Uma dessas expressões (que vem atrelada de todo um conteúdo ideológico independente de cores e lados) é o “ascensor social” ou “elevador social” se quisermos ser mais populares ainda. Sobre isto, e outras coisas que tal, trata o novo filme de Woddy Allen, Blue Jasmine (2013) – de elevadores e ascensores, não tanto de políticos e suas conversas fiadas.
O conceito de elevador social remete para esta ideia (muito americana, não fosse esse o país das oportunidades) de que independentemente de nossas origens (país e pais – se somos pobres ou nem tanto) ou dos nossos genes (raça, cor, aspecto, orientação sexual) é sempre possível, com muito trabalhinho e muita aplicação, alcançar os melhores resultados, satisfazer os nossos sonhos e sermos felizes com tudo o que sempre desejámos, basta querer com muita força! Ou seja, apenas movidos pela vontade podemos subir das profundezas da obscuridade social para as mais altas esferas da sociedade. Implícito a tudo isto está a ideia de que o elevador está aberto a todos e é capaz de transportar qualquer um, e mais importante que isso, que como qualquer elevador o trajecto é rápido e sem qualquer esforço – basta carregar num pequeno botão e pronto, estamos encaminhados, basta querer com muita força!
Blue Jasmine é sobre uma mulher que subiu esse elevador, que se encontra lá no topo, lá no alto. Sem esforço (bastou querer com muita força casar com o homem certo – Alec Baldwin a fazer a única personagem que sabe fazer, e como sempre a fazê-la muito bem) passou de um início moderado (adoptada em simultâneo com a sua irmã por uma família remediada) para uma vida de fausto; essa mulher é Jasmine (Cate Blanchett) que se apaixonou pelo homem (e pelos cifrões, a acontecer, do homem) ao som de Blue Moon. Sendo um perigoso investidor de fundos tóxicos, Baldwin é preso e as finanças (lá e cá, sempre o IRS – malvado) levam-lhe tudo, a ele e à cônjuge que nada sabia (?). O elevador desce abruptamente e a dondoca da Park Avenue muda-se para o Brooklyn (có horror!) e daí para São Francisco (cruzes credo!). A lady preserva as suas vestimentas de autor e a joalharia que não teve que pôr no prego e começa a trabalhar, coisa que nunca tinha feito antes (diz-nos que era uma vergonha, um martírio) e com tanto choque a loucura cedo se juntou ao cocktail de valiums e Stoli martinis with a twist of lemon. Allen faz aqui aquilo que lhe é próprio, escrever um texto que lido parece uma telenovela lamechas da TVI e filmado é tão hilariante quanto incomodativo. Parece que só consegue encontrar graça na desgraça, não fosse ele o mais encantador do hipocondríacos.
O interessante em tudo isto, além de um domínio da métricas dos planos que surge de forma tão suave que parece natural que assim se montem grandes planos e planos gerais, é o facto de Jasmine perder tudo e, apesar de tudo, estar disposta a subir de novo o elevador, disposta de novo a ter muita vontade. Claro que ela apenas quer ter vontade, não quer trabalhar no dentista, nem na loja de calçado, quer apenas ter vontade de casar com o homem certo (outra vez) e é isso que faz, arranja de imediato um pretendente e prepara-se para mais uma subida íngreme no ascensor. Enquanto que a irmã que trabalha que nem uma cadela (Sally Hawkins – Ginger) no supermercado, com dois filhos pequenos, com uma casa mixuruca e com azar ao amor, essa nunca consegue passar do rés-do-chão. Allen não confia muito neste aparelhos de subida (e descida, claro está) e o filme parece ser sobre esta injustiça latente, onde quem muito trabalha não sobe e quem pouco faz, mas sabe com quem o fazer, chega rapidamente ao topo.
A acrescentar ao “elevador social” há outra ideia (de novo muito americana) de que pouco importa o que fizeste que nunca é tarde para começar de novo (ladrão ou assassino? sê bem-vindo). E o que trai a personagem de Jasmine de conseguir a proeza do casamento é a sua incapacidade de deixar o passado para trás. Todos os outros personagens conseguem esquecer, Ginger perdoa o dinheiro que a irmã lhe sugou, o filho de Jasmine esquece a vida que teve e recria-se, enquanto que ela é incapaz de deixar de viver num mundo ao qual já não pertence. Allen expressa isso de um forma profundamente singela, monta as cenas da vida de luxo e da vida actual de Jasmine como se se tratassem de acontecimentos simultâneos. O passado e o presente em montagem paralela. Simplesmente através da montagem Allen prende uma personagem ao seu momento de glória e como tal impede-a de o repetir. Terra de oportunidades para todos… os que conseguem esquecer.
Como em muitos dos filmes de Allen, as personagens são mais que muitas, e cada qual interpretada por actores que esgotam o ecrã (Louis C.K. é um deles). Allen quase nunca junta mais que dois actores no mesmo plano (ele sabe que o resultado de um plano mais preenchido é semelhante ao de um acelerador de partículas) e ao contrário de outros filmes, onde essa dispersão pelos vários personagens cria uma ideia de acto coral de uma cidade ou de uma época, aqui a figura de Blanchett é um vórtice que impede que as peças se soltem. Ela é o filme e o filme é dela, todos os outros são pequenos papeis secundários que apenas acrescentam a Blanchett – e talvez por isso mesmo, este seja um dos melhores Allens dos últimos anos.