Em resultado da nossa acção de ir até às instalações do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM) para falarmos sobre o que há em boa quantidade (por exemplo, vontade e know how) mas, acima de tudo, sobre o que está em falta (à cabeça, nova tecnologia), produzimos esta peça para que o cidadão, que se preocupa com os destinos do cinema em Portugal, se aperceba dos efeitos nefastos que uma derrota na “corrida ao digital” poderá significar para o nosso arquivo do cinema. Procurar captar essa ausência real, esse desaparecimento iminente e a desmaterialização com que o futuro se apressa a bater à porta – à espera de resposta urgente… ou vai-se embora – foi também o desafio que a fotógrafa Mariana Castro pôs em prática na sequência de imagens que se segue.
Com o objectivo de obtermos respostas cabais às nossas dúvidas, realizámos duas pequenas mas incisivas entrevistas a Rui Machado, chefe do Departamento do ANIM, e a António Medeiros, coordenador técnico de novos suportes. Através de Rui Machado, procurámos produzir um retrato da dimensão institucional do problema, incidindo sobre as recentes ameaças de fecho da Cinemateca Portuguesa e o que esteve na sua causa, tal como sobre o que resultou da conferência (ou série de conferências) “O Analógico e o Digital”, realizada no mês que os programadores da Cinemateca Portuguesa dedicaram às actividades e situação do arquivo (“Foco no Arquivo”, Janeiro de 2013). Com António Medeiros, descemos às implicações técnicas da afirmação mundial de um novo formato standard de preservação e projecção, que vem definitivamente ocupar o lugar da película: o digital ou… DCP. Não se assuste com o linguajar mais encriptado: tudo será devidamente explicitado ao longo das próximas linhas, fingindo que o leitor é tão leigo na matéria quanto é este entrevistador.
Rui Machado: “O problema é que mudámos completamente de paradigma”
Agora com as notícias sobre a eventual não reabertura da Cinemateca Portuguesa em Setembro, vários foram os comentários nas redes sociais, blogues e órgãos de comunicação social que apontavam o dedo ao facto de a Cinemateca não servir o país, mas apenas os lisboetas. A verdade é que falar da Cinemateca significa também falar do ANIM, um arquivo precioso que é de todos e diz respeito a todos. Como resumiria “o que é o ANIM” e qual a ligação do ANIM com a Cinemateca?
O ANIM é um departamento da Cinemateca. É um serviço, tal como o serviço de programação. É natural que o serviço de programação seja mais conhecido e esteja mais ligado ao nome Cinemateca. O ANIM é um departamento que zela pela salvaguarda de todo o património cinematográfico. Mas é a Cinemateca que zela por esse património. Ou seja, o ANIM é um “braço armado” para fazer essa preservação e salvaguarda do património. Portanto, quando falamos do ANIM, falamos da Cinemateca.
Esse património que é preservado no ANIM abrange cinema português, mas não só. Correcto?
Há dois conceitos distintos. Há o conceito de conservação e aí não distinguimos a natureza dos filmes que entram na Cinemateca. Tentamos ter a colecção o mais preenchida possível, com tudo o que foi produzido em Portugal. Mas também temos uma colecção de filmes internacionais, estrangeiros, para os mostrar através do departamento de programação. Aqui não há grande distinção entre o que fazemos com os filmes portugueses e os filmes internacionais. A conservação passa por guardá-los em cofres climatizados, com baixas temperaturas e baixas humidades relativas e devidamente acondicinonados. E isso fazemos com toda a colecção. Depois entramos no segundo conceito, que é a preservação: não basta só conservar os originais, é necessário e importante fazer uma cadeia de conservação com novos materias fílmicos. Aí o nosso enfoque é o cinema nacional, desde os primórdios do cinema até hoje. Dependendo muito dos recursos que temos para avançarmos com essa política de preservação.
Tenho uma dúvida: todos os filmes que são exibidos em sala contam com uma cópia conservada aqui?
Em Portugal, não temos depósito legal no meio audiovisual. Para todos os filmes que têm apoio do ICA, o nosso irmão que zela pela produção e divulgação do cinema português, entra sempre uma cópia final de cada filme para fins de conservação, sendo que a cópia não é o elemento primordial para a conservação futura dos filmes. Mas essa é a única relação de obrigação com a produção: qualquer filme produzido com o apoio do ICA, tem de entrar uma cópia para, entre aspas, efeitos de “depósito legal”. Obviamente que, através de uma política de prospecção activa, a Cinemateca consegue, com maior ou menor dificuldade, que as matrizes originais de todos os filmes entrem no arquivo, devido às condições de excelência que temos para os conservar. Estou a falar da parte analógica, a partir do digital a coisa começa a divergir. Mas todos os filmes que foram produzidos ao longo dos anos – estou a falar das longas-metragens mas também das curtas-metragens – a maioria deles entrou no ANIM através do regime de depósito voluntário.
Portanto, todos estes filmes que estão no depósito constituem a famosa colecção da Cinemateca, que tem sido agora muito usada para a programação mensal.
Sim, a colecção é dividida entre os filmes nacionais e as cópias de filmes internacionais e aí a preocupação da Cinemateca em preservar é diferente. O objectivo da Cinemateca é que essa cópia passe nas nossas salas, nas melhores condições possíveis, mas não temos a veleidade de pretender preservar – ou seja, fazer novos elementos a partir das cópias dos filmes estrangeiros – uma vez que pensamos que isso é uma obrigação dos arquivos de origem desses filmes.
Fez a distinção entre o espólio em analógico e o espólio em digital. Neste momento, o que diferencia o tratamento de um e outro por parte dos serviços do ANIM?
O ANIM, quando foi concebido em 1996, dotou a Cinemateca de condições de excelência relativamente ao cinema analógico. Nós tínhamos na altura – e ainda continuamos a ter, apesar de já terem passado 17 anos – boas condições para conservar todo o património fílmico em película. Também conseguimos fazer um laboratório, que é hoje um dos poucos laboratórios que trabalham o restauro analógico e que, por isso mesmo, é uma peça valiosíssima dentro da cinemateca, não só para continuar a preservação analógica do cinema português, mas também porque trabalha com as outras cinematecas, uma vez que as outras já não têm laboratório de preservação analógica, sendo esse laboratório também uma fonte de rendimento adicional. Portanto, em relação a tudo o que tem a ver com o analógico, a Cinemateca, desde 1996, está relativamente bem equipada. Quando começou o digital, tudo mudou, porque as condições do digital pressupõem novos equipamentos, novas formações das equipas, que a Cinemateca, nas actuais condições, nunca conseguiu ter. Não é só a questão da mudança do analógico para o digital, é toda a filosofia inerente a esse património, que já não passa por ter cofres climatizados, um laboratório de preservação… Toda a metodologia de preservação do património digital é completamente diferente e aí obviamente as ferramentas têm de ser outras. E neste momento não as temos.
Tem ideia da dimensão do património em digital?
A sorte, entre aspas, é que a produção neste momento é muito diminuta, pelas razões que se conhecem. Os concursos não avançaram… E, portanto, não há muito património digital em risco, porque não foi produzido muito. Agora, tudo o que foi produzido, neste momento está em risco.
Desde sensivelmente que ano recebem filmes em digital?
O cinema digital, tal como o conhecemos, em cópia DCP [vide entrevista abaixo a António Medeiros], surgiu em 2005. Mas aí é ainda muito no início, ou seja, chegou a Portugal muito mais tarde que isso. Podemos dizer que, hoje, a maioria dos filmes já é toda produzida digitalmente, muito poucos são produzidos em película. Em termos de números, devemos ter uns vinte ou trinta DCPs, neste momento, já depositados. Como em regra entra sempre uma cópia do formato final dos filmes apoiados pelo ICA, são por volta de vinte e tal DCPs.
Em Janeiro de 2013, no colóquio “Analógico e Digital” (1.ª Parte), que teve lugar na sala Luís de Pina da Cinemateca Portuguesa, foi transmitida ao público presente a necessidade urgente de, face à revolução digital, a Cinemateca e o ANIM actualizarem o seu equipamento. Pergunto-lhe porque sentiram a Cinemateca e o ANIM a necessidade de fazer passar esta mensagem cá para fora e quais foram os efeitos deste aviso.
Sentimos essa necessidade porque, mesmo dentro da comunidade cinematográfica, acho que há um certo adormecimento ou um certo esvaziamento relativamente ao futuro deste património. Acho que a comunidade cinematográfica se apoia na Cinemateca como um zelador do seu património – e faz todo o sentido que o faça – e está a pensar sempre que a Cinemateca, com maior ou menor dificuldade, vai salvaguardar o património. O problema é que mudámos completamente de paradigma. Como disse há pouco, o que é preciso fazer para o património digital não tem nada a ver com o que é preciso fazer com o analógico. Acho que, automaticamente, as pessoas não pensaram muito nisso. Também é natural: o produtor está sempre a pensar no próximo filme, o filme que fez “já o fez”. Acho que a Cinemateca não se deve calar relativamente às suas dificuldades, até porque isso nos pode criar um problema: “não nos avisaram que estão assim, só agora nos dizem?” Acho que fez sentido naquela altura mostrar como é que estamos em termos de património digital e de ferramentas para trabalhar esse património.
E os efeitos desse alerta?
Até ver, não houve.
Pergunto isto porque na plateia estavam alguns dos mais altos representantes da classe. Sobretudo realizadores, talvez menos produtores.
Não havia muitos. Acho que os produtores e realizadores estão sempre a pensar no filme de hoje e de amanhã. Não têm uma grande perspectiva de “reaproveitamento” – não sei se é a palavra mais exacta… – daquilo que foi feito ontem. E depois, também por causa deste paradigma: eles confiavam cegamente na Cinemateca, que ia zelar pelo seu património em analógico, como zelou durante 70 anos. Acho que é a Cinemateca que deve alertar que ainda não está bem apetrechada para o património digital. Paradoxalmente, depois da entrevista que a Dra. Maria João Seixas fez ao Público, houve aí um levantamento das necessidades e aí houve muita gente que ficou com a sensação que a Cinemateca estava mal. Desde que foi feita a entrevista, há três partidos que agora já têm um modelo de cinemateca. Onde estavam esses partidos antes da entrevista? Não se pode dizer que a Cinemateca não tem divulgado o seu grande problema, que é o seu financiamento. Não só internamente sempre foi comunicado na altura em que se discutia a lei do cinema, como o próprio subdirector [José Manuel Costa] escreveu um texto [para o jornal Público] a dizer isto publicamente! Nada disto é novo, talvez o facto de se dizer que a Cinemateca ia fechar fez um click em toda a gente.
Este é fundamentalmente um problema financeiro, mas também é um problema político?
É um problema de organização. Neste momento, a Cinemateca está num caos institucional. Nós éramos Instituto Público (IP), depois, quando houve a grande restruturação da Administração Pública, passámos a Entidade Pública Empresarial (EPE), dentro de um agrupamento, juntamente com o Teatro de S. Carlos, o Dona Maria, a Companhia Nacional de Bailado, o São João… No meio disto tudo, muda-se de Secretária de Estado da Cultura e este Secretário de Estado [Jorge Barreto Xavier] diz que não, que a Cinemateca volta a ser IP. Mas é “IP até ver”, não é dizer que vamos ser IP definitivamente. Parecendo que não, isto de ser IP ou EPE tem consequências do ponto de vista administrativo, para não falar depois da questão do orçamento. O facto de não haver aqui uma estabilidade orçamental significa que não pode ser feito planeamento.
A tutela tem conhecimento dos problemas?
Julgo que sim. Tem havido um diálogo entre a direcção da Cinemateca e a Secretaria de Estado da Cultura. Não é por falta de informação que estamos a viver estes problemas. Agora, se calhar também há dificuldades em “passar isso” porque é uma Secretaria de Estado. E depois, é uma conjuntura em que o país está muito mal em termos financeiros. Deve ser difícil ganhar algumas batalhas internas, no governo… Já agora, a nível orçamental, muitas vezes as pessoas pensam que a Cinemateca vive directamente do Orçamento Geral do Estado… A Cinemateca vive basicamente de duas grandes fontes de receita. Uma é a receita que vem da famosa taxa do audiovisual, que é a taxa que é cobrada às televisões por uma percentagem da receita da publicidade. 4% da receita da publicidade das televisões vem para o cinema, desses 4% 80% vão para o ICA e 20% para a Cinemateca, o que representa talvez entre 80% e 90% do nosso orçamento. Os outros 10% ou 20% são as receitas que conseguimos fazer através dos nossos serviços: da bilheteira, dos catálogos que vão sendo editados – cada vez menos… – e aqui, os serviços do ANIM, ou seja, cedência de imagens e restauro de filmes. Mas esta percentagem é muito pequena. Quando há uma grande flutuação dessa receita – com a crise, há menos investimento na publicidade – obviamente que a Cinemateca se vai ressentir no plano orçamental. A Cinemateca é uma estrutura fixa, ou seja, nós para conservarmos os filmes temos um conjunto de equipamento que, por exemplo, produzem uma despesa de energia enorme. Em média, estamos a falar de 10 000 euros por mês. Não podemos dizer “agora como temos menos receita, vamos baixar um bocadinho de energia”. Isso é impossível. Há muito pouca margem de manobra. Já ouvi dizer “vocês têm menos receita, têm de gastar menos”, o problema é que, a partir de um certo limite, já não há maneira de fazer cortes, sem pôr em causa o papel da Cinemateca. Foi isso que a directora tentou dizer naquela entrevista.
E a possibilidade de produzirem mais fontes de financiamento próprio?
Podemos. Por exemplo, o nosso laboratório pode produzir mais, não só restauros internos como externos, mas aí temos de ter uma equipa maior. Nós temos tido uma dificuldade enorme em contratar mais duas pessoas para o laboratório, que neste momento tem três pessoas. Potencializando as receitas do laboratório, a entrada de mais um ou dois técnicos era compensada pelo aumento das receitas.
De novo uma questão burocrática, política?
Não lhe sei responder. Acho que tem a ver com aquela questão de “não pode entrar mais ninguém no Estado”. Mas cada caso é um caso. Neste caso, mais duas pessoas podiam dar mais receita à Cinemateca. Devo dizer que, em 2011, ano em que tivemos mais gente no laboratório, conseguimos ter mais de 300 000 euros de receitas, mais de 10% do orçamento de receita da Cinemateca. Chegámos a ter seis a sete pessoas. Hoje só temos três.
Ainda assim, tem tido alguns restauros relevantes.
Tivemos. Há pouco tempo fizemos não o restauro, mas a preservação de Falstaff (As Badaladas da Meia-Noite, 1965) para a Cinemateca Espanhola. Em Bolonha passou uma cópia DCP que se baseou no nosso trabalho. Fizemos o Acto da Primavera (1963), mas aí é trabalho interno, para a Cinemateca, para Portugal. Falei dos trabalhos internos, encomendados e há uma terceira vertente. Estávamos cépticos em abri-la, mas abrimos. Contactámos empresas ou instituições portuguesas para preservamos patrimónios que lhes digam respeito. Por exemplo, a Câmara Municipal de Cascais. Temos aqui um filme sobre Cascais que precisa de ser preservado, batemos à porta deles e dissemos “temos isto aqui, vocês querem patrocinar esta preservação e damos-vos como contrapartida um DVD para utilização…” E conseguimos uma série de Câmaras que fizeram isso. É juntar o útil ao agradável: estamos a preservar património nacional e, ao mesmo tempo, a fazer receita adicional.
Todas estas soluções podem ser exponenciadas?
Acho que sim. Essa foi uma das ilusões que tivemos quando nos disseram que íamos passar de IP a EPE, porque EPE, nesse sentido, tem mais esse princípio de empresa. Se eu garantir que tenho um restauro ou programa de restauro na Cinemateca da Suíça por 100 000 euros, eu posso ir contratar alguém facilmente por 20 000 para me ajudar a fazer isto. A EPE tinha esta filosofia, no IP já é muito mais difícil. Até porque neste momento as aquisições de serviço estão todas muito blindadas. Não podemos fazer uma aquisição de serviços acima dos 5 000, sem que as Finanças digam “sim senhora, vocês podem fazer”. Portanto, é tudo muito desgastante em termos de gestão de todos estes processos.
António Medeiros: “este período parece-me especialmente perigoso”
Muito se fala da transição do analógico para o digital. Podia explicar-me o que isso representa para a exibição e conservação do cinema?
Primeira coisa, é uma transformação tecnológica, com tudo o que isso implica: novos equipamentos, novos procedimentos e transformação dos técnicos. De imediato, o que nós precisamos de fazer é adquirir equipamento que nos permita ler aquilo que nos chega de fora e equipamento que nos permita transformar a nossa colecção película em suportes que nós possamos fazer circular. E já se prevê que, no próprio mundo das cinematecas, aquilo que hoje é a exibição e circulação de cópias em 35mm seja, num curto espaço de tempo, substituído por pacotes DCP.
Podia explicar o que é o DCP?
DCP significa: Digital Cinema Package. É uma designação criada pela DCI (Digital Cinema Initiative), órgão que resulta do agrupamento dos grandes produtores, distribuidores e exibidores mundiais – Sony, Warner, Disney, etc. –, que criou o standard do cinema digital. O DCP é o elemento desta nova cadeia digital que corresponde àquilo que era a cópia em 35mm. O DCP pressupõe o cumprimento de um conjunto de definições técnicas (que são alvo de constantes actualizações) de forma a tornar o “pacote” universal, ou seja, a ideia é estabilizar a obra num formato único, que possa ser exibido sem dificuldades em todas as salas. Refiro-me ao DCP como um pacote (que vem do original – Digital Cinema Package) porque ele é efectivamente constituído por um conjunto de ficheiros (ficheiros de imagem, som, legendas e outros dados adicionais, meta data, etc.).
O DCP é, então, um conjunto de ficheiros que são alojados num disco rígido.
Num disco rígido convencional. De momento é assim que a coisa funciona. O projecto para o futuro é anular o disco. Hoje do disco passamos para o servidor e é a partir do servidor que a informação passa para o projector. O futuro é descarregar o conteúdo directamente no servidor a partir da Internet.
O disco rígido funciona quase como uma pen para o projector digital. Certo?
Sim, é mais ou menos isso. Olha, isto é um trailer.
Também temos já algumas pen’s com DCP’s de curtas-metragens. E, atenção, estamos a falar de conteúdos que estão na origem de projecções a sério… de grande qualidade. Esta transformação ao nível dos suportes de circulação e exibição das obras cinematográficas é uma transformação muito radical, principalmente para os arquivos e não só pelas implicações técnicas. Por exemplo, a nossa colecção de títulos internacionais, que em certa medida decorria de depósitos voluntários dos distribuidores, vai deixar de crescer. Antes os distribuidores de película faziam o seu circuito. Quando chegavam ao fim desse circuito, davam por si com um conjunto de cópias que já não lhes eram imediatamente necessárias e em alguns casos optavam pelo depósito dessas cópias no nosso arquivo. Esses depósitos são hoje uma parte significativa da nossa actual colecção e também uma fonte importante de títulos para a programação das nossas salas. Ora, com o digital, isso acabou. E esta é uma transformação que merece toda a nossa atenção, porque vai causar um muito significativo decréscimo no ritmo de crescimento futuro da nossa colecção, isto porque os novos suportes (digitais) hoje correspondem a discos que vêm geralmente encriptados (é preciso uma chave/código para aceder ao conteúdo) e com outras limitações possíveis, como limitar o período temporal de acesso ao ficheiro, etc. Em resumo, isto significa que a nossa colecção, daqui para a frente, vai crescer pouco e vai crescer essencialmente com aquilo que é a produção nacional. Aquilo que decorria de depósitos que estavam relacionados com uma distribuição de títulos internacionais já não entra no arquivo. Não é interessante para nós. São só discos rígidos.
Mas o acesso ao património português está garantido.
A relação do arquivo com o mais recente património cinematográfico português decorre da relação com o ICA. O ICA de tudo o que financia, uma das coisas que pede em troca é uma cópia. Isso acontecia na película e agora acontece também no digital – são os discos rígidos que vos mostrei. Ainda só tivemos ainda dois ou três depósitos voluntários directos de produtores. Uma mensagem importante a passar tem a ver com aquilo que é a participação dos produtores e realizadores na preservação das suas obras. É bom que se assuma a urgência e as dificuldades actuais. É importante fazer um apelo claro aos produtores e aos realizadores para que, independentemente daquilo que possamos fazer, também eles passem a ter uma acção mais forte na preservação das suas obras. Estamos a falar já de custos que são baixos. No limite, faz-se uma duplicação dos discos rígidos – e estamos a falar de centenas de euros. Isto será para alguns um investimento significativo, mas vale a pena o esforço. E se for possível passem os ficheiros para fita magnética (e aí a melhor relação qualidade-preço é o formato LTO – Linear Tape-Open). A urgência de passar esta mensagem tem a ver com o facto de haver enormes dificuldades orçamentais e de não termos para já o equipamento para intervir. Há aqui um espaço de tempo para intervir que é curto. Este período parece-me especialmente perigoso. Por isso, acho que deve ser feito de todas as partes um esforço para duplicar as obras.
Duplicar do DCP para a fita magnética. Isso é algo que o ANIM, neste momento, não consegue fazer. Os filmes digitais que estão a ser enviados pelo ICA…
Estão a ser guardados com cuidado. Ponto. Não temos possibilidade de fazer mais nada.
É preciso perceber a fragilidade dos discos rígidos.
É preciso gritá-la. É preciso que toda a gente ouça que estamos a falar de suportes muito precários. São tecnologias óptimas que garantem grandes qualidades na primeira linha – na captação de imagem, na pós-produção… são óptimas. Conheço grande parte dos equipamentos. Estou muito contente com as câmaras que têm aparecido, com as projecções digitais. São resultados incríveis e o processo está a ser muito rápido. Agora a primeira linha está muito satisfeita, mas não nos podemos esquecer do trabalho de bastidores, que é histórico, que vai fazer durar a obra cinematográfica.
Qual a longevidade de um disco rígido?
É muito variável: pode durar dois dias como pode durar 10 anos ou mais. Aquilo que se estabilizou como conceito é a “redundância”. Portanto, duplicar imediatamente a informação: se perdes o disco rígido, tens outro igual que deves duplicar de imediato. Preservação no digital é uma coisa activa, assente em duplicações cíclicas de informação.
Isso antes de passar para a fita magnética?
Não, o ideal é sempre passar para fita magnética a partir de ficheiros não comprimidos. O DCP é um pacote com ficheiros de imagem comprimidos. Há um outro formato antes do DCP (e que em regra lhe está na origem) que é o Digital Cinema Distribution Master (DCDM), que é uma versão não comprimida. Idealmente é a partir desse formato que se deveriam fazer os LTO’s. Se não se fizerem a partir daí faz-se a partir do DCP, que corresponde a uma cópia.
Esse formato não compactado tem de ser enviado pelo produtor.
Sim, está nas mãos do produtor. Por exemplo, ao ANIM só chegaram os DCDM’s de dois filmes do Paulo Rocha. O que o ICA está a receber são DCPs que correspondem a versões já comprimidas da informação digital, ou seja, uma diminuição clara de qualidade em relação aos ficheiros de imagem originais.
Aí também devia haver um protocolo com os produtores?
Era importante que neste momento se legislasse com clareza e a legislação tem de ter por base um conhecimento técnico consistente. Porque neste momento a técnica é determinante.
Com o acervo de cinema em digital que têm não conseguem garantir a preservação, mas também não garantem a exibição.
A Cinemateca não tem projector de cinema digital. Aquilo que vocês vêem que são os DCPs, que correspondem às antigas cópias 35mm, a Cinemateca não tem hipótese de ler ou projectar. A mais recente produção portuguesa está fora das nossas salas, se projectamos obras recentes fazemo-lo através de um versão vídeo ou então recorremos a outras salas. Trabalhamos recentemente no projecto do Paulo Rocha para Locarno, que consistia na criação de dois DCP’s e os visionamentos que nós fizemos foram feitos numa sala emprestada. É uma situação que não faz sentido. Uma Cinemateca trabalha sobre o passado, sobre o património, mas não exclusivamente. A sua actividade de programação é a mais diversa possível, filmes deste ano como filmes do passado. Nós neste momento estamos fora da produção mais recente, porque pura e simplesmente não temos maneira de a projectar. Por tudo isso, a nossa necessidade mais imediata é um projector de cinema digital. A nossa segunda necessidade, de um ponto de vista tecnológico, tem a ver com o scanner (equipamento que faz a passagem de película a data). Os argumentos para a necessidade de um scanner são vários. O primeiro – mais evidente para mim – é a necessidade de substituir o nosso aparelho de telecinema.
Nós tínhamos um telecinema que permitia passar de película para vídeo e deixámos de o ter. Avariou e não é passível de reparação. Um scanner faz esse serviço. Para já, o scanner servirá para nós continuarmos a digitalizar o nosso espólio de película, transformá-la em data, para podermos ter a nossa colecção acessível. É um equipamento necessário ao cumprimento da nossa missão. As pessoas têm óbvio direito de vir cá ver os filmes, investigarem sobre as imagens. O segundo argumento para a aquisição do scanner baseia-se nas novas tecnologias de restauro digital. Hoje é muito evidente que o restauro digital traz enormes vantagens – resolve problemas que não conseguíamos resolver nos laboratórios fotoquímicos tradicionais. Todas as Cinematecas já estão a fazer restauro em digital. O processo é simples: nós agarramos num material película (idealmente um negativo porque tem mais resolução), transformamos em data (através do scanner), após isso são feitos os trabalhos em digital, depois produzimos uma versão digital restaurada. Idealmente o fim do processo consiste em fazer uma nova cópia película. Porquê voltar à película? Porque é o formato original da obra e porque é o suporte mais estável que existe. O terceiro argumento para a aquisição do scanner: nós termos um scanner que nos permita passar da película a data estaremos habilitados a fazer aquilo que é a parte mais complexa e cara do processo para produzir cópias de circulação em digital (DCP’s) e se nós ficarmos com capacidade de produzir DCP’s… aí sim, damos um importante passo em frente, porque poderemos fazer circular com muito mais facilidade e com custos muito mais baixos títulos da nossa colecção.
Será quase como que expandir nacionalmente a Cinemateca.
É pelo menos dar apoio a estruturas que já existam. Será muito mais fácil dar apoio aos cineclubes, se bem que isso implique que os cineclubes tenham que fazer investimentos ou estabelecer novas parcerias de forma a poderem projectar os DCP’s.
Sobre a questão financeira: falou de um projector e de um scanner. Sabe quanto custam?
Um projector andará entre os 60 000 e 70 000 euros. Os scanners têm valores muito variáveis que poderão oscilar entre 35 000 e meio milhão. Os valores mais baixos correspondem a antigas copiadoras de película que são adaptadas e os valores mais altos correspondem a máquinas integralmente novas. A Cinemateca sabe onde comprar, onde fazer mais barato. Já temos orçamentos.
Quais os riscos inerentes à possibilidade de este equipamento não ser assegurado a curto ou médio prazo?
Vamos deixando de cumprir a nossa missão, vamos perdendo importância, mesmo internacional. No próprio mundo das cinematecas, vivemos de algumas trocas. E as outras cinematecas estão a passar para o digital. Se não investirmos no projector e no scanner, vamos deixar de ter acesso a muitas obras. Isto já nos acontece… esse é o nosso presente. Recentemente tentámos comprar uma cópia 35 mm de The Searchers (A Desaparecida, 1958) do John Ford… e a resposta foi “já não vendemos”.
Veja aqui a reportagem fotográfica de Mariana Castro na íntegra.