Não obstante o sucesso junto da crítica quando da sua estreia, Deep End (Adolescente Perversa, 1970), filme-olhar de um estrangeiro sobre a Inglaterra dos anos 60 [a par de outros, como Blow-Up (História de Um Fotógrafo, 1966), de Michelangelo Antonioni, ou Repulsion (Repulsa, 1965), de Roman Polanski], caiu, com o tempo, no esquecimento cinéfilo, circunstância que uma reedição em DVD recente (2011) procurou contrariar. Da mão de um dos mais interessantes realizadores polacos, Jerzy Skolimowski, colega de Polanksi [para quem foi co-argumentista em Nóż w wodzie (Faca na Água, 1962)], Deep End é um retrato da Inglaterra sexualmente pós-vitoriana (Foucault discordaria de nós, mas isso fica para outras núpcias) que, não se deixando confinar ao realismo, transpira lirismo e poesia. Não só na narrativa propriamente dita, mas, também, na música, nas cores e, sobretudo, na escolha do espaço físico central do filme: os balneários de uma piscina onde o imberbe Mike (John Moulder-Brown, um Jean-Pierre Léaud do outro lado da Mancha) ganha o seu primeiro emprego como auxiliar de senhoras já de idade que vão “a banhos”, e onde se cruzará com Susan (Jane Asher), uma jovem sexualmente fogosa directamente saída da revolução sexual dos anos 60. Estão lançados os dados para um singular conto moral de obsessão paredes-meias com o filme de género coming of age.
Nesse olhar sobre a Inglaterra dos swinging sixties, há uma sequência que talvez simbolize, derradeiramente, a lente interrogadora e crítica do pintor Skolimowski (e se dizemos pintor não é por acaso, tamanha a importância da cor e das “pinceladas”, literalmente falando, que são dadas no filme, mas já lá iremos). Falamos da sequência – já perto do final do filme – em que Susan procura, desabridamente, com a ajuda de Mike, o anel de noivado que deixou cair num chão coberto de neve (um anel perdido na neve – só a imagem mental é arrebatadora). A ansiedade e o desespero de Susan em encontrar o anel chocam, com estrondo, nos ares dos tempos que Susan, de modo especialmente flagrante, encarna e se orgulha de transmitir aos homens (e são vários) com quem se relaciona: a libertação sexual, o amor livre, a libertinagem, enfim, o “why not?” elevado a novo santo-e-senha das relações sexuais. Expressivo deste (exacerbado) estado de coisas (mas onde a homossexualidade ainda é reprimida, na subtil cena em que Mike encontra o polícia na rua) é o filme (um “porno-documentário”) a que Susan e o noivo (Cristopher Sandford, um “beatle” semelhante a John Lennon, o namorado de Jane Asher por altura do início da rodagem do filme) vão assistir – num tempo em que, como já se escreveu, se “podia” levar a namorada a ver pornografia, ousadia já fora do alcance no Taxi Driver (1976) de Martin Scorsese… –, em que, às tantas, uma mulher assevera, com resoluta cientificidade, existirem mais de 3.000 (!) pontos erógenos na mulher.
Há, portanto, um tanto de desilusão e sarcasmo na impostação moral que Skolimowski faz recair sobre Susan, a qual, alcandorando-se à mulher emancipada liberta do jugo fálico, acaba, afinal, por ter no casamento – instituição conservadora e burguesa por excelência – o grande objectivo, a grande “meta” a atingir, espécie de caução (moral, económica) para a vida que lhe (casamento) segue. Mas esta ideia de fracasso (hipocrisia?) da utopia sexual sessentista é ainda introduzida por Skolimowski de um outro ponto de vista: é que, ao longo de todo o filme, não obstante a sua atitude libertina, Susan não parece uma mulher… feliz (nem mesmo sexualmente). Pelo contrário, não obstante a onda de libertação sexual em que Susan é apanhada e de cujas vantagens tira proveito, parece uma mulher profundamente entediada, algo apática e desinteressada sobre o que a rodeia. Desinteresse que talvez mereça duas leituras: uma, diriam “reaccionária” os mais precipitados, sugerindo que Skolimowski pretende transmitir que, afinal, a libertação sexual não trouxe a anunciada felicidade à mulher; outra, mais pragmática, vendo no tédio de Susan um sintoma mais geral da sociedade moderna, essa crónica insatisfeita [que Antonioni tão delicadamente filmou desde, pelo menos, Le Amiche (As Amigas, 1955)].
No oposto da figura sexualmente desafogada de Susan está a personagem interpretada pela histórica actriz britânica Diana Dors, uma old lady que liberta as suas fantasias sexuais nos funcionários que trabalham nos balneários da piscina. Daqui resultando uma das mais geniais e cómicas cenas de Deep End, momento em que Dors, servindo-se de Mike como mera ferramenta sexual (talvez nunca no cinema um homem tenha sido tão explicitamente instrumentalizado ao desejo sexual de uma mulher), caminha na direcção do orgasmo ao mesmo tempo que fantasia uma jogada de futebol (“Tackle, dribble, dribble, shoot!“) protagonizada pelo lendário George Best – Best com quem, efectivamente, Dors gostaria de estar a ter relações, por aqui se entrevendo uma segunda instrumentalização de Mike, coisa que, reconhecida no mundo dos homens (na vida e, já agora, no cinema), supostamente não “acontecia” com as mulheres (estar na cama com um homem e pensar noutro durante o acto sexual).
Se, nesta cena, Mike repele o ímpeto de Dors, revelando a sua faceta mais púdica e inocente, já com a bela e promíscua Susan, o seu desejo irá entrar numa espiral ascendente que o fará persegui-la para todo o lado, criando uma obsessão que só poderá ser satisfeita através da consumação sexual (nisto indo, ao mesmo tempo, uma obsessão pela perda da virgindade, o que aproxima Deep End, como já referimos, de um coming of age movie). E é nesta consumação com consequências fatais, a qual fecha o filme, neste deep end (no “deep” indo não só a profundidade do sexo feminino e da piscina, mas, outrossim, a profundidade das nossas obsessões e, enfim, a profundidade que a morte encerra), que o filme de Skolimowski partilha os temas-chave da revolução que a Nuberu Bagu começara a empreender, uns anos antes, no Japão, com a eleição do mosaico Desejo-Obsessão-Sexo-Morte como dínamo dos seus filmes [de que um filme proto-Nuberu Bagu como Kurutta kajitsu (Fruta Louca, 1956), de Kô Nakahira, constituiu o primeiro indício e Ai no korîda (Império dos Sentidos, 1976), de Nagisa Ôshima, o seu culminar mais radical e explícito].
Elemento fundamental para o tratamento destas temáticas são os balneários em que Mike e Susan trabalham e onde grande parte do filme se passa (praticamente todo o filme é rodado em interiores, com excepção da incursão de Mike na vida nocturna de Londres – que é Munique, na verdade). Espaço onde o corpo e o desejo (das cores quentes, vermelho à cabeça, nas roupas de Susan) convivem com o trabalho e a burocracia (das cores brandas, brancas e verdes e beges, nas batas dos funcionários e nas paredes dos balneários, respectivamente) num equilíbrio prestes a explodir (são as pinceladas-explosões a vermelho que falamos umas linhas abaixo), circunstância agudizada tendo em conta a diferença de idades entre os clientes (de 50 anos para cima) e os funcionários (os jovens e atraentes Susan e Mike) – aliás, há mesmo cenas (o professor de natação com brincadeiras menos próprias com as alunas, a própria cena de Dors com Mike) que hoje levariam o carimbo de pedofilia (levantando a velha e ambígua questão de a relação de um homem mais velho com uma jovem parecer sempre mais censurável que o inverso…).
De par com os balneários, a piscina é o outro espaço simbolicamente mobilizador do filme: além da água, enquanto elemento plástico, também aqui poder simbolizar, como escrevemos noutras paragens, a liquidez própria da adolescência (no sentido das flutuações por que se passa nesse período), ela simboliza também a vida (a água como “fonte da vida”), a mesma vida que, no filme de Elian Kazan, Splendor in the Grass (Esplendor da Relva, 1961), brotava das cascatas junto das quais Warren Beauty e Natalie Wood reprimiam o seu desejo sexual, como então mandavam as convenções. E é neste mesmíssimo sentido (Kazan) que, depois do acto sexual que quase fecha o filme (uma “recompensa” de Susan por Mike lhe ter encontrado o anel de noivado, numa ironia daquelas…), a piscina, até aí vazia, começa a encher, como comportas que se abrem (como, se quisermos, comportas que “ejaculam”). Água (vida) a correr.
É também na água – ou, melhor dizendo, debaixo de água [a submersão, dotada de alto potencial poético, sempre foi campo fértil para o fantasiar ou para a introspeção: pense-se no Dustin Hoffman de The Graduate (A Primeira Noite, 1967) ou, mais recentemente, na Shailene Woodley de The Descendents (Os Descendentes, 2011)] – que Mike, abraçando o cartaz com a mulher que publicita o clube de striptease (se essa mulher é ou não Susan é ambiguidade a que o filme nunca dará uma resposta clara), se imagina abraçando Susan (a Susan “falsa” do cartaz convertendo-se na Susan de carne e osso), momento em que nos apercebemos até que ponto a fantasia lhe tolda os sentidos (a realidade a começar a con-fundir-se com a imaginação…) – até que ponto, enfim, chegou a sua obsessão. De facto, no niilista final de Deep End, Susan morrerá – apetece dizer – tal qual Mike imaginou. Imaginou não propriamente a sua morte (ainda que não seja claro se foi ou não, efectivamente, intenção de Mike matar Susan), mas o momento em que a segurará debaixo da água – numa sugestão de que, em estado obsessivo, a mulher fantasiada (e morta) é sempre “melhor” do que a mulher real. Morte, essa, filmada (pintada) numa pungente cena (das mais “belas” mortes que nos lembramos de ver no cinema) em que a aguarela composta pelos cabelos ruivos de Susan revoltos na água misturados com o vermelho-sangue coroa Skolimowski como um autor expressionista.
É, de facto, de expressionismo que aqui se trata, tal é o tratamento que Skolimowski dá à cor enquanto reflexo das emoções que as personagens carregam. A cor é amiudadas vezes utilizada para sinalizar sentimentos interiores diversos, como é disso exemplo a raiva que é “pintada” a vermelho na parede ao centro (a cor a dar profundidade plástica ao plano) no momento em que a elegante e jovem Susan deixa um gelado pousado junto da secretária velha e não-tão-elegante-assim que dela tem inveja por não poder comer o que lhe apetece. De resto, Susan é toda ela “expressionista” nas cores quentes que utiliza, a começar no próprio cabelo (red hair girl) e a acabar na roupa (sempre em tons amarelos, vermelhos, laranjas).
Por sua vez, o vermelho da gota de sangue que abre o filme tem, como nos filmes de Hitchcock [entre tantos outros, pense-se, desde logo, no amarelo da carteira de Marnie (1964)], um carácter prospectivo, revelando a essencialidade de determinado objecto ou cena para o desenlace da narrativa. Em Deep End, o vermelho inicial que “desagua” – à medida que a câmara vai filmando (e o genérico avançando) a bicicleta de Mike, com o filtro vermelho intermitente a funcionar talqualmente o “alerta vermelho” (de perigo, de morte) em Marnie – na gota de sangue da mão de Mike (que vemos reflectido na campainha da bicicleta) corresponderá ao vermelho final do filme, o vermelho quer do sangue de Susan, quer das latas de tinta que, com uma plasticidade trágica (como sangue a “escorrer na parede”), caem na água. E não é por ser de manhã que o But I Might Die Tonight que se ouve de Cat Stevens faz menos sentido…