Acordámos com o leitor uma pequena pausa neste mês de Agosto. Agora, com todas as energias restabelecidas, desfazemos o acordo para acordarmos desse sono leve. Um “despertar” sobressaltado por essa imagem paradoxal: como pode ser pacífico que uma personagem desperte se ao espectador-cinéfilo na sala escura, mergulhado num estado hipnótico de semi-vigília, essa é uma prerrogativa que pouco ou nada lhe interessa? Sair da sala de cinema – e “confirmar” o mundo lá fora – será o simulacro mais perfeito dessa acção herege, anti-cinematográfica ou, enfim, ontologicamente “desacordante”: abrir os olhos e, hélas!, exterminar o sonho.
Eis John Carpenter, o fundamentalista da película, o “último dos clássicos” que sabe que o scope é uma questão de geoestratégia: como ocupar cada zona do quadro para produzir determinado efeito? Ora, o que os últimos minutos de Prince of Darkness (Príncipe das Trevas, 1987) reservam ao espectador é uma terrível reacção alérgica ao vídeo e, ao mesmo tempo, uma muito eficiente “estratégia de ocupação” do espaço vazio. Primeiro, assistimos (não pela primeira vez) a uma sequência de sonho filmada em vídeo num plano apenas, assaltado por um zoom in e um zoom out instáveis, quase “assediadores”, qual breaking news televisivo vindo desse desolador cenário de guerra chamado inconsciente. Depois, o protagonista desperta em pânico – não quero aqui estragar ao leitor o conteúdo desta sucessão de imagens, pelo que peço desculpa se serei vago. Quando tal acontece, Carpenter faz-nos regressar à “verdadeira” estética do filme: a limpidez da imagem em película e o scope aberto ao espaço vazio… O que ocupa o vazio, isto é, o branco dos lençóis da cama que cobrem o recém-acordado protagonista e o lugar supostamente deixado vazio ao seu lado? Respondendo à questão, Carpenter assinala que a transmissão do vírus-vídeo pode bem ter sublevado o happy ending.
Luís Mendonça
Os espectadores de cinema sempre foram pressionados para acordar. Despertar para uma “realidade” fora da caverna platónica em jeito de sala de cinema, fora do embrulho em negro desse cantinho, da repetição pulsional da cinefilia (Capra falava nessa “doença”), do simulacro, do sonho ilusório face à vida verdadeira de carne e luz solar. Em A Nightmare on Elm Street (Pesadelo em Elm Street, 1984) de Wes Craven, leva-se ao extremo o perigo do sonho: é nele que os jovens são perseguidos por Freddy Krueger, o assassino desfigurado de luva com navalhas. Além do camp em algumas cenas (penso por exemplo, e salvo seja, no umbigo de Johnny Depp), o que aqui nos interessa é esse momento chave em que Nancy, a protagonista, decide trazer Freddy para a realidade. Como com o cinema, neste filme cedo se descobre que a estratégia para pôr fim ao medo não é impedir-se de sonhar (de adormecer). Pois esse sono, o físico, o do cinema, é fundante do humano, mas sim recuperar do sonho aquilo que convém à realidade. Talvez seja essa recuperação, esse movimento – da sala para fora dela, do sonho para o real, trazendo consigo algo – o verdadeiro sentido da palavra acordar. Pelo menos Nancy Thompson assim derrotou o seu sonho, integrando-o.
Carlos Natálio
Apesar da associação entre cinema e sonho ser fácil (já o Carlos escreve sobre ela), não deixa de ser certeira. Quando as luzes da sala se acendem, os espectadores como que acordam: ao subirem as escadas ainda vão meio estremunhados e ao saírem para rua franzem os olhos para se protegerem da violenta luz do sol (por isso, ver filmes em casa, seja em que formato for, nunca poderá replicar a experiência da sala). Também os filmes seguem mais a lógica do sonho do que a da “vida real” (por mais realistas ou documentários que sejam). Há filmes até que descobrem o sonho que são. E não são apenas aqueles que o ilustram em sequências oníricas: alguns, percebe-se a dada altura, foram só um sonho ou, para pegar no plano em questão [de Femme Fatale (Mulher Fatal, 2002)], pesadelo. Como Edward G. Robinson em The Woman in the Window (Suprema Decisão), a belíssima Rebecca Romijn desperta de uma vida horrível, em que tudo corre e acaba mal, com a respiração ofegante de quem teve um sonho terrível mas também de quem se ia afogando no Sena que afinal era uma banheira (isto não acontece a Edward G. Robinson). Como Edward G. Robinson, terá a oportunidade de repetir, acordada, os erros que sonhou. Como Edward G. Robinson, é salva por essa presciência. Ou seja, por já ter visto o filme da sua vida, decide refazê-lo de outra maneira (como qualquer produtor de Hollywood).
João Lameira
O plano que coloco nesta sopa é de Our Town (A Nossa Cidade, 1940), filme de Sam Wood (o primeiro de uma parceria de 6 filmes com o production designer William Cameron Menzies), e a terra é nossa, não no sentido da reforma agrária, mas no sentido em que este é um filme sobre uma vila e as suas gentes, contado pelos próprios. Até então Menzies tinha tido sempre grande dificuldade em filmar cenas de diálogo (as suas participações como realizador reduziam-se quase sempre a sequências de acção) mas com a direcção de actores de Wood e o seu gosto provocador, decidiu que se era para filmar grandes planos [já que a seu olhar se compunha exclusivamente de planos gerais – veja-se Things to Come (A Vida Futura, 1936)], então que esses planos fossem enormes. Dito e feito. Aqui Martha Scott acorda de uma visão onde assiste ao seu enterro e percebe, por contraposição, as maravilhas de estar viva – I want to live, I want to live! –, sendo introduzida de novo ao mundo pelo choro do seu segundo filho, acabado de nascer. Todo o filme se faz destes pequenos gestos da vida quotidiana, que, como a visão a informa, fazem-nos esquecer de olhar uns para os outros e apreciar os que mais amamos. Mas com um plano assim, não há como não olhar – e também não há como não amar.
Ricardo Vieira Lisboa