No âmbito da sua cobertura ao MOTELx 2013, Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa – munidos de um guião de perguntas cuja elaboração contou com o contributo decisivo de Miguel Domingues – encontraram-se com o realizador nipónico Hideo Nakata, acabado de chegar do outro lado do mundo (e evidentemente cansado de uma viagem de muitas horas), no luxuoso hall do Hotel Real Palácio. O cansaço do realizador não ajudou e por vezes as palavras não surgiam, algumas ideias ficaram perdidas no éter, mas com esforço Nakata fez-se entender e nós ficámos felizes de o ver surpreendido com algumas questões. Acima de tudo, ficou uma desarmante sinceridade de alguém que atravessou a indústria de uma ponta à outra, que viu projectos seus cancelados e a obrigação de cumprir filmes de tarefeiro feitos sem muita vontade, e que se acomodou à figura de pai do moderno cinema de terror japonês – já com pouca vontade de combater a etiqueta. Fala-se de tecnologias, de cinefilias, de portais e investigações, enfim fala-se do cinema de Hideo Nakata.
Luís Mendonça – Com o filme Ringu (The Ring, 1998) diz-se que começou um subgénero de terror, o J-Horror. Esta denominação diz-lhe alguma coisa? Sente-se responsável por ela?
Hideo Nakata – Sim, talvez eu seja responsável pela forma como os fantasmas surgem nos filmes de terror. No entanto, o termo J-Horror é da autoria de um produtor de cinema, Takashige Ichise, que produziu a série de filmes do Ringu e do Ju-on, entre outros filmes de terror. Mas foi só depois do Honogurai mizu no soko kara (Dark Water, 2002) que ele, por querer produzir mais filmes do mesmo género – semelhantes ao teatro de terror japonês -, cunhou o termo J-Horror. Quando eu estava a viver nos EUA houve um rapaz de 15 anos que, numa carta de admirador, me disse que os meus filmes eram de quiet horror. Eu gostei, mas é um adjectivo estranho… um filme de terror não deve ser silencioso ou calmo. Mas na verdade parece-me que é isso o essencial nos meus filmes de terror, porque eu tenho sempre o cuidado de desenvolver os momentos calmos entre os momentos assustadores. Não se pode andar só à volta do terror, há que ter noção de que é através dos momentos onde nada acontece que os momentos assustadores se tornam mais eficazes. Se o estímulo é sempre crescente – boom, Boom, BOOM! – o espectador habitua-se e já não se assusta, por isso é que os momentos calmos são tão importantes. Por exemplo, agora estou a montar um novo filme que é um thriller de acção- um remake de um filme sul-coreano – onde também existem momentos calmos. Mas tudo isto já o Hitchcock fez muito cuidadosamente.
LM – É ele a sua maior referência?
HN – Sim, sempre que faço um filme assustador ou de suspense, tento sempre ver algumas das suas obras-primas.
Ricardo Vieira Lisboa – Ter começado a moda dos filmes do J-Horror é para si um fardo?
HN – Sim, a certa altura senti que… não é bem um fardo. Houve um momento em que quis fugir do género, foi antes do remake… quando comecei a viver nos EUA, estava tão determinado em não fazer um filme de terror americano que até implorei… “eu não consigo…”. Mas fazer filmes de suspense como os do Hitchcock – com excepção de Psycho (Psico, 1960) – era algo que faria com grande prazer. É, no entanto, irónico que eu tenha acabado por fazer a sequela do remake do meu filme [risos]… Acabei por aceitar isto como o meu fado: fazer filmes de terror. Agora estou bem com isso, faço-os com gosto. Como disse, agora estou a fazer um filme que não é de terror, sem fantasmas nem nada dessas coisas (ainda que tenha alguns elementos sobrenaturais)… Entristeceu-me ser colocado pelas pessoas numa pequena caixa chamada “filmes de terror”, mas hoje em dia já não me importo muito…
LM – Estava a falar-nos deste seu novo filme que é também um remake e é engraçado, já que os seus filmes foram também objecto de remakes hollywoodianos. Como vê esta política de Hollywood de refazer os filmes de terror japoneses bem sucedidos?
HN – Refazer os filmes de outras pessoas não é ideal… é sempre melhor fazer filmes baseados nas nossas ideias e nas nossas histórias. Mas se olharmos para a história do cinema encontramos, não vou chamá-los grandes filmes, vários exemplos. Dos meus filmes, três tiveram remakes. Mas veja-se Kurosawa ou Hitchcock, que tiveram remakes ou os fizeram eles mesmos (a versão britânica e a versão americana dos filmes de Hitchcock) … é um negócio, o negócio do cinema. Ainda que hoje Hollywood esteja mais fraca, é certo que se alguém pensar que um filme vai dar dinheiro – e não digo que não se importem com a qualidade do projecto – [ele vai ser feito]. Um remake é muito simbólico do capitalismo. Resumindo, tem sido uma moda refazer os filmes de terror asiáticos (japoneses e não só), mas essa moda está a desaparecer – o ponto alto terá sido o The Grudge (The Grudge – A Maldição, 2004) – e o J-Horror deixou de ser popular em Hollywood. Aliás, isto é uma coisa não só americana, no Japão estão a fazer o remake do Unforgiven (Imperdoável, 1992) que era inimaginável há uns tempos. Acho que há uma falta de ideias no mundo inteiro, em todo o mundo do cinema. Se eles ou nós ou o dinheiro pensarem que é fazível… se o dinheiro acha que uma ideia original pode dar lucro, então acho que o projecto é capaz de avançar. É uma forma tortuosa de pensar, mas creio que é a realidade.
LM – Como está a lidar com isso neste remake [Monster (2014)] que está agora a terminar?
HN – Pode-se chamar-lhe um remake, mas o enredo é diferente. Temos dois argumentos e, apesar de preservarmos algumas cenas, outras são completamente novas – por exemplo, o final. Eu respeito o filme original e há coisas muito importantes que não ouso mudar, a essência é preservada. Quando estávamos a desenvolver o argumento (eu e os produtores), preocupámos-nos com as questões culturais que não eram traduzíveis da Coreia para o Japão e isso deu origem a grandes mudanças na história. Mas quando estava na rodagem pensei pouco no original…
RVL – Estudou jornalismo, certo?
HN – Isso é a informação do site, mas não é muito precisa. Mas quis estudar jornalismo…
RVL – Isto era apenas para referir que tanto em Ringu como em Honogurai mizu no soko kara as personagens investigam a origem do mal, sendo que a única forma de vencer o mal é revelando a verdade, o que é algo de muito jornalístico. Nos seus filmes o mal é quase algo curável, no sentido em que, se o compreendermos, ele já não nos afecta?
HN – Não me parece [sorriso]. A diferença entre a história de fantasmas tradicional e os modernos filmes de terror japoneses é… veja-se o caso de Sadako da série do Ringu, ela morreu – foi morta – e a maldição nasceu com a morte dela no fundo do poço; só que o poder da sua maldição é tão grande que atinge todos e não apenas o responsável pela sua morte – como era comum nas histórias tradicionais onde o fantasma tenta matar apenas o responsável pela sua morte. Por isso mesmo, investigar e descobrir a origem da maldição não chega [para te salvares]… Tal como um cineasta interessado em que o público acredite que tudo vai ficar bem. No final do Ringu, o casal descobre o cadáver e pensa-se que tudo acaba aí, mas claro que não é bem assim… Mas provavelmente essa é uma boa questão, já que nos filmes mais recentes de terror japonês há sempre uma personagem que investiga, que quer descobrir a razão da maldição – é um dos aspectos essenciais dos filmes J-Horror e do moderno cinema de terror. A ideia de tentar entender racionalmente o irracional é interessante, não se consegue racionalizar o horror. Não quero com isto dizer que os fantasmas japoneses não possam ser entendidos emocionalmente, algo que não acontece com outros filmes de terror. [Veja-se] o demónio do The Exorcist (O Exorcista, 1973) ou as aberrações do The Texas Chain Saw Massacre (O Massacre do Texas, 1974). Na verdade, adoro esses filmes e estou muito entusiasmado em conhecer o Tobe [Hooper] hoje ao jantar.
LM – Nunca teve oportunidade de o conhecer?
HN – Não, nunca. Mas há um episódio curioso: quando estava a viver em L.A., antes de começar a filmar o The Ring Two (The Ring – O Aviso 2, 2005), fui contratado pela MGM e estava a desenvolver um argumento (cheguei mesmo a fazer a repérage e parte do casting) de um filme que se chamava True Believers – um projecto que acabou por nunca ir para a frente. De qualquer forma, estava num hotel em Santa Monica e havia um painel – acho que se chamava a noite do horror ou algo do género – onde estavam presentes o Wes Craven e o Tobe, eu era apenas um membro da audiência e houve alguém que perguntou ao Tobe se havia algum filme de terror recente de que ele gostasse, ao que ele respondeu The Ring (O Aviso, 2002) – mas ele referia-se ao remake americano…
LM – Eu estive a falar com ele há pouco e falei-lhe dos seus filmes. Encontro uma certa semelhança entre Ringu e Poltergeist (Poltergeist, o Fenómeno, 1982), onde o ecrã da televisão é um portal, uma janela, para o mal. Foi importante para si ver o filme?
HN – Claro que a cena do Poltergeist em que a rapariga é sugada para dentro da televisão é um momento tão icónico que… o Poltergeist e o Videodrome (Experiência Alucinante, 1983) ficaram muito conhecidos pelas suas televisões assustadoras. Mas quando estávamos a desenvolver (eu e o argumentista) o Ringu, acho que não falámos do Videodrome, mas do Poltergeist falámos, evidentemente.
RVL – Tanto em Ringu como em Chatroom (2010), o Hideo Nakata lida com a tecnologia e a forma como ela nos afecta. Crê que são as coisas do dia-a-dia (o computador, o leitor de vídeo) que têm maior potencial de nos assustar?
HN – Quando fiz o Ringu, em 1997, era uma época em que os adolescentes, não só os japoneses, começaram a ter televisões e leitores de vídeo nos seus quartos e estes tornaram-se rapidamente nos electrodomésticos mais comuns. Foi por isso que achei que seria muito eficaz usar esses ecrãs de televisão como janelas para o inferno, ou apenas o reflexo do ecrã negro como espelho para o mal. [Quanto ao Chatroom] há uma rede social para smartphones, creio que vocês não a têm, onde um grupo de pessoas – mais os colegiais, rapazes e raparigas – podem falar em grupo. Aliás, não se pode falar, só se pode escrever, mas nunca a dois, apenas em grupo. Um estudo indicou que 70% dos adolescentes japoneses usam esta rede, eles estão tão viciados que aquilo se transformou numa ferramenta muito assustadora de bullying – ainda para mais, sem supervisão dos adultos. Houve mesmo um caso de homicídio, em que uma rapariga foi espancada até à morte por se ter transformado numa presa do grupo. Ela pensava que pertencia ao grupo, mas aos poucos foi sendo excluída. Quando recusou dar dinheiro aos outros membros, acabou morta. Mas quando estava a desenvolver o argumento do Chatroom, aconteceram coisas muito assustadoras, uma cadeia de suicídios provocados pelo conhecimento obtido na Internet – como juntar um detergente com um gel de banho e isso causar uma reacção química venenosa. Claro que foram eles os causadores das suas mortes, mas foi a Internet que os auxiliou. A Internet não é uma ferramenta para matar pessoas, mas tem os seus perigos. A tecnologia é sempre uma faca de dois gumes. Olhando para isto como um realizador de filmes de terror, é natural que ela seja sempre um bom ponto de partida.