A ambiguidade do título da canção de Jimmy van Heusen e Johnny Burke que dá nome ao mais recente filme do iraniano Abbas Kiarostami (e que se ouve na versão de Ella Fitzgerald) toma corpo nas personagens de Like Someone in Love (2012), que andam a brincar aos amores, “como apaixonados”, interpretando arquétipos numa encenação da paixão. Um jogo que já vem de Copie conforme (Cópia Certificada, 2010), em que, a meio, Juliette Binoche e William Schimell largavam as suas personagens para se apropriarem de outras.
Poder-se-ia avançar que Kiarostami buscaria assim uma qualquer espécie de universalidade, o que seria obviamente redutor (embora alguns dos seus filmes contenham o mundo). No entanto, o cineasta, no Irão ou agora nesta “carreira internacional”, sempre se interessou pelo tema da representação – algo perfeitamente evidente no fabuloso díptico Zendegi va digar hich (E a Vida Continua, 1992)/Zire darakhatan zeyton (Através das Oliveiras, 1994), em que há, pelo menos, dois duplos seus, muitos personagens-actores e actores-personagens, e um bigode de Jafar Panahi (a fazer dele próprio) -, sabendo bem que o cinema (o seu, o dos outros) será sempre uma cópia desconforme da realidade, ainda que uma cópia. No seu caso, uma versão refinada da realidade – refinada, tanto no sentido de requintada como no de, ou principalmente no de, apurada. E nesse processo de purificação encontra-se finalmente a verdade universal. (Isto é o que se chama um parágrafo de rabo na boca.)
Like Someone in Love abre com uma rapariga a mentir ao namorado fora de campo. O espectador nem a viu e já a ouve a contar patranhas – também fica a conhecer, sem o ver ou ouvir, o namorado obsessivo. A falsidade de Akiko (a belíssima Rin Takanashi) pronuncia-se na sua profissão: como call girl, prostituta de luxo, vende um simulacro do amor. Mesmo ao namorado acaba por oferecer apenas uma “girlfriend experience” (pegando no título do filme de Steven Soderbergh com Sasha Grey), o que convida ao cada vez maior (e justificado) ciúme deste, que se transforma rapidamente em comportamento psicótico. Porém, como seria de esperar, Kiarostami vê as suas personagens com benevolência (como um deus bondoso) e faz com que o espectador acabe por compreender o comportamento obsessivo do rapaz, que, apesar de tudo, age por amor, assim como o alheamento e o fastio da rapariga, que é menos femme fatale do que menina perdida, à deriva na vida, sem saber muito bem o que fazer. Toda a gente tem as suas razões, já lá dizia o outro. Nem quando, logo ao início, na comoventíssima sequência das mensagens na corrida de táxi, Akiko se recusa a ver a avó (um eco da viagem a Tóquio dos velhotes de Ozu), o espectador se põe contra ela.
Depois, começa a desenhar-se aquele estranhíssimo triângulo, tendo o professor idoso na reforma, que preenche os dias com traduções (a que falta uma linha que nunca se chegará a saber qual é) e contrata os serviços de Akiko, como último vértice. No fundo, é um amor platónico, ele só quer companhia, reconhece nela a imagem da mulher falecida ou da filha desaparecida (assim o diz a vizinha bisbilhoteira, eterna apaixonada do professor, que se compraz em espiar-lhe a vida pela janela) ou da figura daquela pintura cuja reprodução tem na parede. É o ancião, o homem sábio, o alter-ego de Kiarostami que comparece a alguns dos seus filmes – o realizador de Zire darakhatan zeyton, por exemplo – e distribui conselhos e sapiência com generosidade. Em Like Someone in Love (e quem que estará realmente apaixonado por quem neste filme?), tenta apaziguar o rapaz e proteger a rapariga. Mas, ao contrário do citado realizador de Zire darakhatan zeyton, não é bem sucedido nem num objectivo nem noutro.
De resto, esta aventura de Kiarostami no Japão é o perfeito contraponto dessa luminosa obra de Kiarostami – onde havia uma inocente persistência do amador, agora há uma crescentemente violenta perseguição do amante; onde havia renúncia, agora há um enfastiado encolher de ombros; onde havia o olhar doce do velho sobre os mais novos, agora há a angústia da velhice. Sinal da mudança geográfica? Sinal dos tempos? O certo é que a violência penetrou definitivamente no cinema do iraniano como o objecto não identificado que parte o vidro no abrupto final (ninguém esteja à espera de sangue e tripas, que naturalmente estão ausentes). O que não muda é a paixão de Kiarostami em filmar dentro de carros, dos carros para fora; com as câmaras-carro. Like Someone in Love.
Sem Comentários