E se não houvesse uma trilogia mas uma hexalogia da guerra que começou com La nave bianca (1941), prolongou-se com Un pilota Ritorna (1941-1942) e tem em L’uomo dalla croce (1943) o seu filme-charneira para as obras-primas que todos vimos e amamos: Roma, città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945), Paisà (Libertação, 1946) e Germania, anno zero (Alemanha Ano Zero, 1947)? Pegando nas próprias palavras de Rossellini, escreverei aqui que não deveria chocar ao leitor a hipótese de que a primeira trilogia da guerra, que Rossellini realizou sob indicação do regime de Benito Mussolini, é, afinal, não o pedaço renegado e infame da sua obra mas, bem pelo contrário, o princípio de um percurso que culminará com Roma, città aperta. Poderá o filme que mudou a face do cinema a nível mundial, para muitos protagonista de uma revolução da/na linguagem cinematográfica, ter sido, afinal, o produto de uma evolução que começa com as raízes firmemente plantadas em solo fascista?
Numa entrevista realizada por François Truffaut e Maurice Schérer (mais conhecido por Éric Rohmer), que pode ser consultada no catálogo da Cinemateca Roberto Rossellini e o Cinema Revelador, Rossellini assume os seus três primeiros filmes como parte do mesmo projecto que consagraria a sua trilogia sobre a Resistência e os efeitos da guerra. Truffaut e Rohmer, que então não tinham ainda visto os mal afamados três filmes anteriores a Roma, città aperta, perguntam a Rossellini se não será, enfim, um mal-entendido a ideia de que existem “dois períodos” na sua obra: “era a mesma a intenção que a eles presidia”, seria uma das respostas do cineasta italiano. E a intenção, explicara antes, era a de filmar o homem e a sua circunstância, que, neste caso, se chamava Segunda Guerra Mundial. Já aqui, como dizia André Bazin, o “estilo é o próprio homem” e a Rossellini interessava, antes da retórica política ou a própria dimensão heróica do combatente, uma espécie de documentário sobre a equivalência de gestos: os pequenos e os grandes ou como “os grandes feitos” têm “exactamente o mesmo alcance que os pequenos actos normais da vida; é com a mesma humildade”, afirmava na dita entrevista, “que procuro mostrar uns e outros”.
Muitos críticos se enganaram, mas L’uomo dalla croce é, antes de mais, exactamente isso e, nesse ímpeto quase antropológico de “compreender” os gestos do homem no grande cenário bélico, é também bem mais revelador que apenas isso. Revelador de quê? Do que viria dois anos depois: não apenas um Rossellini liberto dos ditames da Cinecittà controlada pelo filho de Mussolini, mas outrossim, fundamentalmente, um Rossellini que não se traiu como muitos quiseram retratar, cultivando um tabu equívoco e obscurantista. Na realidade, no que diz respeito a este filme, podemos ver em potência muito do que viria a ser posto em marcha nos três filmes da “boa” “trilogia da guerra”, a antifascista, a tolerante e a humanista. Apetece quase escrever, dando a volta a uma frase conhecida de Rossellini, que “o filme está aí, para quê manipulá-lo?
Entenda-se: antifascista seguramente L’uomo dalla croce não é, mas daí a reduzi-lo a palavras como propagandista e anticomunista vai um passo largo, que não pode ser dado unicamente à custa do cartão final, mensagem não só estrangeira ao que de essencial o filme procurara mostrar (independentemente do que fora tentado que ele demonstrasse), como antitética do cúmulo patético contido nas suas últimas imagens. O protagonista, um capelão do exército italiano enviado para a frente russa, procura salvar a vida de um militar inimigo. Assinala a sua presença com o lenço branco para que, na investida militar, os seus compatriotas não disparem contra ele. Contudo, o esforço é infrutífero e, longe de morrer heroicamente (como um mártir), o padre acaba estendido no chão, sobre o corpo de um soldado russo que não resistirá aos inúmeros ferimentos que a guerra lhe infligira: rosto parcialmente queimado, corpo perfurado por balas e uma alma destroçada pela traição da sua própria mulher em favor de outro camarada. Uma traição “confirmada” entre as ruínas da “batalha de ontem”, como uma guerra dentro de outra que serve para confirmar que, apesar de tudo, a vida continua… em todos os seus gestos.
Sobre o corpo do homem traído, duplamente (pela mulher e pelo exército que o abandonou), o nosso padre militar diz e dita o pai-nosso, a palavra de Deus sai-lhe do espírito, mas o corpo já morre. E a morte é inglória, anti-heróica, anónima, quase absurdamente não-crística. A antítese da exaltação panfletária da tradicional “estética fascista”? Não, mais do que isso, os últimos planos revertem poderosamente, num tremendo golpe sobre não o pré mas o pós conceito que o cartão final despertará no espectador moderado, uma outra imagem por vir: a do padre de Roma, preso à cadeira, pronto a ser fuzilado, mas ainda assim objecto de um testemunho inabalável para o futuro, que são as crianças que assistem, do lado de fora, à chacina nazi. Padre igual a mártir. Já o “homem da cruz” é vítima do absurdo e da confusão de um conflito do qual ele faz parte apenas para defender a insígnia que traz ao peito. Esta é uma mensagem que ele comunica amiúde, como que sinalizando – a quem? Ao espectador, claro! – o espírito de todo o filme: o símbolo que ele traz ao peito não é o do Partido Nacional Fascista, mas o da cruz de Cristo. A última imagem é um plano apertado sobre ela e é então que cai o maldito cartão que cegou os olhos de quem viu, bem ou mal, tudo o resto.
Como haveria de ser “marca” na obra de Rossellini, tudo neste filme se “reporta” à distância – como que pela parte maior de um telescópio, diria Bazin -, lançando por vezes a confusão sobre se há, de facto, personagens e, com elas, os habituais conflitos que encontramos num típico drama bélico. Este “andamento de reportagem” é o primeiro traço que consolidaria a estética realista rosselliniana. Ao mesmo tempo, também neste filme Rossellini põe em prática a sua fórmula estética e ética que se traduz em acompanhar, com a câmara, um homem no seu confronto com um mundo em ruínas – sobre/sob os escombros da História, como se verá pronunciadamente de Germania, anno zero a Viaggio in Italia (Viagem a Itália, 1954). E desse confronto a câmara rosselliniana, em movimentos reconhecíveis, fixa a solidão e o sofrimento humanos. A sequência nocturna em que um menino russo, que ainda mal sabe andar, atravessa uma parede reduzida a destroços parece reverberar numa sequência do derradeiro episódio (o do rio Pó) de Paisà, em que a dor incontida de uma criança, que se desfaz num choro convulso, choca com a paisagem devastada pela guerra que fez dela órfã. Nestas duas personagens, encontramos a mesma imagem – distante e fria – da fragilidade insuperável do Homem ante o mais terrível dos conhecidos “infernos na terra”.
Como o capelão militar é “o homem” – é, tento escrever, o “um homem” – deste filme. Rossellini evita entrar no discurso sobre os vencedores e os vencidos, a parte boa contra a parte má. A missão deste padre-soldado que se diz “ministro de Deus” é servir, com os seus conhecimentos de medicina e as suas preces, todos aqueles, civis ou militares, que tenham sido colhidos pela tempestade de explosões e tiros que os cerca. Lançado para o meio do conflito, o padre carrega um ferido às costas, cura as feridas de outro, prega os ensinamentos de Deus aos aldeães, chega a baptizar um recém-nascido com água de um poço esquecido na “terra de ninguém”, mas – sublinho – todos estes gestos, pequenos e grandes, não o vão salvar de uma morte pouco heróica e galvanizadora; enfim, pouco… “fascizante”.
Sempre achei que o cinema de Rossellini era como a rajada de metralhadora que, em segundos, rouba a vida à personagem de Anna Magnani em Roma, città aperta. Todo o filme parece trazer agarrado a si, na sua pele e no ritmo do seu andar, essa imagem e, sobretudo, esse som. Ora, também aqui os acontecimentos não dão tempo ao drama para que este respire, também aqui o chamamento dos viventes “fala mais alto” que o chamamento divino – mas também aqui, se calhar mais do que nunca, os dois chamam… A forma (um, dois planos rápidos) como, por exemplo, o padre subitamente é detido pelo exército vermelho ilustra bem esta velocidade “de bala” que atinge de morte as imagens, impondo entre elas a mais crua das passagens… Não é ainda um objecto positivamente pobre, remendado e inacabado como vão ser, também por força das circunstâncias, os filmes sobre a Resistência, mas em L’uomo dalla croce – não sendo, em resumo, um filme que se deva continuar a ignorar – já se percebe essa vontade de impregnar a matéria fílmica do mesmo atordoamento de que é feito – e com que os homens fazem – o inferno da guerra.