Os primeiros dois dias de MOTELx compilam-se aqui seguindo a pena de Luís Mendonça (LM) e Ricardo Vieira Lisboa (RVL). Entre na residência, peça as chaves e acomode-se desde já no átrio, onde, entre outros assuntos, se discute “a moda” dos filmes colectivos, o horror familiar de Nakata, o terror caseiro de Hooper e os caros “jogos gratuitos” de E.L. Katz.
V/H/S 2 (2013) de VÁRIOS
A abrir este MOTELx 2013 tivemos, para além da promessa de umas moedas para a cama vibratória e uma bíblia na gaveta do meio da mesinha de cabeceira, a projecção do V/H/S numéro deux. Esta atençãozinha podia querer dizer uma de duas coisas: ou o numéro un foi um sucesso de público tão grande no ano passado que deste modo o gerente do motel encontrava a forma mais doce e querida de premiar a sua fiel clientela ou o numéro deux tinha tudo para fazer esquecer o que não corria nada bem no primeiro VHS. Uma vez vista a sequela, eu, que saí desiludido do primeiro filme, inclino-me mais para esta segunda hipótese, ainda que não forçosamente pelas melhores razões. Por um lado, confirmo que aumenta a qualidade média deste pequeno laboratório de criatividade no domínio do found footage. Por outro lado, o melhor episódio dos dois filmes está gravado no primeiro VHS e, portanto, como então escrevi, Ti West continua senhor e rei da empreitada. Mais: do primeiro para o segundo filme perdeu fulgor o projecto de (re)trabalhar, dentro do espírito de uma espécie de terrorismo anti-nostálgico, a matéria já hoje arqueológica da videocassete.
Apesar da perda de definição da premissa estética deste projecto, com este segundo tomo ganhou-se, contudo, uma maior clareza diegética e um investimento mais cuidado na articulação das diversas histórias. Também se acrescentaram melhores doses de humor negro e pura diversão horrífica. Paradigma disso é o episódio indonésio da autoria de Gareth Evans, realizador que se popularizou com o filme The Raid (2011) na anterior edição do MOTELx. Explorando o modelo da falsa reportagem, Evans vai lentamente – e, no início, desconfiei desta lentidão – desenrolando um “inquérito jornalístico” que nos últimos minutos rebenta numa alucinante trip to hell, elevando ao quadrado – ou ao cubo! – filmes como Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968) de Roman Polanski ou Pro-Life (2008) de John Carpenter. Fusão demencial da violência in your face e inexcedível de The Raid com o imaginário mais “sem freio” do horror satânico. Face a tão grotesco carnaval diabólico, rir – e como me ri! – será a melhor forma de catarse. (LM)
V/H/S 2 volta a ser exibido hoje, sexta-feira dia 13, em sessão dupla com The Conjuring (2013) de James Wan, às 00:15 na sala Manoel de Oliveira do cinema S. Jorge.
We Are What We Are (2013) de Jim Mickle
Jim Mickle não é estranho ao MOTELx, há dois anos o seu filme Stake Land (2010) encerrou o festival. O que é estranho é o público do festival que está mais desejoso de ver descidas aos infernos com muito sangue ou filmes de sustos que um filme como We Are What We Are – apresentado em Sundance e seleccionado para a quinzena dos realizadores em Cannes, remake de Nos somos lo que hay (2010). Mickle não é um realizador de filmes de terror no sentido literal da palavra, já em Stake Land (que era um filme de vampiros) os terror era reduzido ao mínimo – para benefício do filme que se transformava num road movie, uma espécie de viagem pelo campo com a família (e vampiros a chatear). Através da voz off e de uma banda sonora delicada o filme transformava-se numa viagem emocional de um rapaz que se torna adulto por imposição das necessidades. Aqui Mickle não mudou muito e, de novo, ajudado pela banda sonora e por um dom para a criação de atmosferas densas, trata de um seio familiar conturbado onde as personagens principais são jovens a braços com uma tradição familiar que as horroriza. O Mister de Nick Damici no filme anterior vira Mister Parker por Bill Sage, sendo que a figura masculina tutelar permanece inalterada (no entanto menos cool e mais assustadora) e uma série de actores repetem-se (o próprio Damici – que co-escreveu o argumento com o realizador – e a maravilhosa Kelly McGillis).
O filme aparece então como um ovni para os festivaleiros: durante a sessão riam-se muito de coisas sem graça nenhuma, comentavam as sequências mais enjoativas com trejeitos e onomatopeias, enfim, reagiam como sabiam a um filme que não os convidou a entrar (que lhes pediu mais do que estavam dispostos a dar). O ritmo lento, a história macabra contada sem qualquer humor, o levar às últimas consequências um trabalho de investigação dos hábitos de uma população rural e profundamente religiosa (coisa que já surgia em Stake Land através da figura do vilão – se lhe podíamos chamar isso), tudo isso incomoda e surpreende – mas mais que isso, revela um realizador para o qual o género é apenas uma fachada (uma porta aberta) para um trabalho sobre as pequenas comunidades e como estas lidam com o horror. Os dois filmes do realizador que pude ver parecem indicar que o horror é, para aquelas gentes, apenas mais uma das suas dificuldades (a juntar ao desemprego e à pobreza, neste último filme) e como tal, se não o podes combater junta-te a ele – nós somos o que há. (RVL)
We Are What We Are volta a ser exibido no próximo domingo (dia 15), às 22:00 na sala 3 do Cinema S. Jorge.
Home Sweet Home (2013) de David Morlet
Há um par de coisas interessantes em Home Sweet Home de David Morlet, mas convenhamos, além dessas duas ideias pouco mais há no filme. A primeira corresponde à sequência inicial em que um homem invade uma casa e, estando esta desprovida dos seus naturais habitantes, por ela se passeia conhecendo o campo de batalha em vias de ser. Morlet filma este homem errante sem nunca revelar a sua identidade – e aqui identidade é sinónimo de face, quem não tem face não tem identidade (curioso que nesta edição do MOTELx, as duas figuras centrais são Leatherface e Sadako, ambos sem face visível e portanto mais aterrorizadores) – enquadrando-o sempre com o rosto fora de campo numa coreografia de movimentos de câmara e do próprio actor que revelam alguma inteligência e domínio (aquilo que se diz ser uma boa mise en scène). A questão está no facto de todo este esforço ter apenas um objectivo, criar um twist final que deverá surpreender e divertir (infelizmente isso não acontece).
Todo o filme é pois um composto de ideias já usadas e mais que experimentadas. Ideias que outros souberam aproveitar tão melhor (veja-se o filme de estreia de Bryan Bertino), não fosse o subgénero do home invasion quase tão velho como o próprio cinema [veja-se The Birth of a Nation (1915)]. E se chover no molhada nem sempre incomoda, aqui, embora não aborrecendo, surge como hipótese falhada de renovação. Fica por falar da segunda ideia interessante, esta agora já no final do filme (aliás o último plano). Não será revelar em demasia que no fim conhecemos a identidade do homem mascarado, quando este retira a dita cuja. Pois bem, só lhe vemos a cara uma vez e é num grande plano em que ele aponta uma arma directamente à câmara [e portanto a nós – veja-se The Great Train Robbery (1903)]. Nesse momento percebemos que não só o próximo alvo do matador é o espectador (quando chegar a casa vindos do cinema) como, por lhe conhecermos a identidade, o preço que havemos de pagar será maior ainda que aquele ao qual acabámos de assistir. A isto se chama virar o bico ao prego. (RVL)
Honogurai mizu no soko kara (Dark Water, 2002) de Hideo Nakata
Sem ter visto o remake americano pela mão de Walter Salles, estou em crer que dificilmente o efeito de Honogurai mizu no soko kara de Hideo Nakata seja transmissível facilmente para outra cinematografia que não a japonesa. Isto porque o Honogurai é um exemplo completíssimo daquilo a que se convencionou chamar de J-Horror. Juntam-se aqui as presenças sobrenaturais em forma de alma penada, a figura feminina com cabelos compridos que lhe tapam a face, o ambiente tenso e o espaço decrépito; enfim, tudo aquilo que Nakata fundou com Ringu (Ring, 1998) e que tão bem soube repetir e transmitir. O que encanta (n)o filme é no entanto, mais do que o horror (que Nakata filma com evidente delicadeza, há apenas uma sequência de plano subjectivo – evitando assim tensão desnecessária no espectador – e muitas cenas terríficas são resolvidas em elipses), a forma como para o realizador é mais importante desenvolver sobre o seio da família: aqui em decomposição por um divórcio que deixa uma filha divida entre o lado de cá (a mãe) e o lado de lá (o pai). Neste sentido o filme extravasa a sua componente local e torna-se um objecto verdadeiramente do mundo, ao centrar-se numa mãe com medo de perder a filha, nas questões tão ocidentais dos empregos que retiram tempo do progenitor à cria, ou a obsessão de uma mãe em manter a filha a salvo – custe o que custar -; é interessante perceber como, passado dez anos nada se alterou e os problemas das nossas gentes são em tudo equivalentes.
O filme peca apenas por transformar uma fábula triste à volta da infância e da parentalidade num filme de investigação, onde a protagonista começa a juntar provas e pistas para tentar desvendar a natureza e intenções do fantasma. Tudo se cose perfeitamente sem pontas soltas, as aparições, o tema da água, a malinha cor de rosa, tudo fica composto, mas tudo isso era desnecessário. Aliás, parece-me que reduz do filme toda essa explicação já que a própria natureza de um espírito é não ser alcançável pelos vivos, quer por via sensitiva quer cognitiva. Mas talvez seja esse o trabalho que distingue Nakata, o de criar assombrações que tanto arrepiam como emocionam – um jogo que nem sempre se ganha mas que demonstra as unhas treinadas do guitarrista. (RVL)
Eggshells (1969) de Tobe Hooper
Eggshells é o grande momento arqueológico do MOTELx 2013. Desenterrada uma obra que se julgava perdida para sempre, os organizadores decidiram que era tempo de dá-la a ver ao público português, mesmo que tenham passados mais de quarenta anos sobre a sua realização. A distância que o esquecimento lhe confere tem, quanto a mim, dois efeitos: um positivo e outro negativo. O positivo está na confirmação de que certas obsessões do e no cinema de Tobe Hooper são ainda mais antigas que aquele que era até agora o seu “primeiro filme” oficial: o famosamente infame ou infamemente famoso The Texas Chain Saw Massacre (ver abaixo). Esta notável coerência autoral vai ao ponto de encontrarmos neste seu célebre filme planos quase decalcados de Eggshells, tais como aqueles que Hooper, de modo insistente, capta sobre as escadas de uma casa que, no seu conjunto, é um quase perfeito dead ringer do “ninho de Leatherface”. Por outro lado, temos aqui o primeiro exemplo do fascínio de Hooper por assombrações e portais para o além ou não seria Eggshells uma espécie de Poltergeist hippie e “intoxicado”.
O ponto negativo prende-se com a descontracção (e)levada ao mais puro ridículo e que voluntária ou involuntariamente bloqueia o horror com deambulações psicotópicas por um mundo feito de arco íris, passeios no parque e beijinhos dentro de “bolhas” do amor. Ainda assim, pode ser que, com a distância de ainda mais algum tempo, este filme agora redescoberto possa ganhar laivos de visionarismo pós-pós-moderno: um filme de terror semi-documental, impregnado pela realidade sócio-política do seu tempo, que falha nos seus princípios porque os seus protagonistas, demasiado pedrados para quererem saber, estão imunes à paranormalidade que lhes invade a casa. Na realidade, para estes hippies, a assombração é uma benção, porquanto significa renda mais baixa e um suplemento de moca. Uma coisa é certa: Steve Jobs chamar-lhe-ia um figo, ou melhor, uma maçã! (LM)
ABCs of Death (2012) de VÁRIOS
O filme colectivo de horror está ou volta a estar na moda. Depois de V/H/S 2, o MOTELx 2013 oferece este ABCs of Death. O sucesso do primeiro servirá terrivelmente à confrangedora qualidade deste segundo. Dito de outra maneira: se em V/H/S 2 encontramos um dispositivo desafiante que cola as peças do seu puzzle diabólico (puramente audio/visual), no caso deste alfabeto feito de 26 curtíssimas metragens o fio é fraco e acaba por romper passado pouco tempo. A cansativa repetição de ideias – consequência eventual da falta de coordenação destas histórias – é uma das razões para o descalabro, mas também não ajuda a notória ausência de talento e criatividade em mais de 70% do material aqui reunido. Ainda assim, ficaram-me na retina apenas dois episódios, que talvez mereçam um visionamento à parte para quem não se quer dar ao trabalho de percorrer este alfabeto.
O primeiro episódio que me despertou interesse foi o da letra Q, “Q de Quáquá”, posta em filme por Adam Wingard, realizador que conta com três filmes neste MOTELx (uma das curtas de V/H/S 2 e a badalada longa You’re Next são os seus outros trabalhos presentes na mostra). A ideia por trás do seu episódio é simples e talvez aí esteja o segredo para que tenha sobressaído: é que aqui o terror começa e acaba na ideia de se conseguir arranjar um tema com, precisamente, a letra “Q”. A auto-ironia poderá ser um truque fácil e preguiçoso, mas a verdade é que Wingard e o seu colega (também de V/H/S 2) Simon Barrett fazem esquecer a completa perda de tempo acumulada até então. O outro episódio digno de nota é realizado por Xavier Gens. Chama-se X is for XXL e é um comentário ao problema da obesidade em horrendo choque com a cultura mediática dos corpos perfeitos. O espectador é maltratado, mas o filme fala alto muito graças à sua contundente “mensagem social”. (LM)
ABCs of Death volta a ser exibido no próximo sábado (dia 14), em sessão dupla com Girls Against Boys (2012) de Austin Chick, às 00:00 na sala Manoel de Oliveira do Cinema S. Jorge.
Room 237 (2013) de Rodney Ascher
Ver filmes é uma coisa que está intimamente ligada com a tecnologia: já tivemos os espectáculos de um minuto movidos a moedinha como atracção de feira, já tivemos salas e salas gigantes (de 35 para 70 mm, de 4:3 para Cinerama ou CinemaScope ou VistaVision), já tivemos cinema em casa pela antena da televisão ou pelos VHSs (e os Betamax), os DVDs e agora os Blu-rays (além dos métodos ilícitos ou nem por isso de os ver na rede). Enfim, a cada evolução tecnológica, o espectador tem tido a possibilidade de chegar mais perto das obras, vê-las mais que uma vez, vê-las quando quiser, vê-las e para-las a qualquer momento, repetir apenas trechos, ver em velocidade acelerada ou reduzida, de trás para a frente ou em cores invertidas. Tudo isto acrescenta (ou diminui) à obra e nós tornamos-nos espectadores diferentes a cada investida da indústria. Room 237 é um filme sobre The Shining (Shining, 1980), mas podia ser sobre qualquer outro filme de grande audiência e suficientemente ambíguo: o que importa é percebermos como as possibilidades do cinema em casa permitem as mais mirabolantes análises e como os filmes são apenas um veículo de expressão individual, isto é, vemos neles aquilo que queremos ver.
Rodney Ascher fez um filme de entrevistas a vários internautas que encontrou espalhados pela net, cujas interpretações do filme de Kubrick eram mais pormenorizadas e invulgares. Seis personagens ao todo que nunca conhecemos (só as suas vozes, não fosse isto um filme sobre cidadãos da internet, esse meio onde se lida de forma travessa com a identidade) e que vão comentando o filme e reproduzindo as suas ideias sobre ele. Temos de tudo, umas mais plausíveis que outras, umas mais divertidas que outras: um homem que acredita que no filme estão várias pistas que garantem a Kubrick a autoria do vídeo da alunagem, outro crê que o filme é uma interpretação dos massacres do ocidente (quer sejam os do holocausto nazi, quer seja a matança dos índios americanos), outro encontra referências mitológicas, explicações freudianas e tantas possibilidades mais. Muitas destas formas de ver o filme são contraditórias e por vezes não fazem sequer sentido (como seja encontrar na forma das nuvens o rosto do mítico realizador), mas enquanto uns crêem piamente nas suas teorias, outros têm a absoluta consciência do acto ‘pós-moderno’ de assim ver cinema. Nem todos os sentidos que encontramos numa obra resultam da intenção do seu autor; resultam sim dos olhos de quem vê – tendo isto em conta, a sequência mais inteligente de todo o filme é quando um dos entrevistados pede que se pare o filme para ir tratar do filho que choraminga, e claro Ascher faz pausa e nós ficamos à espera que ele volte. Comando na mão e carrega no botão. (RVL)
Cheap Thrills (2013) de E. L. Katz
O filme de estreia de E. L. Katz venceu o prémio do público no SXSW e por isso já esperava um crowd-pleaser, o que nos filmes de terror corresponde a competência impecável, interpretações escorreitas e boas doses de gore ou de sustos ou de jogos com o espectador. Cheap Thrills cumpre tudo isto com um sorriso torcido, num jeito meio gingão meio provocador que é raro ver de forma tão descarada. E é por isso que o filme é tão divertido, porque sentimos fazer parte do jogo, sentimos que nas mesmas circunstâncias estaríamos dispostos a fazer grande parte do que os personagens fazem. O filme consiste de uma premissa muito simples, um homem rico quer oferecer à sua mulher (muito mais nova e lindíssima, a grande Sara Paxton) um prenda de aniversário diferente, para isso convence dois jovens adultos a entrar num jogo de consequência ou consequência a troco de dinheiro – dou-te tanto se fizeres aquilo. E assim a jogo vai escalando, desde beber mais depressa um copo, passando por defecações em sítios públicos até ao final que… não vou contar, evidentemente.
Invariavelmente são estes filmes com pontos de partida tão singelos que alcançam melhores resultados (ainda que aqui o esquematismo de algumas personagens e o sublinhado – demasiado evidente – sobre as questões económicas retire leveza à construção), aqui isso consegue-se em grande parte pelo trabalho dos actores (e pelo casting muito acertado). A escolha do anfitrião novo-rico com um riso contagioso e um tempo cómico desarmante foi para David Koechner que estamos mais habituados a ver em comédias – mas que tem entrado ocasionalmente em filmes de terror para repetir aquilo que faz nos filmes para rir -; escolher a pura Sara Paxton de The Innkeepers é perverter a personagem de Ti West, já que aqui a menina não só quase não fala como se apresenta como uma femme fatale de pistola em riste e sombra nos olhos e para acompanhar a menina vem o menino do mesmo filme, Pat Healy que faz a mesma (e única?) personagem. Estas partilhas de actores entre um pequeno meio de cinema de terror independente nova-iorquino é sinal de uma coesão (não tanto de olhares, que são muitos e diversos) comunitária em torno do cinema que certamente permite o desenvolvimento de nomes que futuramente serão sonantes, Katz é bem capaz de ser um deles. (RVL)
Cheap Thrills volta a ser exibido no próximo sábado (dia 14) às 17:00 na sala Manoel de Oliveira do Cinema S. Jorge.
The Lords of Salem (2012) de Rob Zombie
Quem conhece os filmes de Rob Zombie sabe que este é um cineasta (principalmente nos filmes mais pessoais) profundamente descontrolado – no bom sentido. Tanto porque os seus filmes estão cheio de personagens histriónicas (no sentido que referem ao histrião – um palhaço da corte – isto é, são palhaços com armas e gosto por sangue) como de referências das mais variadas origens – de Groucho Marx a Tobe Hooper, de Laughton a Scorsese, de Bigelow a Kubrick (para não falar das referências musicais e literárias). Ou seja, apesar da aparência de roqueiro desgadelhado, Zombie é um poço cinéfilo que a cada filme vomita brincadeiras, jogos e piscadelas de olho. Se isto se passava com The Devil’s Rejects (Os Renegados do Diabo, 2005) e com o seu antecessor House of 1000 Corpses (A Casa dos 1000 Cadáveres, 2003), o interlúdio pelos filmes de estúdio com o remake de Halloween (O Regresso do Mal, 1978) e a correspondente sequela estabeleceram uma pausa na voragem do realizador. Talvez por isso, talvez não, este recente The Lords of Salem surge-nos tão contido – pelo menos a início.
A cinefilia do realizador surge aqui por caminhos ínvios, por exemplo pela escolha de algumas actrizes que já não faziam filmes há mais de uma década e que são nomes fundamentais do cinema de terror, como Lisa Marie (recorrente nos filmes de Tim Burton) e Judy Geeson – estratégia muito tarantina. O filme segue Heidi (Sheri Moon Zombie, a mulher do realizador que vem aparecendo em todos seus seus filmes) que vive na povoação de Salem (na qual se deu, no século XVII, a famosa caça à bruxas) e trabalha na rádio local. Através de um disco de vinil misterioso, a menina começa a ter visões e a comportar-se de forma estranha. Até este ponto Zombie preserva uma atmosfera pesada (corredores e salas quase sempre escuros, iluminação colorida, banda sonora grave) mas quando as visões e os eventos paranormais começam a tornar-se mais evidentes, o freio do realizador solta-se e começa o festim simbólico, quase religioso (ou anti-religioso) que vai acompanhar o filme nas últimas sequências. A utilização do Requiem de Mozart e o paroxismo dos efeitos especiais (nunca digitais, há que notar) eleva o filme a um ponto de sublime fragilidade, onde não sabemos se o filme cai no ridículo ou alcança o terrífico efeito do medo (nunca o susto, os monstros surgem sempre lentamente no enquadramento). Possivelmente o melhor filme na secção Quarto Escuro, também por ser o que mais arrisca nos limites do risível. (RVL)
The Lords of Salem volta a ser exibido no próximo sábado (dia 14) às 21:45 na sala 3 do Cinema S. Jorge.
The Texas Chain Saw Massacre (Massacre no Texas, 1974) de Tobe Hooper
“Se vou a um talho acho sempre surpreendente não estar ali eu em vez do animal”. A frase de Francis Bacon faz ainda mais sentido quando a situação é seguida do visionamento ou – foi este o meu caso passados cerca de dez anos – do revisionamento dessa verdadeira instituição do cinema de terror moderno chamada The Texas Chain Saw Massacre. O protagonista, Leatherface, ficou para sempre como o carniceiro que pendura as suas vítimas em ganchos de talho ou que as executa como a manada no matadouro, não na maneira moderna (pouco eficaz, diz o seu irmão no início) mas à “maneira da casa”. Qual casa? Uma casa onde vivem quatro maníacos, cada um deles passando os dias a dominar e aperfeiçoar a sua arte, sendo que o principal deles, um rapagão de cara tapada por uma máscara ridícula de carnaval, é um artista plástico que usa a motosserra como um escultor aplica o seu conjunto de estecas sobre o barro. A matéria-prima aqui é mais dura, muito concretamente, o que resta dos “cozinhados” do papá: ossos de cadáveres humanos. Com eles, faz instalações e, não escondendo o gosto também pelo design e a decoração de interiores, chaise longues, máscaras e vários tipos de bibelôts. Numa palavra, Leatherface é tanto um talhante ou abatedor quanto um mui esquisito artista plástico. Em suma, ele não é muito diferente, por um lado, do seu irmão (com inclinação para a body art e a fotografia) e, por outro lado, do seu avô (em tempos idos exímio “carrasco” de matadouro).
O pai, queixa-se o irmão body artist, é apenas “um cozinheiro”. A queixa é injusta, já que as refeições são momentos sagrados entre os membros desta família especial, que vive isolada da sociedade, numa perfeita autarcia na qual arte, comida e energia (produzida por um gerador próprio) garantem a habitabilidade de um território. E nesse território – é preciso sublinhar isto – as visitas, isto é, “os estranhos” não são bem-vindos. A hospitalidade mínima só servirá de isco para em vez de lhes servirem o jantar servirem-se delas, das “estranhas visitas”, como “o jantar”. De Eggshells a Toolbox Murders (O Edifício Lusman, 2004), esta é a principal lição de etimologia do cinema de Tobe Hooper: o terror é uma forma de administração do território. Terreo, em latim, significa assustar ou, exactamente, aterrorizar. Hooper inicia uma longa série de reflexões sobre todas as implicações inerentes ao facto de se possuir um terreno; de se poder contar, enfim, com uma casa (home sweet home). Aqui, como também no magnífico The Funhouse (Acidente no Luna Parque, 1981) por exemplo, os bons da fita são aqueles que pisam o risco e entram, sem autorização, nos limites soberanos da família aterrorizadora, isto é, detentora de terra. Quanto ao espectador incauto, (também) pagará cara, muito cara mesmo, a profana bisbilhotice. (LM)
Chained (2012) de Jennifer Lynch
Jennifer Lynch (sim, a filha de…) tinha tornado quase impossível uma qualquer reabilitação depois desse filme não “de horror” mas simplesmente “horroroso” chamado Surveillance (Vigilância, 2008). Não venho aqui escrever que compreendo como é que Jennifer Lynch continua a realizar filmes, nem venho aqui especular sobre os “porquês” de se programarem filmes de Jennifer Lynch. A mediocridade é geral e a falta de visão é igual à sua incapacidade para disfarçar a ânsia de “ter um universo”. Mas abra-se lá o justo parêntesis: Chained significa um ligeiro recuo nessa ânsia e, para minha surpresa, sabe explorar as suas poucas valências. Valência número um: Vincent D’Onofrio e a sua personagem nuançada que vai conseguindo resistir às fórmulas já vistas em torno da figura do pedófilo sequestrador, por exemplo, não será rigoroso escrever-se que se trata de uma espécie de “Michael taxista”. Valência número dois: a relação amor-ódio, variante do síndroma de Estocolmo, que se estabelece entre aquele e a criança que vamos ver crescer sob apertadíssimo regime de cativeiro.
Referidas as valências, faltam as fraquezas, que começam na ausência de ideias visuais que adensem os vários conflitos interiores e exteriores que estão em jogo, sempre entre as mesmas quatro paredes. Ao mesmo tempo que Lynch vai escondendo a realizadora que não é por trás da interpretação de D’Onofrio ou de uma sucessão de “situações narrativas” minimamente “cativantes”, Chained vai encurtando a corrente até ao limite em que este filme anémico já não tem nada para dar. Os seus últimos minutos reservam um twist abstruso que sublinha a bold a constatação que durante, ainda assim…, uma boa quantidade de tempo tanto se adiara: por muito esforçado e “eficaz” que seja, isto é mesmo, apenas e só, “um filme de Jennifer Lynch”. (LM)