Cinco dias de intensas visões que merecem agora o devido check out pelos correspondentes walshianos Ricardo Vieira Lisboa (RVL) e Luís Mendonça (LM).
Mãos ao alto! Contam-se pelos dedos de uma mão (cujo o mindinho foi decepado) os bons filmes que vi neste MOTELx 2013, mas a verdade é que deixei escapar alguns dos outros dedos [nomeadamente The Conjuring (2013) e You’re Next (2011)] – foram com a água do banho de um bebé demoníaco. Ao todo foram 15 sessões e outros tantos filmes (entre curtas e longas) que me passaram pela vista nesta fim-de-semana prolongado. Prendi-me nas secções de homenagem (a Hooper e a Nakata, que a Santareno já tinha dado o meu tempo) deliciando-me com os massacres do cara de couro (ou cara de coiro?) e intermezzo hitchcockiano gore de nome Eaten Alive ou com a descoberta de um realizador como Nakata que não é só um marco no cinema de terror moderno, é um homem inteligente e sensível (cujos filmes traduzem isso) e que tive a oportunidade de entrevistar – juntamente com o meu companheiro nos crimes cinéfilos, o Luís Mendonça. Uma entrevista que sairá dentro em breve.
Dos dedos que restam consigo contar quatro filmes que deixam cicatriz, umas mais profundas que outras, está bem de ver. A arranhar apenas (mas que é bem capaz de infectar) está a curta vencedora do prémio YORN MOTELx 2013 que coube a O Coveiro (2012) de André Gil Mata, um filme de encantamentos, e encantado também por uma ideia de cinema que junta ao verso (burtiano? – com a voz de Luxúria Canibal) uma animação que deve tanto à iconografia vitoriana como aos realizadores primitivos como Méliès – nas soluções visuais de feira, na animação naive e no romantismo pantomimeiro. A outra chaga (mas é apenas um rasgo ligeiro onde os olhos não alcançam) provém de Cheap Thrills (2013) num jogo que ganha apenas pela limpeza de uma realização que se anula em detrimento do inteligente texto e dos belíssimos actores. Mais fundo e numa zona exposta está We Are What We Are (2013), filme de uma sensibilidade que não se esperava num festival como este e só revela que Jim Mickle é uma das grande promessa do cinema de género americano. Mas a fissura que marcou esta edição do festival na sua secção mais preenchida (o Quarto Escuro) foi The Lords of Salem (2012) um verdadeiro corte através do rosto – quase como o do Snake Plissken. Tal como Plissken, depois do filme só me apetecia fumar um cigarro (eu que não fumo e nunca fumei) porque o trabalho de ver o filme, de lutar contra a ridículo da empresa de Rob Zombie e de vencê-lo é tão extenuante… foi preciso deixar-me levar na banhada religiosa e receber os murros de um filme que punchs back. (RVL)
Esta foi uma edição do MOTELx que impressionou pela adesão do público: muitas sessões completamente esgotadas e um espírito festivaleiro que, neste momento, não é replicado em mais nenhum festival de cinema em Lisboa. Parece-me que a organização tem dado uma resposta muito positiva a alguns desafios capitais que, desde a primeira edição, tem vindo a enfrentar para que o MOTELx se afirme como um festival de cinema “a sério”. O primeiro desafio passa por manter o espírito leve e, nesse sentido, ir sabendo como levar a sério (com nítido amor à arte) aquilo que nem sempre é para se levar a sério (e muitos filmes provam-no pelo seu interesse apenas, mas este “apenas” vale muito…, festivaleiro). O segundo grande desafio, que tem sido respondido com enorme sucesso, é promover o terror como um género para todos os cinéfilos e não apenas como um fenómeno cultural guetizado em grupos metal, hardcore ou góticos. O público deste festival é cada vez mais abrangente, o que só prova que o terror é um assunto que não só pode como, mais que isso, deve tocar a todos os amantes da Sétima Arte. A verdade é que não há nada de subcultural no género do terror. Como sabemos dos relatos da primeira projecção de L’arrivée d’un train à La Ciotat (A Chegada de um Comboio, 1896) dos irmãos Lumière, o nascimento do cinema fez-se acompanhar de uma banda sonora natural composta por gritos lancinantes de um auditório que julgava que, como em Ringu (1998), o objecto no ecrã (um comboio a vapor e não Sadako) ia invadir a sala e desfazer em papa os corpos dos primeiros, e mais desprevenidos, mirones do cinematógrafo.
Várias sessões deste festival devolvem-nos à dimensão primordial do cinema, à sua capacidade para electrificar toda uma plateia, assustada com o que vê na altura no ecrã e com medo de, fora da sala, vir a confirmar a veracidade (a autenticidade) da ficção. Nesse sentido, o MOTELx é um local privilegiado para respondermos a essa questão básica que é: será que o cinema ainda funciona, através dos seus truques e magias ancestrais, como fonte de inquietude e terror? Mais de cem anos sobre a primeira projecção, pode-se dizer que sim, que o cinema ainda se cumpre ontologicamente nessa função de nos perturbar. Verdadeiramente, a missão do MOTELx cumpre-se por nos dar a ver a intemporalidade dessa constatação, isto independentemente de gostarmos mais ou menos do género em questão. Em certa medida, o grande propósito – talvez paradoxal – deste festival é aniquilar a própria ideia de género e dizer que o terror está em todo o lado, que dos Lumière a James Wan a matéria de horror e encantamento está na possibilidade de acreditarmos no visível e no invisível, na possibilidade de acreditarmos que estamos numa sala de cinema e na possibilidade de acreditarmos que a sala de cinema habita a nossa cabeça, “local” sempre imprevisível e – o leitor politicamente activo sabe do que falo – tantas vezes amaldiçoado. Por tudo isto, não se espantem os leitores mais cépticos se o MOTELx 2014, mimando o melhor título que passou em estreia nesta edição, lhes endossar aquele recado “à procura da magia”: “os próximos serão vocês”. (LM)