Assim de repente não tenho memória de um filme que, como Performance de Nicolas Roeg e do escritor-realizador escocês Donald Cammell, transmita hoje ao espectador, mais de quarenta anos depois da sua discretíssima estreia, uma ideia de um envelhecimento e de uma frescura simultâneas.
Sobre o primeiro talvez nem valha a pena perder muitas linhas uma vez que salta a vista no retrato do decandentismo blasé da cena rock, psicadélica, underground, free love da Londres dos anos 60. Mas mesmo algumas ideias da montagem em modo caos que marcam não só o estilo de Roeg, como indiciam uma vontade de ligação ao cinema experimental (as influências de Kenneth Anger) e mesmo as reverências new wave com a relação rock-gangster como modelos libertários, a excentricidade literária dos diálogos, o pente de Chas numa versão dura de Belmondo. E nessa datação prolonga-se a rede de referências dessa contracultura que vão desde o satanismo de Aleister Crowley (o pai de Cammel tinha escrito uma biografia do ocultista) até Artaud, passando por Burroughs, Jorge Luis Borges e, claro, o próprio espaço wild e dandy que os Stones ocupavam e de que Mick Jagger é aqui o epicentro.
Se tudo isto ajuda a explicar o culto (mesmo na dimensão satânica do termo), o que mais inquieta em Performance explica-se a partir de uma das suas tiradas mais célebres. Turner diz: “The only performance that makes it, that really makes it, that makes it all the way, is the one that achieves madness”. Se a loucura é tida como o espaço da absoluta solidão (de uma total separação do mundo que por ser total abole qualquer espaço de fronteira e tudo une), então essa performance, sobretudo a que nascia na arte precisamente nos anos 60 como um sintoma da decadência da aura de separação entre artes, de uma arte só e séria, é tida como a construção de um espaço de indistinção e insanidade.
Desta forma, o filme de Roeg está sempre a jogar o jogo do espelho, do duplo como confusão de identidades para promover a desconstrução e a homogeneidade de todas as realidades: a performance sexual não é diferente da performance artística, a violência do gangster Chad não é diferente da violência rock de Turner, a alucinação pelas drogas não é diferente da realidade, o viril e o másculo de James Fox precisam de uma peruca, o feminino de Mick Jagger sente a atracção pela luta e pelo suor.
Como diz Harry Flowers, o chefe de Chas, é uma operação de merging a que está em processo, do pequeno “negócio” no grande negócio, do masculino no feminino, de uma visão do mundo noutra, de um Chas que só foge realmente se se transformar em Turner. Esse “turning” expande-se no interior do próprio filme, como se um filme de gangsters alojado na cave olhasse e fosse visto por um musical no andar de cima, mas também pelo ambiente psicadélico que toma por vezes uma dimensão aterrorizadora (as sombras, os objectos, a figura alta e frankensteiniana de James Fox ante a pequena criança da casa). O terror e o suspense viriam a ser uma realidade, quer para Cammel com o seu próximo filme, apenas sete anos mais tarde, Demon Seed (A Semente do Demónio, 1977), quer para Roeg em Don’t Look Now (Aquele Inverno em Veneza, 1973).
É nestas passagens – de género, identitárias, sexuais e fílmicas – que Performance é ainda hoje performativo dessa forma de pensar em transição, em relação. Nos anos 60 era preciso um cogumelo para mostrar este estado de coisas. Hoje os “cogumelos” estão aí.
Performance é exibido dia 26 de Setembro, quinta-feira, às 19h00, Cinemateca Portuguesa- Museu do Cinema em Lisboa, na sala Dr. Félix Ribeiro.