Hoje é um dia importante por uma variedade de motivos: primeiro dia do Outono e, como tal, primeiro dia sem Verão – ainda que a temperatura engane as nossas medidas de tempo; dia da apresentação da publicada tese de José Sócrates (a ironia é que esta seja sobre a tortura); dia marcado para o regresso aos mercados pelo recém-falecido político Vítor Gaspar. Enfim, uma panóplia de eventos que me levam a querer esquecer (querer para crer) o dia de hoje e a concentrar-me nos dias que acabaram de passar, os dois primeiros dias do Festival Internacional de Cinema Queer – Queer Lisboa 17.
E falar dos dias que passaram é falar dos filmes que vi. E falar desses filmes é falar de E Agora? Lembra-me (2013) de Joaquim Pinto, filme que venceu o prémio do júri no Festival de Locarno, assim como o prémio da crítica no mesmo festival, e que se debruça sobre os dois anos de tratamento para o vírus da hepatite C a que o realizador se submeteu. Ontem foi a estreia nacional do filme, a primeira vez que os portugueses puderam vê-lo numa sala nacional – e a sala do São Jorge estava cheia, bastante cheia. Escrever sobre E Agora? Lembra-me é uma tarefa complicada por ser ele um filme tão pessoal e um testemunho de vida tão sentido. Qualquer coisa que se possa dizer corre o risco de retirar em vez de acrescentar. Correndo o risco de fazer isso mesmo, atrevo-me a escrever.
A dança convulsa da vespa
Antes mesmo de ver o filme, mais ou menos desde o momento em que pela primeira vez ouvi falar do projecto de Joaquim Pinto, interroguei-me sobre um pormenor do título do filme. Interrogação essa que agora não me parece tão de pormenor. O filme tem como título internacional What Now? Remind Me. No entanto, o que está escrito em português poderia ser também traduzido por What Now? Remember Me. Esta é a dúvida que me aflige desde o primeiro momento, se aquele ‘lembra-me’ é um “recorda-me”, no sentido de “não te esqueças de mim”, ou um “relembra-me”, no sentido de “dá-me uma direcção”. Ou seja, cada uma destas versões dá um tom diferente ao filme, o “recorda-me” transforma-o num filme-testamento, numa despedida filmada, no diário dos últimos dias, o “relembra-me” faz exactamente o oposto, abre uma nova janela depois do agora, inicia um novo rumo. Esta é a dúvida que me aflige e estou em crer (querer para crer) que é também a dúvida que atravessa todo o filme.
A este propósito, há um par de planos (separados por uma boa porção de outras coisas) que chocam pela sua força simbólica e pelo seu poder emocional. O primeiro plano é um enorme close-up de um vespa que morre. Ela estremece a cada estertor, as patas agitam-se em repelões fortes e curtos, dança uma dança convulsa. Pinto decidiu filmar este longo plano e colocar no fundo uma trilha jazzística, onde a morte do animal vira um bailado contemporâneo. Como os enforcados que mexem os pés (na dança da morte), também a vespa se agita. O que parece evidente é como, através dos processos puramente fílmicos (como seja a banda sonora), o filme inventa beleza no acto de morrer – como se, mesmo no partir, houvesse qualquer coisa de encantador, qualquer coisa de criativo (nesse que é de todos o menos criativo dos actos humanos). Assim, aqui está presente uma ferramenta de auto-interpretação para a versão do filme-despedida: o próprio filme é como a dança convulsa da vespa, um último acto criativo. No entanto, há um segundo plano com uma vespa (a mesma?), desta vez uma viva da silva que mordisca o hambúrguer que Nuno – o marido de Joaquim – come, enquanto almoçam junto à clínica espanhola onde o realizador esteve a fazer o tratamento experimental para o HVC. A vespa morta surge na última ida à clínica (agora renascida), no final do tratamento. Quando os efeitos secundários do interferão (e das outras drogas) já começam a desvanecer. Renasce a vespa quando Joaquim ganha nova esperança (ainda que o resultado do tratamento só tenha sido conhecido 3 meses depois do final da rodagem e o realizador o tenha deixado propositadamente em aberto) e, ainda para mais, regressa cheia de fome. Ou seja, o filme apresenta-se no seu lado de recomeço, no seu lado esperançoso e solar.
Disto está consciente Joaquim Pinto quando começa o filme com um sorriso (porque há que manter a esperança) – uma radiografia dos seus dentes destruídos pelo tratamento tóxico. Desta dualidade surgem episódios, frases, gentes, animais, livros, música, filmes; enfim, uma vida cheia de referências num filme igualmente cheio – como os caixotes de tralha que o realizador vai esvaziando ao longo do filme (porque quer recordar uma vida e porque quer deixar as coisas em ordem antes de partir).
Outra dúvida
No sábado, os filmes foram outros: Concussion (2012) e Freier Fall (Free Fall, 2013). O primeiro é uma espécie de Belle de jour (A Bela de Dia, 1967) lésbico, onde uma dona de casa deseja uma vida de prostituta – para fugir à rotina da lida doméstica. O filme, realizado pela estreante Stacie Passon, sofre de um problema de verborreia cinematográfica. A realizadora vem da publicidade e isso nota-se. A escolha de enquadramentos é completamente inconsequente com o filme: pretende-se um retrato fiel de uma relação lésbica em desmoronamento, mas a realizadora insiste em filmar as suas personagens sempre em contra-luz (dando-lhes a forma de sombra, quando o objectivo é injectar-lhes volume), isso repete-se quando filma as suas actrizes muitas vezes amputadas pelo enquadramento ou pelo recurso a planos subjectivos macabros (coloca-nos nos olhos da protagonista quando esta tem um orgasmo) ou quando filma uma sequência de banho num God’s eye view, sem que isso sirva para acrescentar ou dizer o que quer que seja. Passon desmultiplica-se em ideias de cinema sem que elas tenham cinema na sua motivação. A certa altura, uma personagem discute a diferença entre caqui e bege (mas é o cinzento que a deslumbra), a realizadora filma tudo em cinzentos mas a verdade é que não faz mais que um filme caqui (e sim, a aliteração é propositada).
Quanto a Freier Fall, o resultado é ainda mais pobre, já que aqui nem ideias bacocas de cinema temos. Um filme de domingo à tarde, se ao domingo à tarde passassem filmes (que agora temos umas festarolas histéricas propulsionadas a pimba), de temática gay. Numa academia de polícia, surge um romance entre um closeted gay e um straight com curiosidade. Ao fim de 5 minutos de filme, já temos o primeiro beijo roubado e claro que o macho com mulher e filho a caminho aceita muito bem os intentos do colega, tudo prossegue como esperado com uma foda à chuva e uma montagem musical de meninos a rirem-se muito todos nuzinhos e muitos suspiros. Depois, de repente, o outro apercebe-se de que se calhar é gay – coisa que a paixão por outro homem ainda não tinha dado a entender – e então vem a depressão, as drogas, as discotecas – numa descida decadente que é tão limpinha e previsível que parece uma visita de estudo. Enfim, não há paciência para filme cujo único trunfo é uma história bem contada, mas menos paciência há quando nem isso acontece.
A “outra dúvida” que anunciei no subtítulo prende-se com o motivo que leva à selecção de filmes destes para festivais como Sundance ou a Berlinale – e para este Queer Lisboa. Filmes que, fora a sua temática, nada têm que lhes valha. E aqui proponho uma explicação, que tem que ver com o olhar. O cinema queer no seu pior formato é aquele que não se prende com a sexualidade do realizador nem com a história que trata, mas sim com o “olhar queer”. Por exemplo, o último filme de Brian De Palma – Passion (2012) – é evidentemente sobre uma relação homossexual entre duas mulheres de negócios (nos limites da obsessão profissional e sexual), no entanto não foi seleccionado para nenhum festival queer nem percorreu o circuito desses filmes, isto porque a De Palma pouco interessa se as suas personagens são gay ou não; interessa-lhe sim o seu próprio cinema, as suas perversões cinéfilas e o seu gosto pela falsidade do próprio suporte (a mentira de um plano aproximado). Mas isto não interessa nem aos programadores nem ao típico público destes festivais. Fica o cinema à porta e entram apenas as boas intenções – mas felizmente enganam-se de vez em quando. É para isso que por aqui ando, à babujem dos felizes enganos.
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