Sanma no aji (O Gosto do Saké, 1962) é a derradeira obra de Yasujirô Ozu, não constituindo porém, ao contrário do que defenderam vários teóricos do cinema japonês, aquilo a que vulgarmente se chama um filme testamento. À data da sua morte, Ozu estava inclusivamente a desenvolver um novo projecto com o seu colaborador de longa data, Kôgo Noda, que viria a ser realizado, sem qualquer brilho, por Minoru Shibuya em 1965: Daikon to ninjin (Rabanetes e Cenouras, 1965).
A diegese deste filme é mais uma prova utilizada pelos que lêem a obra de Ozu como uma reescrita constante da mesma história que, através dos vários capítulos que se sucedem, apresenta apenas mudanças circunstanciais de enfoque. Desta maneira, se alguns temas explorados pelo cineasta nipónico povoam invariavelmente todos os seus filmes (a desagregação da família tradicional japonesa, o confronto moral e cultural entre a civilização oriental e a ocidental, o avanço do consumismo, etc.), eles surgem com importância desigual em todas as obras. Neste sentido, a associação de Sanma no aji a alguns filmes específicos do período anterior de Ozu, sobretudo a Banshun (Primavera Tardia, 1949), deverá ser considerada menos como um remake do que como uma aproximação no equilíbrio temático. Se, por um lado, o mecanismo do remake não é estranho ao trabalho de Ozu, que a ele recorreu quando adaptou o seu Ukikusa monogatari (Uma História de Ervas Flutuantes, 1934) para realizar Ukikusa (Ervas Flutuantes, 1959) ou modernizou o seu Otona no miru ehon – Umarete wa mita keredo (Eu Nasci, Mas…, 1932) para elaborar Ohayô (Bom Dia, 1959), aquilo que une Sanma no aji e Banshun é a hierarquia das preocupações.
Em ambos vemos Chishû Ryû interpretar um viúvo que deve escolher entre a felicidade e independência da sua filha ou uma velhice confortável. O desenvolvimento da narrativa sublinha duas inquietações de Ozu, indissociavelmente interligadas: o impedimento natural à coetaneidade das gerações e a rigidez da organização familiar do seu país. Em relação ao primeiro aspecto, são extremamente sintomáticos os diálogos com o Sr. Horie, uma personagem que, ao contrário de todos os viúvos do cinema de Ozu, fez um segundo casamento com uma mulher muito mais nova. A situação dá origem a alguns gags que, apesar da ligeireza introduzida pelas invulgares alusões directas a medicamentos de manutenção da virilidade, contribuem para o retrato de alguém que tenta, através de meios artificiais jocosamente criticados pelos amigos, unificar duas gerações. O Sr. Hirayama (a personagem de Ryû), pelo contrário, não quer voltar a casar-se e, corajosamente, oferece a filha ao matrimónio. Fá-lo, todavia, de acordo com uma postura que Ozu sabe estar ligada à conduta moral do Velho Japão, e, logo, em declínio. O pai de Michiko é, desta forma, uma personagem já anacrónica, dolorosamente levando a cabo um sacrifício pessoal, mas também histórico. O despojamento do acto é, numa leitura sinedocal, a do Bushidô que, consciente do seu ocaso, dá lugar a uma nova ordem, profundamente influenciada pela cultura americana. Dela estão presentes no filme não só as novas soluções conjugais, como a representada pelo Sr. Horie, mas também os tacos de golfe e o frigorífico, originalmente tão exógenos à cultura japonesa, que Koichi e Akiko tanto desejam adquirir (e que ecoam, inevitavelmente, a televisão conquistada pelas crianças terroristas de Ohayô).
A segunda preocupação de Sanma no aji, por sua vez, está ligada à inflexibilidade dos papéis familiares no Japão, e sobretudo, neste caso, à impossibilidade de acumulação do papel de filha e de mãe ou de filha e esposa. Na mundividência do Sr. Hirayama, não há qualquer possibilidade de escapar a esta organização e é com grande espanto que ouve o filho mais velho explicar-lhe que, por enquanto, não iria ser pai por razões económicas. A personagem lida com estas duas situações adoptando um estoicismo simultaneamente gentil e determinado, reminiscente dos valores preconizados por Inazo Nitobe no seu manual de ética samurai, Bushido: The Soul of Japan. Fá-lo acelerando as situações de maiores tensão emotiva, como, por exemplo, na extraordinariamente elíptica cena do casamento, onde corta a palavra da filha para evitar uma materialização verbal da dor da separação. A quebra da personagem dá-se, precisamente, na sequência final, onde, embriagado pelo uísque e pelas anacrónicas marchas militares imperiais, assistimos a um duplo desmoronamento: um de cariz universalista, o de um pai que liberta definitivamente a filha amada da sua protecção, e outro de carácter histórico, o de uma geração que, quinze anos antes, encontrara uma motivação forte e directa para a sua vida na Segunda Guerra Mundial e que, agora, perdera por completo o rumo face à derrota e à presença americana. O descascar da maçã de Banshun é, aqui, a figura de Ryû solitária na sua casa que, apesar de ainda habitada pelo filho mais novo, está emocionalmente deserta. Como simultâneo aconchego e tormenta, acompanham o Sr. Hirayama uma série de planos vazios, os célebres pillow shots de Ozu, da casa tradicional japonesa despovoada.
No entanto, se estes temas são, todos eles, mais ou menos explorados nos filmes anteriores, o que é que Sanma no Aji acrescenta à obra de Ozu em relação a Banshun? Em primeiro lugar, a cor. Desde Higanbana (Flor do Equinócio, 1958), o mestre e o seu director de fotografia deste período, Yûharu Atsuta, desenvolveram um sistema cromático ímpar, que pode ser equiparado ao aplicado nos projectos de alguns (poucos) realizadores seus contemporâneos, como Tati ou Godard. A estilização oferecida por estas soluções contribuiu para a criação de um mundo paralelo, suspenso na História, onde Ozu pôde orquestrar, sem o fardo da verosimilhança, os deslizamentos geracionais que tanto lhe interessavam. Este uso da cor para a redução à essência das interacções entre as personagens ressoa, aliás, uma técnica homóloga da banda desenhada franco-belga, muito frequente na produção dos autores da ligne claire. Há ainda um substrato político no aproveitamento das cores estridentes, ao serviço do esboço de uma sociedade em modificação por via da influência americana. Assim, são os modernos néones das ruas que recebem as cores vivas no filme, enquanto que os meios íntimos e menos manipulados pelas culturas exógenas respeitam as cores mais discretas do “Velho Japão”. As paredes da casa não são, contudo, suficientemente opacas para impedir a penetração de elementos exteriores: aos próprios símbolos da cultura tradicional são atribuídas cores novas, conferindo-lhes desta forma um carácter alienígena.
Ver um filme de Ozu a cores, não é, consequentemente, como ver um dos seus filmes a preto e branco que tivesse sido colorido. Tomemos o exemplo de um dos seus ex-líbris imagéticos: os planos vazios com a chaleira onde a água ferve. Se fosse possível fazer uma associação instintiva à cor deste utensílio nos filmes a preto e branco de Ozu, vermelho primário não seria certamente uma das primeiras escolhas. O facto de esta cor ser praticamente omnipresente nos últimos filmes do cineasta e de estar associada a vários objectos caseiros (como os tachos e regadores em Ohayô e as caixas de correio de Ukigusa) pode provocar um sentido de estranhamento, o mesmo que se poderá porventura experimentar perante a modificação da cultura nipónica depois da Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, a gramática tão idiossincrática do cineasta (com os afamados planos “olho-de-cão” em ligeiro contra-picado, a quebra da regra dos 180º, a rejeição dos movimentos de câmara e efeitos de transição, etc.) está mais cristalizada do que nunca em Sanma no aji, permitindo uma multiplicação de funções dos elementos já presentes em Banshun. Os pillow shots, em particular, assumem um carácter descritivo que não existia nos filmes anteriores, dando ocasião a uma delineação radicalmente minimalista de cenários e personagens. A fábrica, por exemplo, é-nos dada pelo gabinete do Sr. Hirayama e por dois impalpáveis sopros cinematográficos do exterior que lhe finalizam o retrato.
A última longa-metragem de Ozu saiu nas salas japonesas em Novembro de 1962, dois anos depois dos primeiros filmes de Nagisa Ôshima e Shôhei Imamura. Formatado num extemporâneo 4:3 e aparentemente tão distante das grandes questões políticas e sociais do momento, como as manifestações contra o Tratado de Segurança Estados Unidos-Japão, Sanma no aji foi, como de costume, vivamente criticado pela nova geração, já apelidada de “Nuberu Bagu” à imagem da Nouvelle Vague francesa. Estes cineastas, não obstante, reveriam anos depois a obra de Ozu e, mais ou menos orgulhosos, viriam a admitir que, na sua paixão contestatária, tinham teimosamente rejeitado ver, em Sanma no aji, não só uma visionária peça cinematográfica como também uma sublime coreografia emotiva, fruto de um conhecimento brilhantemente agudo, porventura único na História do Cinema, do funcionamento do Homem enquanto ser afectivo.
Sanma no aji estreia de 5 de Setembro no Espaço Nimas, em Lisboa, e no Teatro Campo Alegre, no Porto.