Até há pouco tempo ao nome de Bernardo Santareno não havia em mim qualquer correspondência à obra, nem sequer a nenhuma figura; era apenas uma dessas referências sem corpo que o ouvido apanha sem querer e a memória guarda sem vontade. A pausa de veraneio serviu, entre outras coisas, para dar corpo ao nome e obra ao corpo. Li duas peças de Santareno, A Promessa e O Crime da Aldeia Velha, como aperitivo para os filmes do mesmo nome (ou talvez seja o caso de as peças serem o prato forte e os filmes a sobremesa), com realização de António Macedo e Manuel Guimarães, respectivamente.
Para um amador de cinema, ler peças de teatro é um exercício curioso de imaginação (no sentido em que se criam imagens para acompanhar as palavras). É inevitável ir conhecendo as personagens e, a cada fala, encontrar um actor ou uma actriz que se enquadra naquelas palavras, naquelas situações, naquele corpo vazio à espera de enchimento.
Daí que enquanto lia O Crime fui imaginando quem podia interpretar as gentes que Santareno criou: Joana é uma mulher com pêlo na venta, mulher que recusa qualquer prisão (o amor, a religião, a afeição dos outros – nada disso lhe interessa) e lindíssima; pensei pois em Virginia Mayo – especialmente a de Colorado Territory (Golpe de Misericórdia, 1949) do santo padroeiro da pala – mas se o exercício é para ser levado adiante resolvi-me escolher apenas corpos vivos e nacionais para preencherem as figuras que a leitura me ia introduzindo. Tive então que recorrer à encarnação lusa de Mayo, a belíssima Catarina Wallenstein [porque a direcção de actores já estava feita por Botelho em Anquanto la Lhéngua fur Cantada (Enquanto esta língua for cantada, 2012)]. Para Rita achei que Maria João Luís seria ideal num jeito meio dorido, meio perverso, entre a raiva e a ruindade; quanto à ti’Zefa pareceu-me que Isabel Ruth era perfeita [com uns pozinhos da inspectora de Viagem a Portugal (2011) ] e para Teresa e Margarida pensei em Maria João Pinho (pura, puríssima mas tão hipnótica que assusta) e Joana Verona (com aquele sorriso torcido e aquele olhar de anjo caído). O difícil do jogo foram os homens. Para o padre Júlio queria um Pedro Hestnes jovem [o de Xavier (1991-2002) talvez] mas isso quebrava as regras por mim impostas, daí que tenha optado por João Meireles (tão delicado…). O padre Cláudio, mais velho, ficou em águas de bacalhau, pensei em Luís Miguel Cintra mas a figura é demasiado imponente e depois achei que seria de aproveitar o padre Mozos de A Vingança de uma Mulher (2012). Para acabar com a brincadeira faltavam Rui e António, os dois pretendentes de Joana, o primeiro fidalgo o segundo camponês, fiquei-me por Camené como o camponês e para Rui assenta que nem uma luva o fidalguinho Ricardo Trêpa.
Com isto me entretive durante as tardes nubladas (nas outras menos, que a praia não convida a este tipo de brincadeiras). Claro que todo este edifício se desmoronou quando vi o filme, O Crime da Aldeia Velha (1964), de Manuel Guimarães. Diriam que para nada serviu tal jigajoga e talvez tenham razão; estou em crer, no entanto, que é no acto de pôr carne nas palavras que se faz o cinema e, como tal, não só de filmes se faz o cinéfilo – há que dar músculo ao olho e com ele ver o que fica por mostrar ou por escrever.
Talvez seja melhor deixar-me de considerandos mediúnicos e passar à matéria de facto, que são as obras de Santareno. Feitas as leituras, ponho-me todo pimpão por ter encontrado uma série de recorrências entre as duas peças: frases repetidas, ideias reutilizadas, expressões idênticas e por aí fora. Cedo acabou a minha alegria quando li uma análise de Luiz Francisco Rebello à obra do colega, onde compila uma série de dizeres de variadas origens que frisam esta mesma ideia de reiteração: “florescências sucessivas da mesma intenção básica”, diz Óscar Lopes, “obsessivas repetições estilísticas e formais” escreveu Deniz Jacinto, “obsessiva repetição temática” referiu o recém-falecido Urbano Tavares Rodrigues e Sábato Magaldi observou que “temas, personagens e situações semelhantes voltam com frequência às suas peças”. Portanto, não só não descobri a pólvora como cheguei atrasado à festa.
Não custa, no entanto, dar conta de algumas dessas piscadelas de olho entre as duas obras referidas. A verde têm pedaços de falas de A Promessa e a vermelho estão as de O Crime:
– a frustração sexual como escolha ou imposição, a virgindade como estado de liberdade
MARIA DO MAR: Vergonha? Até hoje, ainda não fiz nada de que me possa envergonhar. (Pausa.) Até hoje…
JOANA: Fraquezas? Quais fraquezas, ti’Zefa?! Com o meu corpinho nunca nenhum homem mediu as forças, nenhum!
– o nojo das protagonistas aos homens
MARIA DO MAR: (…)Para que me hei-de eu esfalfar a arrumar esta casa? Vem vossemecê e espalha tabaco (…); o Jesus coitado tropeça aqui, tropeça acolá… (…); quanto ao zé, pode bem o esterco chegar-lhe ao nariz, que ele não dá por nada!… Homens, homens, homens! Nesta casa só há homens…
JOANA: Feio, feio, feio como os sapos da terra! Todos os homens são feios, todos são ruins como a peste… Deles até o cheiro envenena!…
– o repúdio de Deus (em meio fervoroso)
SALVADOR: Tu, mulher, tu é que já não és a mesma: não temes a Deus, perdeste a fé, já não respeitas nada…
JOANA: Se tivesse a certeza que Deus perdoava a esse maldito… eu nunca mais acenderia uma vela, nunca mais rezaria um padre-nosso, nunca mais… olhe, eu antes me queria com o demónio!
– o meio rural pobre
2ª VELHA: A minha rica filha!… Tanta fominha que eu passei para a criar…
FLORINDA: Quantas vezes – tomara moedas de dez tostões! – eu tirei da minha boca pra… Mas pronto! Não quero lembrar-me mais desses tempos.
– as histórias fantásticas, os contos de terror
MARIA DO MAR: Há quem diga que, quando tu nasceste, um anjo voou, durante mais de uma hora, lá em baixo, sobre o mar. Há, ainda hoje, quem seja capaz de jurar que esse anjo entrou aqui nesta casa: quando entrou, era negro e feio; depois, quando saiu, vinha branco de luz…
CUSTÓDIA: Dizem que… há quem tenha ouvido… eu, cá por mim, nunca! Mas o ti’João Melro jura e trejura que, mais duma vez, noite alta, quando adregava de passar aqui em frente desta casa… Credo, Jesus Senhor!, Até se me arrepelam as raízes da alma! E olhem que o ti’João Melro não é homem pra embustices, não senhora!… Diz que se ouvia aqui o choro de criancinhas, tão claramente como eu agora a oiço a vossemecê ti’Zefa!…
– as pragas e as cerimónias pagãs
Quando bater a meia noite… Ali, deixarei um sapo grande… Grande, com ervas daninhas… Bem cheio o ventre aberto! Três vezes hei-de furar… Os olhos do gato preto… Preto e vivo! Com sangue menstrual… Pela primeira vez florido… Em útero virgem… Faremos naquela porta… O sinal da cruz.
Plas três pessoas da Santíssima Trindade… Plos quatro Envangelistas, João, Marcos, Mateus e Lucas… Plas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, que tanto sofreu pra te quebrar as forças… Plos seis círios bentos, que iluminam a sepultura de Nosso Senhor Jesus Cristo… Plos sete sacramentos, pla sagrada Eucaristia… Plas oito bem-aventuranças… Plos nove meses que a Virgem Maria trouxe o ventre o seu amado filho, Jesus Cristo… Sai desse corpo, Satanás!
– os ditos repetidos
1ª VELHA: Acudam! Hei-de quebrar-te os ossos!… Aqui, de el-rei!…
CUSTÓDIA: Acudam! Acudam! Aqui d’el-rei!…
—
LABAREDA: Eh, gata brava!… Queres brigar também comigo?… Quieta, quietinha… Gata… gatinha!…
RUI: É assim… assim mesmo que ti ficas linda, Joana! Assim assanhada…
—
JOSÉ: Aquele não volta a dar coca às fêmeas dos outros.
RITA: Os teus olhos nunca mais dão coca aos homens!
—
SALVADOR: Mas tu gostas desse homem…
MARIA DO MAR: Isso é cá comigo.
RUI: Gostas mais… deste?!
JOANA: Ora, ora! Isso é cá comigo!
Se não ficou bem esclarecido, eu recarrego a zarabatana: ambas as peças têm como personagem principal mulheres (Joana e Maria do Mar), ambas virgens (por imposição a segunda, por escolha a primeira) e ambas revoltosas com o estado de coisas (Joana repudia os sucessivos intentos masculinos sobre si – numa espécie de emancipação rural onde não há sutiãs para queimar, apenas carne humana, a sua – e Maria do Mar queixa-se exactamente do oposto, que o marido não cumpre com a sua função cobridora). Ambas anseiam uma liberdade dos homens (quer seja porque estes lhes causam repulsa – ou no caso de Maria do Mar, porque o seu homem lhe causa repulsa) e por isso mesmo, por uma ânsia de liberdade da instituição familiar, são condenadas pela aldeia (rural ou piscatória) que através das velhas (sempre muitas e em A Promessa nem sequer têm nome) manifestam esta condenação do comportamento rebelde e revoltoso da ordem natural das coisas (de forma mais ligeira em A Promessa e nas consequências devastadoras de O Crime – como o título desde já anunciava). É curioso que sendo ambos os textos marcadamente anti-religiosos (o que provocou à data da estreia de A Promessa com encenação de António Pedro em 1957 grande escândalo, e levou à saída da mesma de cena pouco tempo depois), ambos retratam padres e sacristães com pouco poder sobre suas comunidades (até poderia dizer impotentes – nos dois sentidos) onde o enraizamento de certos cultos pagãos (as bruxarias num peça, as promessas noutra) é de tal forma opressivo que obscurece o poder pacificador do pároco, condenando assim as personagens a sofrimentos escusados.
Estou em crer que das duas, A Promessa – como peça de estreia – demonstra várias dificuldades de escrita nomeadamente no facto de ter a necessidade de tornar sempre explícitos (através da figura de Jesus, o irmão cego de José, marido de Maria do Mar) os simbolismos e subentendidos que o texto deixava no ar (sempre de forma, já de si, bastante evidente). Por exemplo, já não bastava o facto de Maria do Mar estar atraída por Labareda (o cigano que aparece na vila, baleado pela guarda numa operação contra o contrabando), torna-se explícito o simbolismo dos seus nomes revelando que os opostos se atraem – e como ele é de fogo e ela é de água…
Interessante é perceber que, sendo as personagens virtualmente as mesmas de peça para peça (fora a mudança dos nomes), deixa de existir um Jesus explicativo em O Crime (o que é sintomático do aprimoramento de Santareno) e Labareda funde-se com Maria do Mar para dar origem a Joana – daí a sua recusa do sexo e dos homens, visto que na sua construção é um homem e uma mulher que Santareno toma por base. Isso é notório, entre outros aspectos, pelo caso dos olhares tresloucados (que ambos partilham)
2ª VELHA: Rapariga para quem ele olhe, assim, com o lume todo no olhar…
1ª VELHA: Nunca mais tem sossego: não come, não bebe, não dorme… Passa as noites em claro, volta e mais volta!… É o que dizem…
ZEFA: Homem que ela fita bem, na menina dos olhos, é homem perdido: nunca mais a larga, até tresloucar… ai, até morrer!
ou pelo facto de ambos provocarem no sexo oposto um rebuliço inexplicável
1ª VELHA: Vaidoso! Sabes muito bem que tens todas as moças da vila na rede…
CUTÓDIA: E olhem que não faltam rapazes aqui à Joana!…
e se isto não fosse já bastante, acontece que Labareda era já caso para especulação das velhas quanto ao seus poderes metafísicos, o que é o tema fundamental de O Crime,
1ª VELHA: Até ouvi dizer que ele [Labareda] é bruxo, que tem mau olhado…
Não me querendo demorar mais sobre a obra de Bernardo Santareno – que quem está desse lado lendo interessa-se mais por cinema do que por teatro, suponho. Convirá referir mais um aspecto que Luiz Francisco Rebello menciona: a obra do autor pode ser dividida em duas partes simétricas, a inicial, que inclui as primeiros dez peças (de 1957 a 1962) num estilo mais tradicional/aristotélico e as 9 peças seguintes (1966 até à morte do autor em 1980) num estilo épico/brechtiano. As duas peças em causa pertencem ao primeiro período e tiveram representações, ainda que atribuladas. As peças da segunda fase quase nunca se viram representadas antes da revolução e Santareno escrevia-as sem intenção de o serem (o que é notório pelo tamanho dos monólogos, mais interessados em encontrar paralelos entre a acção da peça e os tempos de então do que no ritmo e “tempo cénico”). É pois natural que, a haver adaptações para cinema do seu trabalho, estas ocorram sobre as obras da primeira fase – e assim sucedeu. Não quero com isto dizer que tanto as obras escritas na primeira fase, como as posteriormente filmadas, não escondam leituras críticas ao regime; fazem-no, só que de forma mais discreta.
Se Santareno se pautou por uma análise dos mais pobres e rurais (segundo Rebello a sua peça menos conseguida é Anunciação, em parte por decorrer em meio citadino, onde o autor não podia mostrar o seu virtuosismo na escrita da oralidade rural, “que lhe permite colher ao vivo a fraseologia mais íntima de cada personagem-chave”) esse também foi sempre o meio onde Manuel Guimarães melhor se deu [basta lembrar a trilogia ‘neo-realista’ – Saltimbancos (1951), Nazaré (1952) e Vidas sem Rumo (1956)]. Onde Santareno viu a censura das suas peças (que pouco duravam em cena, ou nunca lá chegavam) Guimarães viu-a nos seus filmes; Nazaré já havia sido cortado, ainda que pouco, mas foi Vidas sem Rumo que mais sofreu com a tesoura da política do espírito de António Ferro. Segundo o próprio, mais de metade do seu filme terá sido cortado, o que levou a um segundo período de filmagem e à introdução de uma nova actriz – é curioso que não só este seja dos seus filme aquele que o próprio Guimarães afirmou mais gostar (em 1963 numa entrevista ao Diário de Notícias) como é o único da carreira do realizador que não deu prejuízo (custou pouco mais de 500 mil escudos, já que foi filmado numa pequena habitação da Ameixoeira, sem estúdios ou subsídios); as 3 semanas que teve de exibição no Teatro da Trindade foram bastantes para que o filme desse lucro.
Por estes motivos, os dois autores estavam em perfeita sintonia para a escrita a meias da adaptação de O Crime da Aldeia Velha, com base nos diálogos originais que são preservados milimetricamente – apenas com alterações nos ambientes e na ordem, já que toda a peça decorre sempre na mesma sala e o filme passeia-se pela aldeia e seus arredores [1]. Estou em crer no entanto que este trabalho de preservação da palavra de Santareno é apenas o mais evidente sinal do trabalho que ambos construíram em O Crime: todo o filme parece um jogo com os temas, espaços e soluções teatrais; de certo modo, como se através do cinema a peça pudesse subir ao palco. Digo isto porque a utilização do ecrã largo por Guimarães [que já vinha de Costureirinha da Sé (1959)] serve, mais do que qualquer outra coisa para mimetizar o território do palco, conseguindo colocar num plano sete actores – todos visíveis – num trabalho de mise-en-scène extraordinário. Mas talvez, aquilo que mais evidencia este trabalho de transcrição seja um plano magnífico em que Joana (no corpo de Barbara Laage e na voz de Maria Barroso) é rodeada por velhas, todas vestidas de preto, tentando convencê-la a deixar-se incinerar pelo “fogo santo”. Quando esta finalmente consente (porque essa será a última hipótese de libertação daquele lugar e daquela gente – é esse o argumento definitivo que a convence – serás livre como uma pomba) a câmara recua num travelling muito lento, sendo que as saias das mulheres que a rodeiam tomam parte do ecrã até o obstruírem completamente: por um lado podemos interpretar isto como o breu que toma conta de Joana através da mentalidade tacanha dos seus conterrâneos, por outro, as saias assemelham-se (perigosamente) ao pano que encerra cada acto no teatro – Guimarães inventa um plano que tanto aprisiona a sua protagonista no terror da aldeia, como a aprisiona no próprio espaço do teatro – impossibilitando outra alternativa senão o cumprimento do texto, que como um fado, persegue a personagem até à imolação final [2].
António Macedo decidiu-se a contrariar tudo isto, invertendo o texto e as personagens de Santareno e recorrendo a métodos puramente cinematográficos – como o falso raccord, o ralenti – conquanto o filme e a peça fossem objectos apenas ligados pelo nome e por uma ideia de história. Macedo não fez uma adaptação, o créditos iniciais informam que o filme que estamos prestes a ver é inspirado na obra de Bernardo Santareno, e esta mudança de verbo esconde um mundo de diferenças e liberdades criativas (que dão também liberdade aos personagens para fugirem das formas a que estavam anteriormente obrigados) inesgotável. Maria do Mar passa de uma mulher cansada do seu homem e com vontade de se libertar daquele meio pequeno para uma boa dona de casa obediente ao marido, José que sendo sacristão é pouco cristão para com os necessitados aqui passa a ajudar o próximo em todas as circunstâncias, Jesus passa a chamar-se Mário e deixa de fazer adivinhação e interpretações escusadas, Salvador passa de velho sábio a velho bêbado, a personagem de Rosa desaparece, o padre maduro torna-se num recém chegado (e inventa-se um padre mais velho levemente diabólico) e Labareda que se parecia com um cigano torna-se num cigano com todas as letras, acompanhado por um trupe de irmãos (numa carroça de venda ambulante). O mau tempo passa a bom tempo (que deixa José partir para o mar), a Páscoa passa a festa da aldeia e o quadros final da peça (A Promessa é uma peça em três actos e três quadros) é apagado. Alguns momentos são particularmente divertidos, no sentido em que se sente o prazer provocador de Macedo em contrariar o texto de partida, por exemplo neste par de deixas (de novo a verde é o texto de Santareno e agora a azul o de Macedo):
JOSÉ: Tu não vens? [à missa]
MARIA DO MAR: Não.
JOSÉ: Vais ter comigo à igreja?
MARIA DO MAR: Vou já contigo.
Outro aspecto interessante em A Promessa (1973) é a forma como este intensifica o discurso anti-religioso (que tinha já causado sururu bastante, aquando da primeira representação do texto) ao introduzir a figura do padre mais velho (com uma voz tão própria do mafarrico que até assusta) adorador de dádivas monetárias à igreja – mesmo quando as gentes da povoação são tão pobres – e da forma como para estas a religião é uma troca de serviços. A esse propósito o novo padre profere um discurso bastante crítico: “(…) é toda a mentalidade de um povo. Quando eu vejo as promessas que a nossa gente faz todos os dias, as coisas que oferecem, os sacrifícios que fazem para obter em troca milagres compensadores, mais me parece um acto de paganismo do que um acto de religião. A maior parte das pessoas pratica a religião com quem pratica um comércio”, ao que o padre velho responde que as metáforas de Cristo eram todas à base de ideias comerciais. Esta ideia de um padre revoltoso com a sua paróquia (e mal recebido por ela) coincide com O Crime e este discurso assemelha-se a outro por parte do padre Júlio: “Aldeia Velha é hoje um lugar pagão, um sítio de escândalo, uma vergonha! Este povo (…) acredita mais em bruxas, lobisomens, mau-olhado e pragas do que no poder do Sangue Redentor de Nosso Senhor Jesus Cristo, que na misericórdia da Mãe de Deus, do que na verdade e eficácia dos sacramentos!”. Macedo quis tornar ainda mais agressivo o que era apenas suave na origem, põe os ciganos a vender falsas relíquias religiosas (com grande sucesso) e torna explícito aquilo que era subentendido no final do segundo quadro (a quebra da promessa).
Mas, se alguma coisa liga os filmes, os GNR descobriram-no faz já alguns anos: Há um prenúncio de morte (…) é a pronúncia do Norte. Os dois filmes estão cheios de uma atmosfera espessa que prediz algo de terrível – o prenúncio de morte – e isso vem quase exclusivamente pela forma como ambos os realizadores filmam o espaço dos povoações isoladas como meio onde a ignorância e a ruindade florescem – a pronúncia do norte, que poderia ser de qualquer outra parte, desde que a raiz rural se mantenha. As aberturas dos dois filmes são exemplos arrepiantes disto mesmo. O Crime começa com uma série de planos sobre os telhados da aldeia velha [certamente que Guimarães viu a curta de estreia de Fernando Lopes, As Pedras e o Tempo (1961)], uns transidos nos outros, para desembocarem numa série de outros planos das ruas da aldeia sem ninguém, ruas desertas e um travelling à frente tão lento que o poderia chamar de fantasmagórico. Por sua vez, Macedo começa o seu filme com a música de Giacometti (cujo adjectivo adequado será aterrador – especialmente na sequência de estupro na praia) e um bando de ciganos que atravessa as dunas e com o seu apito agudo anunciam a chegada aos moradores que temem sair de suas casas, as ruas de novo desertas. Esta sensação de morte por acontecer enche os dois filmes e terá sido por isso que ambos terão sido seleccionados para a última edição do MOTELx – Festival Internacional de Cinema de Terror, na secção Quarto Perdido, dedicada aos filmes portugueses que roçam o género. O Crime da Aldeia Velha passa dia 13, sexta-feira, às 19h00, e A Promessa passa dia 15, domingo, às 16h45. Ambos no Cinema São Jorge.
[1] Acrescentam-se no entanto duas figuras que não existiam (nem eram referidas) originalmente, o regedor da aldeia (comerciante e o único iluminado em meio obscurantista) e Manuela, a companheira de Rui, mulher fácil que consente em relações fora do casamento. Às novas personagens também se acrescentam outros eventos, como o ritual do início do filme, o corte das árvores, a luta entre Rui e António de passa de navalhas a machados ou a sequência final que se transforma numa longa procissão para a morte, dando à personagem de Joana uma aura de santa crucificada pelos apóstatas ignorantes que o texto original apenas anunciava.
[2] De notar que o texto de Santareno começa com um extracto de uma notícia (datada de 1936) onde uma série de homens de uma aldeia espancaram e queimaram uma mulher sua vizinha (e à qual deviam dinheiro) por considerarem que esta poderia voltar à vida se rezassem por ela depois do acto. Isto é, já no texto se anunciava esta morte a acontecer, ao ler a peça já sabíamos o que ia acontecer; independentemente do que Joana fizesse o seu destino estava já escrito (literalmente)