Na ressaca dos painéis de análise das eleições de ontem, que provocam um rebuliço no interior de qualquer um – melhor que um laxante (Dulcolax proporcionou um alívio eficaz e fiável da obstipação e da irregularidade intestinal) -, tento escrever um apanhado do que foram os últimos dias do Queer Lisboa 17. O problema é que os efeitos da noite eleitoral ainda se fazem sentir e as capacidades do escriturário que se senta deste lado estão toldadas de forma possivelmente irrecuperável. O que se segue é o possível numa manhã nublada e de uns dedos docemente maldispostos (irrita-me tanto a palavra gentrificação).
Olhar enfeit(iç)ado
Analisar a forma como o cinema vem pondo em imagens a dança é algo digno de uma vida, mas há na dança (e também no teatro) um trabalho sobre o corpo que é intransponível – pelo menos da forma natural – para a planura do ecrã e para a falsa profundidade do que vemos projectado. Por isso, a dança terá que ser sempre, em cinema, um estudo do movimento per si, já que é disso que se faz grande parte do cinema. Outra alternativa para a representação da dança é trata-la apenas como exercício de repetição, isto é, mostra-la como jorna, trabalho rotineiro e repetitivo de treino e ensaio – a parte menos apurada da dança, o processo de apuramento. Esta segunda alternativa é a que um realizador sistemático como Wiseman escolhe em La Danse (A Dança – Le Ballet de l’Opera de Paris, 2009) mas é um olhar duro, analítico, quase científico. O olhar de Five Dances (2013) é o primeiro, um estudo dos movimentos, das travessias dos corpos no espaço de um estúdio – um olhar encantado com a cadência da coreografia e pelo rigor dos bailarinos. Esse olhar sobre o produto acabado é o que mais eleva o filme de Alan Brown; ao filmar os ensaios de um grupo de 5 bailarinos, evidenciando uma limpeza de movimentos que só que alcança com muito trabalho, Brown cria um ambiente de fábula onde se percebe que o que estamos a ver não é senão mais que um projecto que revolve em torno de uma peça (moderna e não contemporânea, diz-me o entendido de cá) de Jonah Bokaer e sobre ela traça linhas mínimas de acção. Retirar o suor de um trabalho fundamentalmente físico é como esquecer o trabalho nas minas e deliciar-se com os brilhos de um diamante. Isso é o mais envolvente do filme, essa noção de que estando a ver os ensaios da companhia, tudo aquilo já está mais que ensaiado fora das câmaras; assim como a forma como a ficção surge apenas como muleta (ou bengala de marfim?) para a matéria criativa que é a peça de Bokaer – um rapaz recém-chegado à grande cidade, um outro sozinho e pouco mais. E é também porque aqui que o filme peca mais fortemente, por se desleixar em subplots no acto intermédio que nada acrescentam (como seja a relação extra-conjugal de uma das bailarinas, ou a relação com os pais do menino – literalmente – imberbe e louro). Não é surpresa nenhuma que tudo isto termine em amor à luz das velas e acompanhado por uma banda sonora de sininhos (e numa montagem ao som de Perfume Genius – tão desaproveitado). A fábula, como é da sua natureza, é sempre doce, aqui a doçura é apenas suportável por aqueles (como eu) que têm dentes doces (passe o anglicismo).
De natureza semelhante tivemos também To agori troei to fagito tou pouliou (Boy Eating the Bird’s Food, 2012). Aqui a linearidade também faz figura de proa e a redução da história ao mínimo traduz-se numa aproximação da matéria de facto: o rapaz. Este não é, como bem nos avisaram os programadores no início da sessão, um filme LGBT – no sentido em que as suas personagens não são homossexuais ou transgéneros – mas é um filme queer. O canto da minha boca subiu quando ouvi tal coisa. Mas o filme prontamente se fez explicar; há na câmara uma obsessão com o protagonista (serão míseros os segundos de filme em que o actor não ocupa o enquadramento) e um desejo de estar ocupada por ele – um desejo de preenchimento (e não me prolongo mais sobre isto) – que é pois significativo dessa queerness. A câmara persegue o actor em enormes corridas pelas ruas e pelo apartamento, mas curiosamente não é um atrelado, procura sempre enquadrar o seu actor (ou deixa-o enquadrar-se) num espaço. Como no filme de Brown sabemos tanto o tempo (a actualidade) como o espaço (a zona trendy de Nova Iorque ou a Atenas da crise económica), mas essa situação é sempre difusa e serve apenas como pano de fundo para algo intemporal e supra-geográfico: o movimento em frente. As personagens estão em constante movimento, sempre fugindo de um qualquer passado perturbado, e sempre deparando-se com o que vai surgindo no caminho. O que o filme de Ektoras Lygizos faz é nunca se deixar demover dessa força propulsora (recusando um final feliz com a mulher-desejo) e filmar tudo com um mesmo olhar encantado – não se intimidando com nada (ao contrário de Brown que filma a nudez de forma muito púdica).
Pode-se enquadrar o filme na nova vaga de filmes gregos [juntamente com Kynodontas (Canino, 2009) e Attenberg (2010)] apenas por esse olhar de fábula sobre a realidade, olhar que vê tudo sob uma lente distorcidamente enfeit(iç)ada, ainda que esse tudo inclua o horrível e o arrepiante.
Um balanço? Nem por isso
A obrigação era fazer um apanhado, atar a cobertura num laço de seda, prender tudo num embrulho bonito, mandar beijinhos para a família e desejar boas festas. Mas este foi uma cobertura um pouco coxa; este ano não pretendi ser exaustivo, não vi todos os filmes que devia e vi apenas alguns que não queria – por isso falar sobre o festival como um todo seria passar apenas uma impressão que sendo sempre parcial, seria neste caso demasiado tacanha. Não há pois pesar de bons e maus, nada dessas coisas – ficam os meus considerandos (para os que estiverem interessados) deixados como as migalhas do Hansel e Gretel ao longo dos textos que aqui fui deixando. Bitaites e postas de pescada para quem gosta de peixe de viveiro acompanhado de uma dose extra de comentários sardónicos. Ou seja, acaba-se a refeição e nem há direito a um café com cheirinho ou um uísque de degustação. Desenganem-se. Deixo um docinho: Gore Vidal: The United States of Amnesia (2013). O filme começa com Vidal a visitar a sua própria tumba, aquele que ele comprou vários anos antes de morrer, com o seu companheiro (Howard Austen, e que morreu em 2003), e o filme é indelevelmente marcado pela morte, já que só se acabou depois da morte do escritor (que faleceu o ano passado). O filme centra-se em várias entrevistas a Vidal feitas em diferentes ocasiões nos seus últimos anos de vida (sendo acrescentadas por entrevistas a amigos e colegas, com imagens de arquivo e entrevistas televisivas suas ao longo dos vários anos que a sua presença televisiva carismática foi marcando a iconografia do intelectual americano), tudo entrecortado por citações do próprio. O filme perde-se em tanto material, disso não há dúvidas, mas sabe aproveitar o velhinho enrugado que tem diante de si. O revirar dos olhos dele quando houve a demagogia de Obama no discurso de vitória em 2008 é impagável, ainda para mais por ser ele um dos grande demagogos americanos. Eu ia à procura da obra do escritor, encontrei um filme sobre o homem, que não sendo deslumbrante deixa uma memória agradável e uma vontade enorme de ler mais livros dele – e isso já não é nada mau.