O cinema de Claire Denis é marcado por filmes de elipses e poucos diálogos, filmes que vivem das expressões dos actores para contar a história, mais do que das palavras que estes dizem. Se em 35 rhums (35 Shots de Rum, 2008) as elipses são menos importantes do que o que acontece durante as sequências, intercaladas por intervalos de imagens furtivas, este é também um filme ancorado na memória de outros filmes, evocando várias vezes outras recordações longínquas.
É a própria Claire Denis que admite que na génese deste filme esteve a ideia de homenagear Ozu, adaptando o filme Banshun (Primavera Tardia, 1949) à sua experiência pessoal. O magnífico filme de Ozu é uma história de um viúvo e a sua filha que ainda vivem juntos, em que a filha, apesar de estar próxima da idade de casar e de sair de casa, não consegue abandonar o pai, por acreditar que este depende demasiado dela. Ao pai, apesar de querer que a sua filha procure um rumo próprio para ser feliz e deixe de se preocupar com ele, custa-lhe a solidão e ver a filha partir. Nesse filme de enorme ressonância emocional, estabelece-se uma relação de simbiose entre o pai e filha, símbolos para o confronto entre o passado e o novo, que habituados a depender um do outro, tornam-se difíceis de separar.
O argumento do filme de Ozu é agora transformado por Denis na história de dois descendentes de imigrantes das Caraíbas em Paris, um pai viúvo (Lionel) e uma filha (Josephine) que vivem juntos numa rotina contente – cada um toca à campainha de casa ao abrir a porta para anunciar ao outro que chegou – enquanto mantêm qualquer relação com outra pessoa a uma distância segura. O conforto de uma vida em comum, visível na coreografia domiciliária, acaba por ofuscar a co-dependência vivida, mas não esconde uma certa tensão subjacente. Gradualmente, o pai percebe que terá que viver sozinho e deixar a sua filha procurar o próprio caminho e independência, mais importante do que o contentamento trazido pela rotina. É desta forma que entram na história dois vizinhos: um jovem rapaz pretendente ao coração de Josephine, e uma antiga amiga íntima de Lionel, e a dupla central desdobra-se, assim, num quarteto.
A inspiração em Ozu é evidente não só na história, mas também na abordagem estética do filme. Agnès Godard, a cinematógrafa e habitual cúmplice de Denis, filma os interregnos entre os planos de acção com uma evocação dos pillow-shots de Ozu, como se fossem algo de etéreo, sublinhados pela banda-sonora dos Tindersticks. Estes planos fixos, e cuidadosamente enquadrados, usados entre sequências para sinalizar a mudança de cenário, são aqui subtilmente utilizados para estabelecer as tais elipses e ao mesmo tempo compor o quadro do bairro onde decorre a acção, dos seus apartamentos e dos habitantes. Outras referências ao cinema de Ozu, como os planos fixos dentro de casa, um esquema de cores distinto ou as imagens a bordo de um comboio, ajudam a dotar os gestos repetidos ao longo do filme – como os cigarros que a vizinha fuma à varanda ou as viagens de mota de Lionel – de um carácter transitório em conflito com uma mudança que se anuncia. O espaço permitido à contemplação permite assim sobressair a simplicidade da história e, dessa forma, evocar uma empatia com o mundo destas personagens, tal como em Banshun.
O que também distingue 35 rhums é um sentimento de comentário social pela parte de Denis, mesmo que esteja dissimulado no quotidiano deste bairro. A Paris que vemos é delimitada à que estas personagens habitam, que por sua vez é uma parte pequena da cidade: apenas vemos o prédio, o bairro, o bar do bairro, os transportes públicos. Para esta família, e para os que consigo convivem de perto, não há sequer a questão de integração na cultura francesa: é um dado adquirido, é natural. Mas Denis aproveita para fazer um paralelo com a tensão entre as personagens e o desencontro com o mundo que as rodeia. Um exemplo é uma discussão sobre economia numa das aulas na universidade, que aborda a obra de Joseph Stiglitz, economista que há muito alertava para o perigo da subjugação dos países do Sul à dívida – só que aqui, em 2008, os países do Sul ainda se referiam aos do hemisfério Sul, e não aos do Sul da Europa. A atenção relevada à reforma de um colega de Lionel serve para este antecipar o seu próprio destino, colocando em perspectiva o resto da sua vida, confrontando-o com a passagem efémera do tempo e com o tempo que lhe resta.
A ambiguidade impressa ao longo do filme materializa-se numa indecisão entre um filme sensorial e liberto de fórmula, e uma narrativa mais convencional, que acaba por prejudicar o rumo do filme. Os motivos e intenções das personagens nunca são explícitos, antes intuídos através das suas acções e estados de espírito, ao mesmo tempo que o filme tenta apresentar uma linha narrativa clara. Mas é numa sequência perto do fim que o filme resolve este problema: depois de falharem uma ida a um concerto, Lionel, Josephine e os dois vizinhos procuram refúgio num bar. Será aqui que entre copos e cigarros, numa sequência sem diálogos, que os personagens acabam a dançar, revelando finalmente, numa coreografia de olhares entre os seus corpos e a câmara, as suas verdadeiras intenções, agindo sobre elas – é a rendição final às imagens.
35 rhums de Claire Denis será exibido dia 23 de Outubro, pelo Cineclube de Joane, na Casa das Artes de Famalicão.