O festim visual de De Palma não pode ser equiparado nunca, e disso teve consciência Kimberley Pierce. A realizadora do remake de Carrie (1976) fez um filme que é supostamente mais fiel à obra de Stephen King (e de facto há pormenores novos que aqui surgem) e uma actualização do conto de horror para o público jovem que, olhando hoje para o filme de De Palma, se perderá apenas naquilo que não soube envelhecer tão bem. Essa é a natureza de todos os remakes que vão surgindo nas salas do mundo, especialmente quando se tratam de filmes de terror: oferecer a novos públicos (e a públicos novos) nem que seja um simples réstia do que foi o choque e a surpresa de ver os originais aquando da sua estreia.
Claro que esta visão sobre o fenómeno dos remakes é demasiado romântica. Na verdade estes são essencialmente projectos de estúdio que tentam capitalizar a boa memória de filmes de culto ou clássicos de terror e assim produzir um produto seguro que à partida tem um público fiel. Não é, pois, por acaso que os remakes que se vão fazendo são invariavelmente de filmes já de si grandes (na história do cinema e no reconhecimento que deles tem o público em geral) ao contrário daquilo que seria expectável (e que foi a tradição do remake no período clássico ou para os movie brats): resgatar filmes esquecidos que, por condicionantes de produção (muitas vezes series B ou Z), desperdiçavam excelentes ideias em pobres concretizações.
De qualquer forma, como comecei por dizer, a realizadora Kimberley Pierce soube restringir-se ao quase anonimato (algo que à partida não seria digno de lisonja, mas que colocando no quadro de produção do filme faz todo o sentido) destacando-se apenas os cinco minutos iniciais pré-genérico onde vemos uma câmara ao nível do chão que vagueia pelo relvado da típica casa americana e que atravessa a porta e sobe as escadas (como se ela mesma fosse um espírito ao encontro de pousio) até chegar ao quarto onde vai filmar um parto em fora de campo todo num arrepiante plano-olho-de-deus (ou do diabo…). Daqui para a frente, isto é, depois do nascimento de Carrie, a câmara reduz-se ao básico funcional: salvam-se uns planos subjectivos de ecrãs de computador que rimam com outros, também subjectivos, de espelhos como que dizendo que vemos no computador – entenda-se Internet – o nosso próprio reflexo e nele descobrimos aquilo que procuramos encontrar sobre nós mesmos; ou seja, a menina crê ter poderes psíquicos e evidentemente vai encontrar todos os “comprovativos” de que tais coisas acontecem de facto nos mares de informação do YouTube.
Aliás, se há algo de comum entre os filmes desta mais recente leva de remakes de terror é o facto de actualizarem os clássicos e de nesse processo criarem conflitos curiosos com os originais. Por exemplo, no mais recente Evil Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 2013), a ida para o bosque faz-se com vista a obrigar a protagonista a uma reabilitação das drogas pesadas. Assim, tanto o espectador como os outros personagens crêem que são alucinações as descrições arrepiantes de espíritos malignos que atormentam as menina; ou, por sua vez, neste Carrie (2013), é a Internet como instrumento de bullying que eleva a outras proporções os maus tratos e o achincalhamento da protagonista – um vídeo que se torna viral e que vemos e revemos ao longo do filme; recordo Hideo Nakata que já anunciava os perigos das redes sociais e do manancial destas para os filmes de terror, “A tecnologia é sempre uma faca de dois gumes“. Pena que todos estes pormenores não sejam mais que isso mesmo, piscadelas de olho para os de olho atento.
Contudo, na verdade não era bem sobre isto que queria falar. Interessa-me neste filme outra coisa, ou melhor, outra pessoa que não Pierce; interessa-me Chloë Grace Moretz. Há actores e actrizes que parecessem trazer histórias agarradas ao corpo. Moretz parece ser uma delas. Disse-se que a pequena Chloë não possuía as qualidades de Sissy Spacek, que não era suficientemente frágil, que não era suficientemente cândida que não tinha essa capacidade de se parecer com um feto – como escreveu Pauline Kael. Talvez não tenha, talvez seja demasiado evidente a sua postura curvada das primeiras cenas na escola, talvez a sua louca ensanguentada seja demasiado histriónica, enfim, talvez tudo isso aconteça, mas há algo estranho em Moretz, não tanto neste filme, mas especialmente neste filme.
A actriz parece estar sobre o efeito de um mau olhado já que os seus filmes sucedem-se e neles encontramos sempre olhares semelhantes: o sangue, figura seminal nos seus filmes, presente em doses abundantes nos dois tomos de Kick Ass ou em Let Me In (Deixa-me Entrar, 2010) – o filme de vampiros que Matt Reeves refez a partir do orginal sueco – ou neste Carrie, onde o sangue é o elemento fundamental (desde o sangue do parto, ao sangue de período, ao sangue de Cristo e ao sangue de porco) [e não esquecer a sua participação em Movie 43 (Comédia Explícita – Movie 43, 2013) no episódio do período onde de novo o sangue se espalha pelas paredes ou em Dark Shadows (Sombras da escuridão, 2012) de Tim Burton onde os vampirismos se repetem]; a figura do pária (escolar) que temos evidentemente presente neste Carrie mas que se repete de forma semelhante em Kick Ass 2 (Kick-Ass 2: Agora é a Doer, 2013) quando ela é levada a crer que o convite de um rapaz bonito para um festa é a valer (e se não há um festival de sangue e telepatia há um de vómito e diarreia) ou de novo nos filmes de vampiros pelas razões óbvias; e por fim a última característica, o choque entre candura e agressividade, ou seja, a menina inocentinha que na verdade esconde as dentaduras sanguessugas ou o conhecimento profundo de artes marciais ou os poderes psíquicos ou as metamorfoses à lua cheia [ou a suprema independência e estabilidade emocional para lidar com os homens retardados no autocarro dos irmãos Farrelly]. Concluindo, não só parece que Moretz está sempre a fazer o mesmo papel, como parece que Carrie é o resumo de todo o seu trabalho – ou seja, não podiam ter escolhido melhor actriz.