Der Müde Tod (A Morte Cansada, 1921) é um dos mais esquecidos filmes de Fritz Lang, mas é difícil perceber porquê. Com o primeiro argumento em que Lang colaborou com Thea von Harbou (embora ela não seja creditada), este é dos mais belos filmes do cinema mudo, que influenciou Bergman para o seu Det Sjunde Inseglet (O Sétimo Selo, 1957). O filme assume-se como um exemplo do tema que nortearia toda a obra de Fritz Lang, quer na Alemanha, quer nos EUA: a luta de um indivíduo contra uma força superior e opressora, que aqui poderemos definir como destino. A Cinemateca Portuguesa vai exibi-lo duas vezes no seu ciclo “Fritz Lang – O Tempo do Cinema”.
Como o próprio título inglês (Destiny) nos indica, este filme é um caso em que essa luta se processa de forma bastante evidente no trajecto de uma jovem mulher tentando vencer a Morte para reaver o seu amado. O facto de nem a mulher, nem o amado, nem a povoação onde se desenrola a acção no tempo presente terem nomes – como sucederia, anos depois, por exemplo, no célebre Sunrise (Aurora, 1927) de F. W. Murnau – reforça, por um lado, o tom de “história de encantar” do filme e, por outro, a universalidade das figuras e do que a sua luta representa.
Fritz Lang havia já trabalhado sobre a oposição de um indivíduo a um sistema adverso. Fê-lo claramente em Die Spinnen (As Aranhas, 1919-1920), em que esse sistema era a própria organização que dá título ao filme, mas fê-lo também em Harakiri (1919), tido como uma espécie de Madame Butterfly que terminava tragicamente após tentar levar avante a sua relação com um estrangeiro. Este motivo, do amor contrariado, seria igualmente abordado por Lang, por exemplo, no primeiro episódio de Die Spinnen, no seu díptico indiano de 1959 Der Tiger von Eschnapur / Das Indische Grabmal (O Tigre de Eschnapur / O Túmulo Índio, 1959) – que tem cenas que remetem directamente para Der Müde Tod. De referir a presença da actriz Lil Dagover, que dá vida à protagonista tanto do filme em análise, como de Harakiri, como em Die Spinnen (onde é a vilã).
Também a questão da morte não era novidade para Lang, que já assinara em 1918 o argumento de Hilde Warren und der Tod, de Joe May. Além de antecedentes profissionais, é importante mencionar um episódio pessoal que, segundo um autor, terá marcado profundamente Fritz Lang na infância. Ele terá tido uma peculiar visão da morte quando estava deitado com febre: um homem de negro com um chapéu de abas largas. Precisamente a imagem que primeiro vemos da Morte no filme de 1921.
Quando pensamos em desafios entre um humano e a Morte, evocamos rapidamente as imagens do jogo de xadrez em Det Sjunde Inseglet de Bergman. Contudo, não deixamos de assistir a um antecedente no jogo entre a rapariga e a Morte em Der Müde Tod. Ela quer reaver o seu enamorado e aceita jogar com a Morte, que lhe dá três hipóteses para a poder vencer e, depois, ainda mais três. A opção por representar a morte no corpo de um homem ter-se-á prendido com o facto de o substantivo em alemão ser do género masculino e não feminino, como em português.
O primeiro contacto visual da rapariga com a Morte dá-se cedo no filme, ainda dentro da diligência onde viajam os dois amantes, que nesse espaço fechado de alguma intimidade nos são introduzidos. Quando esta pára para que a Morte entre, há um primeiro estremecimento no olhar da rapariga que veremos repetido depois, muito claramente, quando a Morte se senta junto do par na mesa da estalagem. Aí, a presença da morte é claramente recebida com medo, como prova o quebrar do cálice nupcial perante a visão do esqueleto e da ampulheta, prenúncio (e este é um filme pleno deles) do que está para vir. É devido ao quebrar do cálice, sinal claro de um destino funesto dos enamorados, que se processa a saída da rapariga da mesa, o que permite à morte sair com o seu amado. Quando ela regressa à sala, tudo o que vê é a cadeira onde ele estava, agora vazia. A sua ausência rima com o plano do lugar vazio de Elsie Beckmann em M (Matou!, 1931).
Perante a explicação de que ele saiu com “o estranho”, o pânico toma conta da rapariga. Essa ideia da Morte como um estranho, um forasteiro, já havia sido enfatizada no flashback contado pelos dignitários da povoação onde vemos a chegada da morte à povoação e a compra do terreno contíguo ao cemitério. O medo da jovem será do desconhecido, mas possivelmente de um desconhecido concreto, que já pressentira anteriormente e que confirma junto ao muro, quando vê passar a procissão de fantasmas e, entre ela, o seu amado. A partida em busca do amado é uma demanda por conhecimento: conhecimento do seu paradeiro e, depois, de uma maneira de o reaver. Esse caminho rumo ao conhecimento pode ser simbolizado pela presença de um mocho no cemitério, por onde a rapariga passa antes de chegar ao muro pelas dez horas. No entanto, a revelação só sucede aquando da leitura da passagem do Livro de Salomão, pois é aí que ela decide interagir directamente com a Morte. É pela leitura, e pelo acto subsequente da procura da Morte (pela ingestão do veneno), que ela chega, de facto, à àquela, numa dimensão extraterrestre. O facto de estarmos perante uma dimensão diferente é vivificada pela ideia de supressão do tempo, bem como pela sugestão de que os episódios correspondentes às três velas são sonhos, como comprova o facto de, quando o episódio chinês termina e a terceira vela se apaga, vermos a jovem de olhos fechados, como que a dormir, nos braços da Morte.
Os três episódios “históricos” (Bagdade, Veneza, China), que constituem boa parte do filme, representam as três possibilidades que a Morte dá à jovem para a tentar vencer. Se uma de três vidas [que lhe é dado (re)viver] for salva, o seu amado regressa a “este mundo”. As três pequenas histórias, que terminam no mesmo final (a separação dos amantes pela morte dele), podem ser vistas como uma nova aproximação ao universo do “serial”, que Fritz Lang experimentara com Die Spinnen. Contudo, pela narrativa de cada episódio, nunca nos esquecemos que estamos perante um todo maior. Cada um deles é apenas uma maneira diferente de contar a mesma história e que conduz, inevitavelmente, ao mesmo desenlace trágico. Comum a todos é a luta do amor contra uma tirania que o impossibilita e que é personificada no primeiro episódio pelo califa, no segundo por Giarolamo (que já foi identificado como doge) e, no terceiro, pelo imperador. Se em todos os episódios, o par de enamorados é interpretado pelos mesmos actores da história do presente (Lil Dagover e Walter Janssen), os seres que impedem a sua felicidade não são interpretados pelo actor que dá vida à morte, que assume sempre o papel de empregado de uma entidade superior. Este facto confirma a ideia de que a Morte não é o destino mas é mero instrumento seu. Serve algo/alguém superior, limitando-se a executar os seus desígnios.
É nos três episódios que a exuberância cénica do filme mais é explorada, em impressionantes décors, figurinos e caracterização. Segundo os créditos de uma edição em DVD até objectos foram trazidos de um museu. O gosto pelo exótico (bem patente no tratamento orientalista dos episódios asiáticos) e um interesse geral por outras culturas poderá ser explicado não só pelas “modas” de época mas pelo percurso pessoal do próprio Lang que viajou um pouco por todo o mundo, incluindo o Norte de África, a China e o Japão.
O filme não destoa também de um contexto de cinema mudo alemão. O episódio chinês, a que Lotte Eisnser chama uma “paródia ao Expressionismo”, é, de todos, aquele onde se poderá encontrar alguma clara reminiscência da estética expressionista. Mas embora os cenários do filme tenham sido da responsabilidade de dois dos intervenientes no filme definidor do “expressionismo” Das Cabinet des Dr. Caligari (O Gabinete do Dr. Caligari, 1920), Walter Röhring e Hermann Warm, bem como daquele que seria responsável pelos décors de Faust (Fausto, 1926), Robert Herlth, não se poderá dizer que haja de facto décors expressionistas (ou caligaristas), privilegiando-se uma atmosfera mais subtil, mérito que deverá ser em parte atribuído ao director de fotografia Fritz Arno Wagner [que seria responsável pela fotografia de Nosferatu (1922)].
Embora os episódios terminem todos tragicamente, não há vacilação da rapariga no processo. A figura da rapariga constitui um exemplo paradigmático da luta do indivíduo contra uma força superior: o destino, Deus. Não é, portanto, com a morte que a rapariga se defronta, mas com o destino que determina a própria acção da Morte (que, por seu turno, determina a progressão das acções do filme). A relação da rapariga com a figura da Morte é muito mais complexa que uma linear oposição. De facto, ela opõe-se-lhe durante os episódios “históricos” mas nas tentativas da hora final, ela age como agente aliado da Morte, procurando outras vidas para lhe entregar que não têm qualquer relação com a do seu amado (como tinham, de certa maneira, as dos episódios, que funcionavam como seus duplos). Acima de tudo, ela destaca-se dos demais (designadamente dos demais habitantes da povoação), por ser a única que ousa tentar compreender os meandros do destino. E se “ninguém escapa ao seu destino”, o filme mostra-nos, no entanto, que há um espaço possível de o moldar pela acção humana, mesmo que com resultados inesperados.
Uma questão fulcral em Der Müde Tod é a humanização da figura da Morte. Essa humanização vai muito para além da mera personificação do conceito de morte na figura de um homem. Ela exprime-se na atribuição de características psicológicas à sua figura, como as ideias de cansaço e de solidão. Compreendemos isso logo com os belíssimos planos da Morte perante os dignitários durante o flashback da primeira parte do filme e percebemo-lo inequivocamente quando a Morte confessa à rapariga estar cansada do seu trabalho que semeia a tristeza entre a humanidade. Essa humanização da Morte é evidente ainda pelo facto de ceder à pressão da mulher quando esta fracassa as hipóteses dadas de início e pela forma como gestualmente essa cedência é expressa: a Morte ampara a jovem.
A intensidade da interpretação de Bernhard Goetzke, actor que dá vida à Morte, é tal, que se assume como praticamente insuperável na história do cinema. De facto, há na sua composição de uma Morte cansada e irremediavelmente solitária algo que nos chega a comover, ao passo que o mistério (um mistério também de cinema mudo) imprime-lhe uma aura impossível de conseguir em personificações “sonoras” da Morte. Ao longo do filme, percebemos claramente que a Morte não é um vilão óbvio, como será Mabuse, mas sim, de certa maneira, também uma vítima do destino.
Importa notar que no mesmo ano em que Lang fez Der Müde Tod, em dois outros países foram rodados filmes com enormes similaridades. Na Suécia, Victor Sjöstrom fez Körkarlen (A Carruagem Fantasma, 1921), e na Dinamarca, Carl Th. Dreyer filmava Blade af Satans Bog (Páginas do Livro de Satanás, 1921). Comum aos três filmes é o desenlace final, em que um sacrifício humano provoca uma quebra no sistema. Em Der Müde Tod, não conseguindo vencer a Morte com as regras do jogo que lhe foram propostas, a jovem oferece a sua vida e consegue assim reunir-se com o seu amado num “outro mundo”. Também ligado a Der Müde Tod pela sua estrutura narrativa, encontramos Das Wachsfigurenkabinett (O Gabinete das Figuras de Cera, 1924) de onde há também três episódios passados em culturas distintas e com uma ligação comum ao presente (evidenciada pela coincidência dos actores que interpretam o par romântico). Bem mais recentemente, descortinamos similaridades em The Fountain (O Último Capítulo, 2006) de Darren Aronofsky, onde um homem empenhado em salvar a esposa de uma morte inevitável tenta encontrar uma cura em três tempos: o presente, um passado semi-fantasista e o futuro.
A problemática do destino encontra-se profundamente enraizada nos filmes de Fritz Lang e teve sucessores mais ou menos directos. Podemos igualmente descortinar o destino como tema central – ou pelo menos um dos temas centrais – da obra de um autor bastante distinto de Lang, Woody Allen, que terá sido mais influenciado por Ingmar Bergman, cuja imagem da morte em Det Sjunde Inseglet foi claramente inspirada na Morte de Der Müde Tod. Esta obra terá igualmente marcado futuros realizadores, como Luis Buñuel ou Alfred Hitchcock. Buñuel afirmou que foi após ver Der Müde Tod que sentiu o desejo de fazer filmes e que esta obra clarificou a sua vida e a sua visão do mundo. Já Hitchcock cita este título na sua entrevista a Truffaut, quando este lhe pergunta se se lembrava de algum título que o impressionara particularmente.
Der Müde Tod, hoje largamente ignorado, merece ser redescoberto em toda a sua beleza e riqueza cinematográfica. A retrospectiva integral que a Cinemateca Portuguesa está a dedicar a Fritz Lang é, talvez, a melhor das oportunidades para o fazer, integrando-o na obra anterior de Lang e compreendendo o impacto nos seus trabalhos posteriores, bem como em paralelos com obras de outros autores.