A partir de hoje e até ao final da 13ª Edição do Doclisboa, o Carlos Natálio (CN), o João Lameira (JL), o Ricardo Vieira Lisboa (RVL) e o Luís Mendonça (LM) vão destacar regularmente o que de mais interessante pode ver no festival. Nos primeiros dois dias, sublinhamos o retrato de Béla Tarr pelo francês Jean-Marc Lamoure, o último filme de Jonas Mekas, a guerra pela posse de terras no Paraguai, a decadência da democracia ocidental em Mocracy/Neverland in Me (2012) e ainda dois filmes da competição internacional, ambos de vertente militante. Bons filmes.
Pays Barbare (2013) de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi
Através de imagens de arquivo, pequenos filmes caseiros, estudos etnográficos amadores (com a película muito estragada e posteriormente adulterada e/ou desacelerada) – ou, em bom inglês, através de found footage manipulado -, a dupla de documentaristas Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, residente em Milão, expõe o verso e o reverso da propaganda do fascismo italiano (mormente, no que diz respeito à sua veia colonialista na Líbia e na Etiópia), mostrando o “discurso” oficial – sem som da época, bem entendido; aliás, a banda sonora é composta sobretudo por invectivas poéticas, mais ou menos veladas, cantadas ou faladas, contra a ditadura de Mussolini e testemunhos escritos da altura – uma carta de uma operária lamentosa pelo namorado que partiu para a guerra e não lhe liga – e o seu horrendo avesso. Torna-se óbvio logo ao início, quando se vê o corpo sem vida do Duce rodeado por felizes rostos domingueiros, que o país bárbaro é a própria Itália e não qualquer das colónias que Mussolini conquistou e que são objecto principal das imagens encontradas pelos cineastas. Nestas descobre-se uma população “incivilizada” (embora não haja gesto mais torpe do que o daquele branco a destapar os seios de uma nativa sorridente, donde talvez o termo “erotismo colonial” que Gianikian e Lucchi usam tenha surgido), contente, dir-se-ia, pela subjugação a um país ocidental, bem mais avançado, o que os relatos dos crimes de guerra perpetrados pelos soldados italianos desmentem. Pays Barbare é um exemplo do cinema militante e, necessariamente, dos seus limites: se, como escrevem os cineastas no texto de apoio ao filme, o objectivo era traçar qualquer paralelismo com o estado actual da Itália, este parece, no mínimo, forçado; é sempre mais interessante como conceito do que como cinema. De qualquer dos modos, é uma escolha bastante arriscada como filme de abertura do DocLisboa. (JL)
Outtakes from the Life of a Happy Man (2012) de Jonas Mekas
O padrinho da avant-garde americana já não vai “filmar” mais. Uso as aspas pois toda a sua obra, ao deixar perceber um duplo impulso – um de dispersão, caça e espera na procura das imagens e outro de compressão e fluxo na montagem (ainda que de ordem aleatória, como Jonas Mekas adverte) -, permite antever que o que termina no cineasta lituano não será o “filmar”, isto é, a sua curiosidade compulsiva, mas precisamente o gesto ensaístico, a construção de sentido para essas suas imagens. Em Outakkes há um lado de revisitação do seu cinema e do que tem dentro (a sua família, amigos, Nova Iorque, memórias de exílio…) a partir da enorme quantidade de restos que foi acumulando ao longo de 50 anos de carreira, agora remontados, mas sempre (um pouco a contra corrente do que se vai vendo, admita-se) evitando cair na emoção fácil do filme-memória que evoca a beleza de um passado. Mekas di-lo mais do que uma vez, em voz lenta e pronunciada, durante a pouco mais de uma hora de filme: “they say my images are my memories. No, no, no. These are not memories. This is all real what you see. (…) Memories are gone but images are here and they are real”. E é precisamente aqui que está a felicidade de Mekas (e a nossa): a de poder ter testemunhado uma vida e parte do mundo através dos seus olhos, com imagens sem propósito definido, que faziam o “processamento” do reel ao real e que hoje são precisamente isso que Mekas nelas vê: provas de real. Vai havendo cada vez menos disponibilidade (pelo olhar traumatizado que tudo consome) para a generosidade de cineastas como Jonas Mekas. Por isso parece tão importante permitir que Outtakes, um filme de fim, um filme sobre a fruição presente do passado (de observação da felicidade na margem, no que sobra), seja, ao mesmo tempo, mapa e labirinto que habite todas as outras imagens do festival que agora se inicia. (CN)
El Impenetrable (2012) de Danièle Incalcaterra e Fausta Quattrini
O título já diz: há algo impenetrável e é preciso entrar aí. Contado na primeira pessoa, em road movie – quixotesco-kafkiano-idealista-“aguirreano” -, o realizador Danièle Incalcaterra vem ao inóspito do território Chaco paraguaio. O propósito é o de tomar posse de uma terra (adquirida durante os anos de ditadura de Stroessner), que o seu pai lhe havia deixado a ele e ao irmão, e restituí-la aos indígenas guarani, transformando-a numa reserva natural. Há planos subjectivos do interior do carro do cineasta a avançar pelo território selvagem, habitado por boas constritoras, cactos e ossos de mamíferos a secar ao sol. Mas o que realmente trava o caminho a Danièle é a população local, retratada como hostil ou como mera peça de xadrez da exploração capitalista latifundiária do Chaco. E esse é o verdadeiro sentido de impenetrável, enquanto processo kafkiano de barreiras constantes e odisseia burocrática. Aqui é tudo tratado com a precisão ficcional necessária ao desmantelamento do sistema paraguaio e as suas land wars. O filme avança por superação de obstáculos (chegar, antes que tudo, ao próprio terreno não é fácil), pequenos twists, gestão criteriosa de informação ao espectador, não faltando mesmo os aliados estratégicos do avanço lento e determinado da figura paciente e resoluta de Danièle, convertida a espaços em herói de filme de aventuras. Se é essa estrutura em odisseia aquilo que permite a coesão a El Impenetrable, a conquista territorial é simultaneamente uma questão ética e um assunto familiar de reconciliação. O realizador dedica o filme ao filho pois o colocar o pé na terra é motivo ancestral e os obstáculos a essa demanda são, em cada geração, impenetráveis. (CN)
El Impenetrable (Secção Investigações) será exibido dia 25 de Outubro às 16:15 e dia 1 de Novembro pelas 22:00 na sala 3 do Cinema City Alvalade.
Tarr Béla, I used to be a Filmmaker (2013) de Jean-Marc Lamoure
O fim do cinema de Béla Tarr, anunciado com A Torinói Loi (O Cavalo de Turim, 2011), essa derradeira palavra de uma crónica cinzenta da miséria em que a espécie humana está mergulhada, deixa-nos uma espécie de vácuo ensurdecedor. Já não existirá essa gestão própria do vento, do cansaço, do pó no caminho, do silêncio e da espera. A obra está feita, a câmara enterrada (como no início de Tarr Béla) e os planos-sequência da anatomia de um quotidiano sustêm-se. Mas não é ainda tempo para a melancolia. Há primeiro que digerir o eco deste vazio, desta paragem, penetrando na tessitura dos seus filmes, pela observação da construção da ordem de Tarr: como habita o espaço rural da Hungria, esperando a intempérie, a linha certa da colina, o sítio adequado à construção do rosto dos seus cenários. O realizador-antropólogo francês Jean-Marc Lamoure tenta mostrar, sem intrusão, a visão do cineasta nessa espécie de percurso prosaico que vai da família criativa que o acompanha (a sua esposa, co-realizadora e montadora Agnes Hranitzky, o director de fotografia Fred Kelemen, o argumentista László Krasznahorkai, o músico Mihaly Vig e os actores Janos Derzsi e Erika Bok) à manufactura desse espaço de austeridade sem par na cinematografia mundial. Desta feita, há um sentimento de incredulidade ao saber que aquela casa, aquele poço, aquele estábulo (os de Torinói), que sentimos como intemporais, foram construídos meticulosamente. Ou ao observar o helicóptero e as máquinas de vento usados para criar a atmosfera do fabuloso primeiro plano do cavalo. Quando Lamoure cola as imagens da rodagem e as do filme, essa metamorfose produz um choque emocional no espectador, um choque ao nível sensorial, como se este fosse colocado ante a maldição de que fala Bela a propósito do seu país: “viver aqui é como viver numa ilha da qual nunca ninguém pode sair”. Essa ilha, espécie de paisagem pobre e humana à qual foi extraída a metáfora política e o espectáculo da miséria, é o próprio cinema de Béla Tarr. Agora que passaremos a ficar realmente entregues a nós próprios, importa perguntar: como se parecem as coisas depois de Tarr? (CN)
Tarr Béla, I used to be a Filmmaker (Retratos) será exibido dia 25 de Outubro às 17:00 na sala 1 do Cinema City Alvalade e dia 3 de Novembro pelas 21:45 na sala 3 do mesmo cinema.
Mocracy/Neverland in Me (2012) de Christian von Borries
Uma das coisas de que Michael Jackson alegadamente padecia era do complexo de Peter Pan. Essa incapacidade de crescer emocionalmente, essa necessidade de escapismo, fez da sua mansão Neverland um espaço icónico e simbólico do idílio e da evasão permanentes. Segundo o alemão Christian von Borries, o rei da pop é essa figura ancilar de uma democracia vertida em mockracy, ao mostrar a coreografia do próprio sistema, enquanto banda sonora dos processos de neoliberalismo dos anos 80. E Michael Jackson junta precisamente a dupla dimensão do problema: por um lado, a evolução neoliberal de um sistema capitalista que favoreceu o poder corporativo e converteu a democracia num espaço de exploração e aprisionamento paradoxal da liberdade e, por outro lado, o papel que as indústrias culturais tiveram na instauração desse neverland de imagens e sons, esse espaço simulacral onde a realidade e o simulacro de Baudrillard se confundem nessa “sociedade do espectáculo”. O objectivo em Mocracy é, como diz o seu autor, mimar a “polifonia falhada” do que se tornou esta democracia e mostrar, na opulência das imagens, do jogo das referências e citações pós-modernas, esse labirinto dos bonecos, dos videojogos, dos anúncios, das semelhanças entre as imagens de guerra e os videoclipes, do espectáculo da miséria e da caridade. Estamos perante um objecto rough, arty, elaborado no discurso, um shockumentary que é ainda do mero domínio da chamada de atenção. Porque nada disto é novo, nem a perversão económica, nem o seu entretém mediático. Quando von Borries se aproxima dos últimos capítulos deste processo de destruição cultural ocidental pelo pensamento economicista invasor de todos os domínios da realidade – nomeadamente, a crise do subprime, o movimento ocupy, a “neo-colonialização” greco-alemã, os anonymous – ficamos com a sensação de que estamos perante um filme de certa forma “antigo”, até carregado de uma dose de guerrilha impotente, tendo em conta a eficiência com que os mecanismos do sistema passaram a integrar no jogo os gritos de lamento. Como diz Godard a certa altura: o explorador nunca diz aos explorados como os está a explorar. Este nosso sentimento prende-se com a necessidade de repensar as virtudes da invenção versus as limitações da resistência. O próximo passo talvez seja o de acrescentar outro prefixo mais eficiente do que mock à palavra democracy. Pedimos quiçá demais, bem o sabemos. (O realizador tem outro filme no Doclisboa, I’m M, sobre a relação entre democracia, produção de imagens e consciência de classe). (CN)
Nichnasti pa’am Lagan (2012) de Avi Mograbi
A competição Internacional do DocLisboa parece apostada na vertente militante do documentário: Nichnasti pa’am Lagan (Once I entered a Garden, 2012) põe um judeu (o próprio realizador Avi Mograbi) e um árabe (o seu professor de Árabe Ali Al Azhari que, quando o pupilo erra na língua, o adverte prontamente) em diálogo, levando ao obrigatório tema de conversa dos problemas no Médio Oriente, onde antes os dois povos conviviam sem grandes atritos (o “paraíso perdido” a que se refere o título, pelo menos o inglês) e que, depois da criação do Estado de Israel, se tornou palco de um conflito sem fim à vista. Ali e Avi partilham histórias de família muito parecidas – Mograbi é descendente de judeus árabes – que acabam por ser a história da região: por razões diversas, Ali e a família de Avi tiveram de abandonar as suas terras natais, para se confinarem devidamente do seu lado da barricada – fotografias, sonhos, etc., num documentário impuro, que se encena a si próprio (são sempre visíveis as câmaras de filmar e os microfones e até o cameraman se vai tornando “personagem”). Esta impureza, que abrange as “personagens” – Ali Al Azhari casou-se com uma judia e teve uma filha dela (a pequena e espevitada Yasmine, que sente a discriminação por essa mesma impureza de que ela é a máxima representante) e Avi Mograbi está apaixonado por uma árabe (com quem acordou que aquele amor era impossível) -, salva Nichnasti pa’am Lagan das suas boas intenções (ou das suas intenções meramente políticas). O melhor do filme é a amizade entre Mograbi e Al Alzhari, duas pessoas com quem apetece estar durante uma hora e meia, apesar dos remoques, das acusações, das tristezas, que também fazem parte dessa relação. (JL)